Anica
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Saiu na Gazeta do Povo:
Você já deve ter ouvido uma pessoa falar sobre a vida das mulheres mulçumanas com a propriedade de quem estudou ou vivenciou o assunto. Quando se questiona, porém, onde ela conseguiu tantas informações, diz que leu sobre o tema em um livro de literatura. É comum encontrar pessoas que leem um romance e depois tomam a história por verdadeira. Por mais que o escritor tenha feito uma pesquisa séria sobre um fato, essas informações não servem para recontar a história.
“Mesmo que o ficcionista tenha feito uma pesquisa profunda e rigorosa sobre um tema, na hora em que constrói o texto da ficção o compromisso dele é outro. Não é com a realidade”, afirma o historiador Júlio Pimentel Pinto, professor da Universidade de São Paulo (USP). Não por acaso, surgem as confusões. “O leitor precisa estar preparado para perceber o que é real e o que é ficção. Não pode tomar tudo como se fosse verdade única”, diz Pimentel.
Em entrevista à Gazeta do Povo, o historiador, que trabalha há 20 anos com a ficção, tenta apaziguar os ânimos. Mesmo porque, em suas aulas, Pimentel trabalha com romances policiais para mostrar aos estudantes que a ficção também pode ser uma fonte de estudo da historiografia, por ajudar a perceber como era a visão de mundo de um determinado tempo.
O senhor é favorável a que as pessoas conheçam a história por meio da ficção?
Lógico. A principal importância da leitura da ficção na história é dar uma percepção da experiência vivida em um tempo que a historiografia nem sempre oferece. Permite ampliar a capacidade de enxergarmos o que foi viver naquele momento de forma mais íntima.
O que fazer para não misturar realidade e ficção?
O problema não é ser ficção ou não, mas a disposição das pessoas em acreditar piamente no que leem. Você tem que ler com alguma criticidade, evitando generalizar ou supor que tudo o que está ali é verdade pura. Não existe verdade única. O papel do historiador é se aproximar dela e saber que nunca vai chegar totalmente lá. O passado muitas vezes é inacessível.
Que obras da ficção retratam com eficiência o que os historiadores não conseguiram mostrar?
Fazem cerca de 20 anos que a historiografia sobre o final do Império e o início da República começou a falar que a maioria da população brasileira dessa época não deu muita atenção ao acontecimento [Proclamação da República]. Isso foi comprovado pela historiografia recentemente, mas na época, no calor do momento, Machado de Assis já tratava disso, por exemplo, na obra Isaú e Jacó. Ele satirizou, bem antes dos historiadores, o desinteresse das pessoas pela Proclamação da República. Artur de Azevedo falou disso em um conto. Lima Barreto mostra essa questão em Bruzundangas. A historiografia demorou quase cem anos para discutir com profundidade o assunto e a ficção fez isso a quente, na época.
O livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, não é outro exemplo importante?
Sem dúvida. Mas é um caso muito peculiar porque, na primeira e na segunda parte do livro, Euclides se preocupa com estudos geológicos e questões étnicas. Ele era um ficcionista, mas antes de tudo um engenheiro. E a obra é híbrida: meio ficção, meio reportagem jornalística, afinal ele foi enviado para cobrir a Guerra de Canudos para o Estadão. A terceira parte, que é a narração da guerra, tem um certo painel fabuloso, mas também há muito rigor na descrição do que ocorreu em Belo Monte.
O senhor afirma que o leitor deve se aproveitar da ficção para entender como era a visão de mundo de uma certa sociedade. Livros como A mulher de trinta anos, de Balzac, e Madame Bovary, de Flaubert, ajudam a pensarmos o que as mulheres dessas épocas sentiam?
É esse o sentido. Você não vai ler essas duas obras para tirar informações de um evento que se passou na época ou coisa que o valha. Mas vai encontrar ali essa espécie de diagnóstico de uma mulher que muda, de uma sociedade em movimento. Esses livros nos dão a percepção mais sensível da experiência histórica, que a própria história não pode oferecer.
Madame Bovary pode ser uma fonte para entendermos as mudanças que ocorriam em Paris?
