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A mulher que se liquefazia

Mavericco

I am fire and air.
Usuário Premium
A mulher que se liquefazia
[size=x-small]Pode ser encontrado, com algumas correções em seu aspecto diagramatical, aqui[/size]

[align=justify] Que ela se liquefazia, isto talvez não seja novidade e talvez não cause mais tanto espanto. Esta desmaterialização profana, que se desencadeia por entre os buracos e as arestas, as frestas que deveriam de muito estar tapadas; todo este processo é bem noto pela história seja pela máscara da farsa, da tragédia e, lacônica e detestavelmente, também da comédia.

Nada, porém, do que pôde ser lido em editoriais ou em passadas fugazes pode revelar os bastidores sentimentais, a verdadeira planície povoada de toques e retoques que nenhum destes jornalistas nefastos fez questão de sequer indicar. Conhecia-a o suficiente para sentir e me deixar abalar por seu abalo quando diante das uníssonas nuvens negras no céu unicolor; o tapa, a piada, o riso que afetava a mulher que ela não conheceu mas que amava incondicionalmente; a leve mudança e o leve agitar de sua superfície de seu inteiro quando aquilo acontecia...

E esta história começou da forma mais comum possível. Tão é que o simples alapardamento destas manchas no geral não acarretaria nenhum efeito: nosso primeiro contato foi visual e maquinal, e nossas respostas eram tão calculáveis e tão previstas que nenhum de nós sequer cogitava ou cogitaria uma repetição, um descaminho ou um vagar por terras alheias do tempo e do espaço. Lembro-me apenas de seu cabelo caído e escorrido por entre seus ombros, meio molhados mas ainda assim duros o suficiente para mostrar seu revérbero em minha pupila dormente. Hoje sei que ela desceu no mesmo instante que desci; e hoje sei que sua morada era um pouco acima da minha, a algumas luzes e alguns intervalos verticais.

“Nos vemos outro dia, então...”, ela deve ter me respondido, ao que estendeu sua mão úmida que eu apertei com uma ojeriza que me despertou automaticamente. Estava chorando? Cristais de orvalho nasciam de suas pálpebras, e ela sorria continentalmente em outro mundo à parte do meu.

Desde então, só um escriturário universal e atento, eternamente atento, saberá contabilizar os dias, as horas, os minutos e os grãos de areia da ampulheta morosa que gastei decifrando cada passo daquela garota undíssona que se esgueirava irregularmente nas noites de Quarta, nas tardes de Sexta. Descobri que sua casa era tecnicamente acima da minha; e descobri também que sua encanação compartilhava da minha como numa aliança teológica. A verdade era que simplesmente não podia compreender a ideia de que meu vizinho superior tivesse problemas digestórios ou que o valha; na verdade, ele não existia, tanto ele nem aquele. A fossa simoníaca da qual me encontrava almejava apenas as labaredas ardentes dos Cupidos que voavam por entre os pelos da Ursa. Mapeava também, de forma astrológica e destrambelhada, seus passos e seus acordes naquela sinfonia noturna, em minha vigília de Joyce enlouquecido...

Nosso segundo encontro, outorgado e meticulosamente planejado (talvez nem tão meticuloso, talvez apenas outorgado o suficiente), se deu nos domínios daquela escada, daquele feudo do qual se escorria o rio de sua porta entreaberta. Ela descia com sua habitual face cansada e machucada pelos intempéries da existência, vestida com um cardigã desfiado e matizado de negro. De minha parte, o garanhão galopante, igualmente molhado pelo balde tectônico de sua indiferença, metido numa camiseta puída de fábrica com sapatos rangentes. Sabia que ela iria comprar algo, que ela tinha o troco em sua bolsinha, em seu aquário de desejos do qual eu desaguava todas as noites, de todas as formas.

“Acho que precisamos conversar.”
“Talvez precisemos.”
“Talvez? Achei que...”

Ectoplasmaticamente ela se encaminhou para sua caverna, e eu a segui em suas pegadas rupestres e escorregadias. Era um redil até arrumadinho, o que, em outras palavras, poderia significar a simplicidade do não tenho. Em uma mesa, duma madeira envernizada e cálida, um pequeno copo de vidro vazio e translúcido, acompanhado de um maço de cartas que eu bem sabia.

“Creio que você já saiba.”

Mas eu não sabia. Ela colocou seu dedo dentro daquele copo, tediosamente e como num ritual corriqueiro, e, com a mesma força de expressão dos pajés que rangem seus cocares nas noites mais contínuas que se pode pensar, despejou toda sua forma e todo seu querer em uns trezentos mililitros. Esta era a medida de todo meu desejo incalculável: trezentos mililitros, trezentos infinitamente subdivisíveis mililitros. O amor só pode ser calculado em seus aspectos e em seus pedaços e, gestaltisticamente, pedaços sempre maiores que o todo. Eu sabia que ela estava ali pois o todo (e não as bordas engorduradas, e não as bordas cróceas tais uma aliança debiloide) me remetia à sua imagem, me remetia à sua temperatura e, fundamentalmente, à sensação térmica que eu tinha quando levantava cuidadosamente aquele copo refletidor de meus olhos transmutados nos seus. Pousei-o, pousei-a plácida na mesa. Deveria parar de citar Camões e Gonzaga tão frequente e tão frenético.

