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Do lusco-fusco ao noturno luar

O aroma de chá recém feito era mais que perceptível pelo ambiente, seguido do irresistível odor de croissants de chocolate, levados pela criada. Estava defronte à lareira, acesa, cumprindo sua função. A confortabilíssima poltrona de chintz lhe acomodava, com a mesinha acompanhando a bandeja que fora entregue, um livro pesado em seu colo, o cão sobre os seus pés.
Era noite, tarde. Não conseguia dormir, sabe-se lá o motivo, apenas sentia-se alegre consigo mesmo. Ao longe, por alguns momentos de perto, ouvia-se um prelúdio.
Não parava de pensar nela, naqueles tempos que se passaram, quando corriam pelos vastos vales que rodeavam sua casa de campo. O tempo não parecia correr, apenas parar e sua beleza era acentuada pelo lusco-fusco do dia.
O aroma de lavanda era forte, não só no ambiente, mas também em seus cabelos cor de ouro. Tudo nela resplandecia e seu sorriso parecia alongar-se por cada centímetro de seu rosto; nunca vira mulher mais bela. Sentia-se sortudo de tê-la conhecido, ter vivido bons e longos tempos com ela.
Faziam longos piqueniques no campo, o vento batia em seus rostos de forma suave, como se quisesse acariciar-lhes. O riacho era audível de longe e banhos nele são sempre bem vindos, com a cascata que corre acima dele, formando um lindo espelho de água límpida.
Foram anos e anos vivendo assim, intermináveis. No entanto, essa felicidade era quebrada em momentos por visitas, sobretudo a de seus pais, que não aprovavam o modo que gastava sua fortuna, tampouco sua esposa. Pouco importava-lhe o que eles achavam, pois a vida e a fortuna eram sua, não deles. Queria viver o máximo, do modo que mais lhe agradasse, sem preocupar-se com os outros. De tempos em tempos, iam ao vilarejo fazer compras. Ela adorava passar pelas lojinhas, comprando lembrancinhas diversas; certa vez, comprara um jogo de porcelanas para chá, mesmo sem necessidade. Estas eram usadas em nossos piqueniques e até hoje guardo-as, como um tesouro de valor incalculável.
O dia passava, lentamente. Acompanhávamos o nascer e o pôr-do-sol, dia após dia, sem preocuparmo-nos com nada. A noite, fazíamos muito amor, o qual perdurava noite afora. Nossas horas de sono eram poucas, mas nosso bem-estar aparentava superá-las.
Um certo dia, tudo parecera desmoronar-se, com a chegada de visitas inesperadas. Não sabia quem eram, até que ela ficou branca como um fantasma, prestes a desmaiar. Sua irmã ingrata viera informar-lhe que seus pais faleceram. Depois deste dia, nunca mais fora a mesma. Certos dias, parecia exalar profunda tristeza e ao mesmo tempo, contaminava tudo ao seu redor: os dias fechavam-se, o céu parecia derramar até o seu âmago.
Naquela noite nos deitamos, lembro-me bem como se fosse hoje. Tenho pesadelos intermináveis com o ocorrido e nem com ajuda consigo me livrar deles. Ela acordara várias vezes, gritando de medo e por consequência, acordei-me também. Procurei acalmá-la, fiz um chá de camomila para ela, mas de nada adiantou. Chegou uma hora que a noite correu, permaneci acordado, mas ela aparentou adormecer. Quando o sol já nascera bem nascido, mostrando no relógio quase meio-dia, notei que ela ainda permanecia dormindo.
Fui acordá-la, nada. Novamente, não consegui. Pela terceira vez, já desesperado, notei que ela estava fria; tomei seu pulso e não sentia sinal de vida. Comecei a gritar, chorar, fazendo com que os criados aparecessem no quarto e uma delas chamou o médico, que atestou o que eu descobri por conta própria. O mundo parecia ter acabado.
Alguns anos depois, tentei suicídio, sem sucesso. Fui salvo de última hora pelo vizinho, que, atento aos latidos do cachorro, socorreu-me correndo. Fiquei um bom tempo internado, principalmente na ala psiquiátrica, e quando saí de la, passei a consultar-me semanalmente.
Hoje, não consigo entender aquela minha decisão muito bem. Tivemos uma filha, que na época estava no orfanato, ainda bem, e que me enche de alegria. Tenho um fiel companheiro, meu cachorro. E sem contar meus amigos espalhados pelo país, os quais me apoiam sempre.
As horas transcorriam, o relógio anunciava as badaladas. Um frasco de narcótico estava na minha mão, a dúvida reinava cruel em minha pequena e insana mente. Deveria ou não tomá-los e tentar pela segunda vez? Não havia ninguém em casa, os vizinhos estavam distantes, logo, a chance de insucesso seria quase nula.
Arrisco ou não? As estrelas iluminavam-me fracamente pelo vidro da porta, tentando em vão me fazer desistir. Mas que sentido haveria em viver? Há muito a vida acabara, só tenho sofrido por esses anos. Abri o frasco. Ergui-o. Os segundos corriam, os minutos passavam-se. Estava prestes a virá-lo, quando surpreendi-me com o latido do cachorro, em uma vã tentativa de impedir o ato. Virei o frasco de uma vez e engoli aos poucos as cápsulas. Fui em direção ao meu quarto e deitei-me. O cachorro seguiu-me e deitou-se ao meu lado. Adormeci.
A manhã nasceu, não sentia mais nada, apenas uma brancura imaculada. Estarei nos céus?
 

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