Sim. A educação sentimental de Flaubert ocorreu em uma série de episódios que se passaram em 1848. Nessa época Paris estava conturbada, em meio a levantes. Várias das cenas são recriadas. Você vai confiar no que está ali? Não deve. Mas há algo perceptível na obra: a tensão que todos os personagens viviam. Essa é a sensibilidade histórica da ficção. Percebe-se com mais facilidade no romance do que em um livro de história que os parisienses viviam tensos. A cidade estava em polvorosa, cheia de barricadas e conflitos sociais. A ficção é capaz de expressar melhor, de forma mais sensível, o que foi a experiência histórica. A frieza da historiagrafia dificilmente conseguiria passar isso. Lendo o livro você analisa outro aspecto relevante: a importância dos romances baldios que circulavam na França naquele período e que eram a leitura base das moças burguesas. Uma vez li um comentário engraçado dizendo que Emma Bovary morreu de tanto ler romance ruim. É mais ou menos isso. Havia uma produção de romances baratos que circulavam em Paris. Por meio deles essas mulheres percebiam como suas vidas eram mesquinhas. Essa sensação de aprisionamento é o que vai corroendo Emma Bovary.
A história é a construção da narrativa, estamos sempre desenredando essa história. Se o narrador da ficção faz isso, o historiador, de certa forma, também o faz?
Essa é a grande semelhança entre história e ficção. Ambas são narrativas construídas a partir de outras narrativas, que também são uma representação. Quando usamos o documento histórico para escrever um livro, também construímos a narrativa em cima da narrativa. O ficcionista faz a mesma coisa, pega uma narrativa e a reinterpreta. Embora ambas sejam narrativas, historiador e ficcionista sejam intérpretes, o compromisso de um e de outro é diferente. É o compromisso que Aristóteles já descreveu na Poética: o poeta é superior ao historiador, porque o historiador pensa o que foi e o poeta pensa o que poderia ter sido.
Qual sua opinião sobre outros profissionais, como jornalistas, que se propõem a escrever livros de história?
Não vejo nenhum problema. Há alguns casos, sobretudo nas biografias, a que os historiadores nunca se dedicaram, e os jornalistas acabaram fazendo trabalhos excelentes. Como alguns livros do Ruy Castro ou do Fernando Morais. O que os historiadores reclamam é que alguns livros não são tão rigorosos na pesquisa historiográfica. É verdade, mas é melhor termos um livro sem tanto rigor do que não existir livro algum sobre o assunto. Podem ser obras feitas por qualquer profissional. Historiador não é só aquele que tem curso superior de História, mas quem pesquisa e escreve sobre história. Os dois maiores historiadores brasileiros não são graduados na área, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior.
Você já deve ter ouvido uma pessoa falar sobre a vida das mulheres mulçumanas com a propriedade de quem estudou ou vivenciou o assunto. Quando se questiona, porém, onde ela conseguiu tantas informações, diz que leu sobre o tema em um livro de literatura. É comum encontrar pessoas que leem um romance e depois tomam a história por verdadeira. Por mais que o escritor tenha feito uma pesquisa séria sobre um fato, essas informações não servem para recontar a história.
“Mesmo que o ficcionista tenha feito uma pesquisa profunda e rigorosa sobre um tema, na hora em que constrói o texto da ficção o compromisso dele é outro. Não é com a realidade”, afirma o historiador Júlio Pimentel Pinto, professor da Universidade de São Paulo (USP). Não por acaso, surgem as confusões. “O leitor precisa estar preparado para perceber o que é real e o que é ficção. Não pode tomar tudo como se fosse verdade única”, diz Pimentel.
Em entrevista à Gazeta do Povo, o historiador, que trabalha há 20 anos com a ficção, tenta apaziguar os ânimos. Mesmo porque, em suas aulas, Pimentel trabalha com romances policiais para mostrar aos estudantes que a ficção também pode ser uma fonte de estudo da historiografia, por ajudar a perceber como era a visão de mundo de um determinado tempo.
O senhor é favorável a que as pessoas conheçam a história por meio da ficção?
Lógico. A principal importância da leitura da ficção na história é dar uma percepção da experiência vivida em um tempo que a historiografia nem sempre oferece. Permite ampliar a capacidade de enxergarmos o que foi viver naquele momento de forma mais íntima.
O que fazer para não misturar realidade e ficção?
O problema não é ser ficção ou não, mas a disposição das pessoas em acreditar piamente no que leem. Você tem que ler com alguma criticidade, evitando generalizar ou supor que tudo o que está ali é verdade pura. Não existe verdade única. O papel do historiador é se aproximar dela e saber que nunca vai chegar totalmente lá. O passado muitas vezes é inacessível.
Que obras da ficção retratam com eficiência o que os historiadores não conseguiram mostrar?