No outro dia e no outro, e tantos outros outros que foram se formando de um mês, de uma semana e de horas esparsas que nossos assuntos triviais apenas caíam no tempo e na chuva que nunca vinha. Descobri que ela gostava de deixar a televisão ligada antes; e descobri que ela sentia uma certa preferência pela mesa envernizada e não pela mesa de vidro. O ser humano consegue aguentar o redor e o reflexo de si mesmo; mas jamais o reflexo do redor. Foi o que você me disse como desculpa, coisa que até hoje reflito quando limpo as vitrines daquele maldito antiquário. “Você se importaria se eu ligasse antes de você...” “Talvez sim”. Ah, esta relatividade que me massacra! A falta que hoje você me faz eu deveria ter sentido quando o estalo foi feito...

Listras axadrezadas, listras horizontais e perpendiculares, listras chamuscadas e errôneas, as listras das balas do confronto. A televisão é feita de listras, pois uniformizar é sua ideologia fundamental. “As pessoas também se uniformizam quando esquecem de considerar que isto tudo é resultado de uma movimentação, de uma atividade nefasta e um tanto quanto materialista do que simplesmente não deveria sê-lo...”, ela suspirou pela primeira vez em todos aqueles momentos de convivência, enquanto novas listras combinavam-se de forma simbiótica com as listas de mulheres assassinadas e sempre caladas. Talvez galhofeiramente, perguntei se o materialismo possuía relação até mesmo com isso. “A diferença é que elas não tem peso...” Pouco tempo depois ela colocou seu dedo dentro do copo e, por um instante, cogitei numa balança – coisa da qual não havia nenhuma necessidade de reclamar, pois meu braço havia se tornado irremediavelmente fraco e seu copo (e seu, apenas seu copo) relutantemente forte.

Após este dia, conversamos muito sobre muitas coisas. Nossa relação, na medida que se consumava pela troca, se consumava também pelo paradoxo do perda desta troca. Fundia-me com ela quando ela colocava seu dedo dentro do copo e quando eu também colocava dentro. Dizia-me que o materialismo ao qual se referia era essencialmente referencial; mas que a referência é um plano de fundo bastante agradável, principalmente quando em contraste com os sonhos (e também, e apenas em decorrência deste “também”, com as utopias). E também me mostrou as costuras e as voltas de sua bolsinha branca, adoravelmente artesanal e adoravelmente dela. Não aceitava a ideia ou fomentar o ter algo que não saísse de seus dedos e que servisse para uma atividade tão odiosa quanto aquela. “Às vezes é necessária a escravidão para que se concretize a libertação.” Perguntei se este mártir interior não a assustava; ela simplesmente me respondeu que ante a tortura e a devassa, a martirização era de longe a coisa mais bela a se pensar. Devo ter perguntado também quem seria este felizardo ser rumo e destino de seu sacrifício; tudo que ganhei foi um “você não sabe?”

E quantas e quantas outras perguntas eu fiz! Se todas não foram, todas eu não poderia... Minha voz – e no fundo eu percebo que eu sou – se tornava débil e fraca, pouco por pouco, enquanto eu deixava de observar as raízes de seus cabelos e entendia o quão belos eram o centro daqueles olhos vangoghianos...

Um certo dia, no entanto, tão certeiro quanto certo, uma cruel e viciosa assolou minha mente. Minha cama já não mais tinha o formato de meu corpo, os pratos e os talheres que luziam no crepúsculo ou na maximária da elipse da noite não luziam mais: apenas se calavam sob os piares dos morcegos e o infinito tear da aranha cronológica. Abri minha porta o mais silencioso que pude, trêmulo de vontade. Subi também a escada o máximo silencioso que pude, trêmulo de vontade. Quando, porém, encarei o olho mágico imane de sua porta, já não estava tão trêmulo. Apenas girei a maçaneta e abri a porta, apalpando a parede menos a procurar o interruptor que procurando um apoio... Um apoio! Meu único apoio estava na sacada, sentada, observando os pirilampos lá embaixo passarem aqui a acolá. “O que está fazendo? Sabe, estive pensando...” Ela olhou para mim e tentou, com todas suas forças, sorrir. Fracassou, conseguindo presentear-me apenas com os cantos de sua boca arqueando-se e escorrendo em minhas mãos...

E então ela desapareceu, subiu ao céu tão límpida quanto o choro das jerarquias. Tiritante retirei-me, carregando em meu bolso sua redoma acendrada. Já não tinha mais o mesmo desânimo; apenas cuidava-me em não quebrar, enquanto engolia meu pranto continental, minha pergunta de quando iria chover.[/align]
 
Trezentos mililitros. Não entendi o ritual do copo. Existe uma grande diferença entre substantivos abstratos e concretos. Desejo incalculável e mensurável. Trezentos mililitros infinitamente subdivisíveis. Acho o sub um tanto redundante nesse caso.

Ficções. Mavericco e os X-men.

A grande diferença entre você e o JLM é que ele não escreve imane nem undíssona, nem cita Joyce.

Boa história, Mavericco. Continue assim porque nós leitores somos ávidos.
 
Agora que você comentou, de fato o sub talvez seja redudante... Ou talvez simplesmente para indicar que até mesmo a palavra é divisível.

E como você citou X-Men, acabei por me lembrar dos Wondertwins:
img_wonder_twins2.jpg


E quanto ao ritual do copo... Não nego o fundo realístico da coisa (se ela se liquefizesse em qualquer lugar, isto poderia ser estruturalmente perigoso); mas ainda continuo preferindo o fundo alegórico -- nesta e também noutras passagens.
 

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