Eu não creio que seja de todo impossível. A sanguinolência e a vivacidade nas batalhas eu consigo ver bem nitidamente, bastando observar os contra-ataques dos portugueses para com os mouros (na primeira vez que li cheguei até mesmo a me perguntar: necessitava-se disso tudo?). O caráter mitológico não suscita muitas dúvidas: temos deuses pagãos numa época onde o cristianismo estava bem consolidado... Esses deuses atuam sobre a vida dos lusíadas da mesma forma que atuavam sobre os eneiadas; mas é essa diferença histórica que faz do relato dos Lusíadas tão próximo da Iliada ou da Odisseia.
O caráter humanístico eu não julgo de fato existir: os lusíadas estão mais próximos dos eneiadas do que dos gregos ou dos troianos... O destino dos lusíadas, o fardo que eles carregam nas costas, é maior que o dos companheiros de Eneias. Este sente saudade de sua Troia e, em dado momento da Eneida, chega até mesmo a fundar uma cidade e viver nela julgando estar na "terra prometida". Os portugueses, em contrapartida, são como se fossem meros bonecos ou fantoches dos deuses; são mais honrosos, sob certa ótica, pois provavelmente não parariam numa ilha qualquer e achariam que esta é a terra obstinada. Estão mais próximos dos valores heroicos da Iliada que dos valores da Eneida, que são mais humanos: Vasco não choraria se porventura tivesse que abandonar sua esposa ou seu filho assim como Eneias chorou...
Camões quis engrandecer o homem português e Virgílio quis simplesmente engrandecer o homem. A diferença é que esse homem virgiliano é mais palpável e mais próximo de nós que o homem camoniano que se aproxima do homem homérico, em seus valores e idealizações. O homem camoniano, o homem homérico é um heroi, um mártir. O homem virgiliano, por mais que tente, não consegue alcançar um nível de desconfiguração tão grande.
António José Saraiva, alinhado às teses do marxismo, lamentou a falta de substância dos seus personagens, que para ele são mais estereótipos do que pessoas reais, não são heróis de carne e osso, e carecem de robustez e vigor. (Wikipedia)
O que pode ser contestado, visto que o homem o qual José Saraiva se refere é provavelmente o homem moderno, o homem virgiliano; ao passo que o homem camoniano/homérico é feito em moldes clássicos...
Hegel, embora elogiando várias qualidades d' Os Lusíadas, criticou a incongruência entre o tema nacionalista e o uso de modelos formais clássicos e italianos, além de apontar uma presença excessiva da voz pessoal do poeta, em várias passagens em que usa a primeira pessoa do singular para tecer uma variedade de comentários, interrompendo o fluxo da ação épica. (Wikipedia)
A justificativa disso, pra mim, se encontra em:
Sérgio Buarque de Holanda disse que as cores épicas com que Camões pintou os feitos lusitanos não correspondem tanto a "uma aspiração generosa e ascendente", mas espelham antes uma retrospeção melancólica da glória extinta que mais desfigurou do que fixou a verdadeira fisionomia moral dos agentes da expansão marítima. (Wikipedia)
Coisa que concordo: Camões pintou um Portugal de seus sonhos, o que não desmerece o relato épico do nosso grande poeta, visto que o grego de Homero ou o romano de Virgílio ou a Beatriz de Dante são igualmente sonhados e idealizados... Vejo inclusive como sendo um ingrediente fundamental da poesia épica: o sonho do artista, a visão do artista.