O fenômeno latino da década
Festejado por uns e visto com desconfiança por outros, o escritor chileno Roberto Bolaño, falecido em 2003, deixou uma obra tão volumosa quanto forte, marcada por tensões, ambivalências e pelo desencanto com a vida social e política contemporânea
Falecido em 2003, o escritor chileno Roberto Bolaño não viveu tempo suficiente para aproveitar o fenômeno editorial em que se tornou, especialmente nos Estados Unidos, onde foi recebido como um dos maiores escritores da década e se converteu em êxito comercial. Por outro lado, como sugerem seus detratores, se não tivesse morrido tão jovem (aos 50 anos), seria impossível vendê-lo como esse rebelde que as editoras o transformaram. Não são poucos os críticos que têm se debruçado sobre o “mito Bolaño”, acusando a tradução para o inglês de romantizar suas narrativas, dando- lhe ares de Jack Kerouac, e as editoras de distorcerem sua biografia para fazer dele um jovem revolucionário. E, pouco a pouco, o mito Bolaño também invade o Brasil. Qual é a nossa sorte? A sua obra se sustenta e transcende qualquer façanha biográfica.
A produção do escritor se concentra em um brevíssimo espaço de tempo: de 1996 até sua morte em 2003. A lenda reza que Bolaño só começou a dedicar-se à escrita após a primeira crise hepática, quando percebeu que seu tempo de vida seria bastante limitado. A partir desse momento, escreveu desesperadamente. Como diz seu colega Enrique Vila-Matas, “tirar Bolaño de sua escrivaninha seria como tirar um morto da sepultura”. No Brasil, até o presente momento, foram publicados seis de seus livros, todos pela Companhia das Letras. Só em maio de 2010 a editora brasileira lançará 2666, romance póstumo de 1.100 páginas que é considerado sua obra-prima.
Para o leitor lusófono, uma boa porta de entrada na obra do autor é Estrela Distante, livro de 1996 publicado mês passado. Situado no Chile às vésperas, durante e após o golpe militar, Bolaño trabalha o saturadíssimo tema da ditadura, explorado até o limite na literatura latino- americana, mas o faz com um frescor que dá a impressão de que é um pioneiro no tema. A trama, centrada na figura de um aviador misterioso que escreve poemas no céu com fumaça, ao mesmo tempo em que é um assassino frio a serviço do governo, serve de pretexto para Bolaño explorar seus temas mais recorrentes: a figura do intelectual e as nebulosas relações entre ética e estética, cultura e poder.
Como na máxima de Walter Benjamin, que afirma não haver documento de cultura que não seja também um documento de barbárie, a enigmática figura do poeta-assassino parece mostrar que a cultura e a razão também engendram seus monstros. O narrador de Bolaño perde-se então na perplexidade daquele que busca compreender, mas que nunca encontrará uma solução dialética possível para um homem que une dentro de si arte e violência.
Distanciando-se dos autores engajados que marcaram o boom latino-americano, como Gabriel García Márquez, a prosa de Bolaño é marcada por uma ambivalência e um desencanto forte com a política. Seus livros retratam intelectuais, escritores, poetas e leitores que vivem em um mundo sem lugar para a cultura, ao mesmo tempo que a cultura é tudo para esses personagens. Como escreveu a revista norte-americana n+1, “o escritor em Bolaño é ao mesmo tempo um herói e um idiota”.
Isto fica bastante claro em Os Detetives Selvagens, o mais extenso livro de Roberto Bolaño lançado no país. A trama central (pois há centenas de enredos menores paralelos) gira em torno de poetas marginais da década de 70 que viajam ao deserto mexicano atrás de Cesarea Tinajero, uma fictícia poeta desaparecida. A literatura surge como força-motriz que impulsiona as ações dos personagens. Nada é tão simples, entretanto. O núcleo de Os Detetives Selvagens é composto de dezenas de testemunhos, englobando mais de duas décadas, alternando de forma compulsiva os narradores. Essa sinfonia de vozes tão radical é dos grandes engenhos do autor: impede uma visão única sobre um fato, rompendo também com a possibilidade de uma posição política determinada e estanque. A poesia podia ser tudo para aquele grupo de poetas – mas e para o resto do mundo?
Uma premissa bastante similar – a busca por um autor desaparecido – é o início de 2666, o monstruoso livro póstumo do autor. Monstruoso em múltiplos sentidos: em extensão (1.100 páginas), em amplitude (é um romance composto de cinco pequenos romances e vai da Alemanha na década de 40 até os dias de hoje no México) e tematicamente (o centro do livro são as centenas de mulheres assassinadas em Ciudad Juárez, que no livro recebe o nome de Santa Teresa). Lançada em 2004 no mundo hispânico, a obra foi finalizada em termos de enredo, mas não estilisticamente, graças à morte prematura do seu autor. Nunca saberemos o que Bolaño teria melhorado ou cortado ali, embora o leitor não seja capaz de perceber nada disso, pois, da forma como ele o deixou, o livro já atraiu inúmeros gritos de “obra-prima” por parte da crítica.
A experiência de leitura de 2666 é bastante extrema. Apesar da sua dimensão, boa parte do livro é fluída e de leitura rápida, ao contrário de outros autores que lançam romances de grande porte, como Thomas Pynchon. Não obstante, a quarta e maior parte, focada nos crimes ocorridos na cidade fronteiriça, traz uma prosa quase jornalística, descrevendo com uma frieza brutal morte após morte. O leitor se sente como um detetive estudando os casos e procurando um sentido naquilo tudo. A estrutura de 2666 também parece remontar os principais motifs de Bolaño: a primeira e a última parte têm a própria literatura como foco, e, no centro do romance, há essa série de mortes inexplicáveis, como se a violência estivesse englobada pela cultura.
É a partir dessas tensões incômodas e arenosas que a obra de Bolaño se constrói. Entre o quixotismo dos jovens poetas apaixonados pela literatura de Os Detetives Selvagens e a violência incompreensível da América Latina de 2666, o escritor chileno compôs livros que ressoarão por muito tempo e que podem, quem sabe, curar a desilusão de alguns críticos com a literatura contemporânea.
ANTÔNIO XERXENESKY | Ficcionista, autor do romance Areia nos Dentes (Não Editora)