Fazem cerca de 20 anos que a historiografia sobre o final do Império e o início da República começou a falar que a maioria da população brasileira dessa época não deu muita atenção ao acontecimento [Proclamação da República]. Isso foi comprovado pela historiografia recentemente, mas na época, no calor do momento, Machado de Assis já tratava disso, por exemplo, na obra Isaú e Jacó. Ele satirizou, bem antes dos historiadores, o desinteresse das pessoas pela Proclamação da República. Artur de Azevedo falou disso em um conto. Lima Barreto mostra essa questão em Bruzundangas. A historiografia demorou quase cem anos para discutir com profundidade o assunto e a ficção fez isso a quente, na época.
O livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, não é outro exemplo importante?
Sem dúvida. Mas é um caso muito peculiar porque, na primeira e na segunda parte do livro, Euclides se preocupa com estudos geológicos e questões étnicas. Ele era um ficcionista, mas antes de tudo um engenheiro. E a obra é híbrida: meio ficção, meio reportagem jornalística, afinal ele foi enviado para cobrir a Guerra de Canudos para o Estadão. A terceira parte, que é a narração da guerra, tem um certo painel fabuloso, mas também há muito rigor na descrição do que ocorreu em Belo Monte.
O senhor afirma que o leitor deve se aproveitar da ficção para entender como era a visão de mundo de uma certa sociedade. Livros como A mulher de trinta anos, de Balzac, e Madame Bovary, de Flaubert, ajudam a pensarmos o que as mulheres dessas épocas sentiam?
É esse o sentido. Você não vai ler essas duas obras para tirar informações de um evento que se passou na época ou coisa que o valha. Mas vai encontrar ali essa espécie de diagnóstico de uma mulher que muda, de uma sociedade em movimento. Esses livros nos dão a percepção mais sensível da experiência histórica, que a própria história não pode oferecer.
Madame Bovary pode ser uma fonte para entendermos as mudanças que ocorriam em Paris?
Sim. A educação sentimental de Flaubert ocorreu em uma série de episódios que se passaram em 1848. Nessa época Paris estava conturbada, em meio a levantes. Várias das cenas são recriadas. Você vai confiar no que está ali? Não deve. Mas há algo perceptível na obra: a tensão que todos os personagens viviam. Essa é a sensibilidade histórica da ficção. Percebe-se com mais facilidade no romance do que em um livro de história que os parisienses viviam tensos. A cidade estava em polvorosa, cheia de barricadas e conflitos sociais. A ficção é capaz de expressar melhor, de forma mais sensível, o que foi a experiência histórica. A frieza da historiagrafia dificilmente conseguiria passar isso. Lendo o livro você analisa outro aspecto relevante: a importância dos romances baldios que circulavam na França naquele período e que eram a leitura base das moças burguesas. Uma vez li um comentário engraçado dizendo que Emma Bovary morreu de tanto ler romance ruim. É mais ou menos isso. Havia uma produção de romances baratos que circulavam em Paris. Por meio deles essas mulheres percebiam como suas vidas eram mesquinhas. Essa sensação de aprisionamento é o que vai corroendo Emma Bovary.
A história é a construção da narrativa, estamos sempre desenredando essa história. Se o narrador da ficção faz isso, o historiador, de certa forma, também o faz?
Essa é a grande semelhança entre história e ficção. Ambas são narrativas construídas a partir de outras narrativas, que também são uma representação. Quando usamos o documento histórico para escrever um livro, também construímos a narrativa em cima da narrativa. O ficcionista faz a mesma coisa, pega uma narrativa e a reinterpreta. Embora ambas sejam narrativas, historiador e ficcionista sejam intérpretes, o compromisso de um e de outro é diferente. É o compromisso que Aristóteles já descreveu na Poética: o poeta é superior ao historiador, porque o historiador pensa o que foi e o poeta pensa o que poderia ter sido.
Qual sua opinião sobre outros profissionais, como jornalistas, que se propõem a escrever livros de história?
Não vejo nenhum problema. Há alguns casos, sobretudo nas biografias, a que os historiadores nunca se dedicaram, e os jornalistas acabaram fazendo trabalhos excelentes. Como alguns livros do Ruy Castro ou do Fernando Morais. O que os historiadores reclamam é que alguns livros não são tão rigorosos na pesquisa historiográfica. É verdade, mas é melhor termos um livro sem tanto rigor do que não existir livro algum sobre o assunto. Podem ser obras feitas por qualquer profissional. Historiador não é só aquele que tem curso superior de História, mas quem pesquisa e escreve sobre história. Os dois maiores historiadores brasileiros não são graduados na área, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior.