No mundo ideal, ninguém quer saber o fim das histórias antes de começar a lê-las. Ou melhor, a preocupação não é a de apenas preservar o final como um mistério, mas também todos os pontos fundamentais da trama, página 45, 81, 232, e assim por diante. Em debates sobre livros que não leram, é comum que a gente veja pessoas nervosas em seus assentos sofrendo da apreensão-de-saber-demais-sem-querer; sempre há o risco do mediador, ou do próprio autor, dar um passo para além da sinopse e estragar tudo. Eu posso querer ler esse livro, POR FAVOR NÃO ESTRAGUE TUDO OBRIGADA.
Para quem acompanha séries de tevê, acho que é preciso rebolar bastante para não acabar encontrando uma descrição detalhada do que diabos acontecerá no final da temporada. Culpa aí dessa era de fruição compartilhada e preciso-dar-minha-opinião-sobre-todas-as-pautas-do-dia. E, com as novelas, parece realmente pior, bastando entrar numa fila de supermercado em qualquer parte do Brasil (aquelas revistas todas alinhadas) para saber que fulano será assassinado a tesouradas ainda naquela semana. Mesmo que você não saiba quem é fulano. Mesmo que você sequer tenha televisão em casa, e a última novela que você acompanhou foi, sei lá, A próxima vítima? Você lembra de quando mataram o personagem do José Wilker dentro do carro e que o corpo caiu sobre a direção, fazendo com que a buzina emitisse um barulho poderoso, contínuo, desesperador, você nunca esqueceu disso e das trocas de figurinha necessárias para completar o álbum de Que rei sou eu?, essas coisas formaram o seu caráter, não adiantar negar agora sua brasilidade, Dara e o cigano Igor ainda discutem em uma cobertura do Recreio dentro de você.
Não existe mundo ideal e não existe leitor ideal. Quando eu estava escrevendo Todos nós adorávamos caubóis, a fantasia que eu tinha criado na minha cabeça era a seguinte: os leitores começariam o romance mal sabendo do que se tratava aquela história. Alguns desconfiariam de cara que havia uma certa tensão sexual entre Cora e Julia (essas provavelmente seriam as leitoras been-there-done-that, já-agarrei-uma-amiga-no-banheiro, etc); outros demorariam mais um tempo, só tendo certeza de fato ao ouvirem a própria narradora discorrer sobre sua sexualidade e a embolada história pregressa com Julia.
Eu estou estragando tudo? Eu não estou estragando tudo. Isso simplesmente porque, fora do mundo ideal, ficou bem difícil você pegar esse livro sem ter uma ideia prévia da trama. É impossível pegar qualquer livro hoje em dia sem ter uma ideia prévia da trama (e preciso confessar aqui que eu detesto mesmo livros sem orelha ou contracapa, e que portanto o deixam completamente no escuro). No caso do Todos nós adorávamos caubóis: ei, há uma cena de sexo entre duas meninas na quarta capa; todas as resenhas vão mencionar a relação ambígua de Cora e Julia; em uma porção de debates e entrevistas, eu vou corar falando dessa sexualidade-feminina-volátil-e-um-bocado-contemporânea. Então esqueça o leitor desavisado. O leitor desavisado é tão irreal quanto as Condições Normais de Temperatura e Pressão das aulas de química.
Ainda assim, o final de uma história continua sendo um território sagrado, salvo para um sujeito que me relatou esses dias seu método de leitura: lê algumas páginas do início, vai para o último capítulo e, se achar que a coisa vale a pena, faz o caminho todo. Radicalismos à parte, acho curioso que, com os meses e os anos passando, é muito comum que a gente lembre de detalhes irrelevantes de certo livro lido, algumas cenas-chave, talvez uns traços de ambientação, um tom dominante, um ou outro assunto discutido, mas raramente de como aquela história termina.
O fim é a parte que a gente esquece mais fácil.