Melkor- o inimigo da luz
Senhor de todas as coisas
[Melkor, o inimigo da luz] [O Fim]
Foi um dia maravilhoso. Saiu do clube com um sorriso invejável. Primeiro a caminhada até a entrada, depois os momentos de leitura no tempo ocioso, o encontro com sua tia, o treino, o fim do mesmo, o lanche. Tudo maravilhoso e estranho.
Decidiu caminhar até o ponto, assim não precisaria de dois ônibus e o restante do dinheiro daria a qualquer mendigo. Há dias queria dar algo à velha que sentava com um sorriso perverso em uma esquina por onde tinha que passar, mas nunca tinha dinheiro no bolso. Agora teria.
Atravessou a rua, o ponto ficava no outro lado da avenida, longe dali, mas no outro lado. Incrível como os pedestres não respeitam sinais de transito. Os acidentes, deste modo, tornam-se inevitáveis. Será que essas pessoas sabem, ao atravessarem a rua imprudentemente, que macularão a vida do infeliz que os atropelar? Não é questão de apenas morrer. Deixarão, ah como ele gostaria que soubessem disto, alguém se sentindo culpado, sentimento tão terrível este, para toda eternidade, e tudo que é eterno é triste.
O vento acariciava lentamente seus cabelos com seus braços longos, isso não o incomodava mais há muito tempo, chegava a ser prazeroso. Era vento de inverno aquecido pelo sol, era ar da cidade, poluído, sim, mas não deixava de ser suave.
Por onde os prédios permitiam, o sol ousava esticar seus raios e tocar o solo. Andava alternando entre áreas claras e escuras, o mais belo contraste que poderia ver naquele dia. Ou talvez não, pois não havia o branco e o preto, o pobre e o rico, o bonito e o feio; todos por ali?
A mendiga não estava lá. O dinheiro ficou em seu bolso junto à nota de cinqüenta reais que sua mãe lhe deu para pagar a aula de inglês. Tinha medo de que todo aquele dinheiro caísse e se perdesse, seus pais não tinham mais a situação financeira que haviam tido, aquele dinheiro significaria coisas que não teria, caso sumisse.
Passou franzindo o cenho pela urina que manchava a bela parede de uma livraria. Pichações, vandalismos... Estava cansado de tudo aquilo. Tentava, em vão, imaginar o que levava alguém a cometer atos como aqueles. Nunca conseguiria, e bem o sabia, entender alguém que pertencia a uma realidade tão diferente da dele. Alguém que sofresse por agressões físicas, não decepções psicológicas; que sofresse por causa das drogas que usava, não por amor... Resumidamente, alguém em que até mesmo as dores se diferiam. Não, nunca entenderia.
Já eram quatro e meia da tarde. Não sabia se conseguiria assistir seu programa favorito na televisão. Incrivelmente, porém, aquilo naquele dia não lhe importava. Estava feliz ali, com seu moletom vermelho e sua calça preta, caminhando entre tantas pessoas. E pensar que cada uma delas tinha consciência, via o mundo de um jeito totalmente diferente!
Viu a mulher com uma touca vendendo pipoca e em seu interior pensou em comprar um bom saco de pipoca salgada. Mas não comprou, não tinha dinheiro trocado.
Não pôde deixar de ver o dono da banca acenar para ele, mesmo tendo certeza de não conhece-lo de lugar algum, e reparar na beleza que lhe faltava. Cabelos escassos, dentes podres, olhos amarelados... Uma maldição que andava!
Entrou na papelaria e por um tempo permaneceu ali, na entrada, cogitando se compraria uma borracha nova ou não. Decidido, foi até o balcão e pediu uma borracha. Não, aquela era muito cara, podia ser a mais barata mesmo. A mulher do caixa, uma senhora de óculos cujo olhar mostrava que não havia simpatizado com ele, esticou suas mãos repugnantes e ele depositou o dinheiro. Guardou a borracha na sua mala de uma alça só e saiu da loja.
Sorriu. Todas visões da cidade passaram por sua mente enquanto seguia seu caminho. O prédio, o ônibus, o homem alto de terno, os postes ainda nem acessos, o cigarro no chão esmigalhado por um salto impiedoso, as ambulâncias ironicamente sem pressa, o vendedor de cartões telefônicos em sua barraca suja, a banca onde revistas infantis se misturavam com filmes pornográficos, o avião e seu rastro de fumaça, o hippie, o casal sem dimorfismo sexual, as lojas e mais lojas (e os trocadilhos imbecis que vinham à sua cabeça quando via uma drogaria), o mendigo usando de sua deformidade para ganhar dinheiro, a moeda afundada no asfalto, o ronco dos motores, a moto que caiu, a ave que voou, o restaurante de higiene duvidosa, as pessoas se esbarrando, os anúncios obscenos no orelhão, o rebelde encarando o conservador, o cartaz no poste, as mudas de árvores (que todos sabiam que não cresceriam), o judeu, o homem fardado, a perua escolar, a construção antiga que alojava um banco, o chiclete grudado no pé, a velha de roupas floridas, o vendedor de relógios na rua (que não responderia com exatidão se perguntassem que horas eram, ninguém o sabia), o ponto de ônibus lotado, o Office boy, a cabeça de um homem saindo de um bueiro, o trecho em construção, a goteira de água suja caindo do toldo, o loiro risonho, a folha voando, o cheiro de hortelã, o anel dançando nos dedos inquietos da moça, o manco, a revelação em uma hora, o ladrilho cuidadosamente colocado no chão com cimento fresco, o sex shop (e a toy store), o assobio, a camiseta listrada, a saída de um estacionamento qualquer, brincos à venda (pobres aves!), o possível ator, o adolescente e sua mochila, o torcer de nariz, a piscadela, os guardas conversando... Tudo era tão comum! Tudo tão corriqueiro!
Ele já sabia da onda que se ergueu do mar e das estrelas que esquecemos de contar, já conhecia aquelas imagens tão bem como se passassem todo dia na sua frente. E de fato passavam! As três morenas caminhando juntas, a mulher que dividia o ônibus com ele todo dia sem que tivessem trocado uma sequer palavra, a atendente do fast food que incrivelmente sempre o estava de bom humor (talvez fosse paga para isto), a velha mendiga com olhar perverso (que naquele dia não estava lá)... Todas estas pessoas tão tediosamente comuns que insistiam em segui-lo em sua rotina, como as odiava!
Mesmo assim, a vida era doce naquela tarde. Suas pernas não reclamavam, talvez seu joelho tenha começado a reclamar após ser tropeçado naquela calçada, mas andar nunca pareceu tão fácil. O céu não estava nem um pouco limpo, mas estava claro.
Olhou por um tempo a doméstica esperando o ônibus e perguntou-se que tipo de esperanças tinha uma pessoa como aquela. Será que tinha um marido, filhos, pais? O que passava pela cabeça daquela alegórica criatura? Quantas vezes havia indagado o que fazia no mundo e quantas vezes havia aceitado o silêncio como resposta?
Tentou entendê-la. Talvez, sem estudo, tenha optado por trabalhar para uma família como uma condenada... Mas aquilo era tão estranho! Para ele, nascido em berço de prata, não fazia sentido alguém se humilhar por uns trocados. Viver com os três salários mínimos que ela devia ganhar? Impossível!
Mal sabia ele, porém, que humilhante, para aquela mulher, que naquele dia havia sido demitida, era não trabalhar, era depender do dinheiro dos pais. Pobre garoto, não sabia que aquela criatura, cuja bolsa era uma ridícula imitação de Louis Vuitton, era, para todos os efeitos, mais rica do que ele.
Então, sem aviso, veio a mulher com os olhos cheios d’água. Não era parte da sua rotina, era linda, decerto um tipo comum de mulher, mas era algo tão novo para ele que não pôde deixar de contempla-la. As lágrimas que começavam a brotar eram tão graciosas que não soube esconder seu deslumbre, o que levou, irremediavelmente, ao olhar ultrajado da mulher. Ela continuou seu caminho, ofendida, e nunca soube que a sua imagem foi a última de que aquele garoto pôde se lembrar.
Uma mão o arrastou para um beco, sua bolsa de uma alça só foi arrancada, seus bolsos foram revirados e o dinheiro lá escondido foi roubado. O último pensamento que teve, antes do triste véu vermelho cobrir sua visão, foi que haviam roubado seu dinheiro e não poderia pagar a sua aula de inglês.
Foi um dia maravilhoso. Saiu do clube com um sorriso invejável. Primeiro a caminhada até a entrada, depois os momentos de leitura no tempo ocioso, o encontro com sua tia, o treino, o fim do mesmo, o lanche. Tudo maravilhoso e estranho.
Decidiu caminhar até o ponto, assim não precisaria de dois ônibus e o restante do dinheiro daria a qualquer mendigo. Há dias queria dar algo à velha que sentava com um sorriso perverso em uma esquina por onde tinha que passar, mas nunca tinha dinheiro no bolso. Agora teria.
Atravessou a rua, o ponto ficava no outro lado da avenida, longe dali, mas no outro lado. Incrível como os pedestres não respeitam sinais de transito. Os acidentes, deste modo, tornam-se inevitáveis. Será que essas pessoas sabem, ao atravessarem a rua imprudentemente, que macularão a vida do infeliz que os atropelar? Não é questão de apenas morrer. Deixarão, ah como ele gostaria que soubessem disto, alguém se sentindo culpado, sentimento tão terrível este, para toda eternidade, e tudo que é eterno é triste.
O vento acariciava lentamente seus cabelos com seus braços longos, isso não o incomodava mais há muito tempo, chegava a ser prazeroso. Era vento de inverno aquecido pelo sol, era ar da cidade, poluído, sim, mas não deixava de ser suave.
Por onde os prédios permitiam, o sol ousava esticar seus raios e tocar o solo. Andava alternando entre áreas claras e escuras, o mais belo contraste que poderia ver naquele dia. Ou talvez não, pois não havia o branco e o preto, o pobre e o rico, o bonito e o feio; todos por ali?
A mendiga não estava lá. O dinheiro ficou em seu bolso junto à nota de cinqüenta reais que sua mãe lhe deu para pagar a aula de inglês. Tinha medo de que todo aquele dinheiro caísse e se perdesse, seus pais não tinham mais a situação financeira que haviam tido, aquele dinheiro significaria coisas que não teria, caso sumisse.
Passou franzindo o cenho pela urina que manchava a bela parede de uma livraria. Pichações, vandalismos... Estava cansado de tudo aquilo. Tentava, em vão, imaginar o que levava alguém a cometer atos como aqueles. Nunca conseguiria, e bem o sabia, entender alguém que pertencia a uma realidade tão diferente da dele. Alguém que sofresse por agressões físicas, não decepções psicológicas; que sofresse por causa das drogas que usava, não por amor... Resumidamente, alguém em que até mesmo as dores se diferiam. Não, nunca entenderia.
Já eram quatro e meia da tarde. Não sabia se conseguiria assistir seu programa favorito na televisão. Incrivelmente, porém, aquilo naquele dia não lhe importava. Estava feliz ali, com seu moletom vermelho e sua calça preta, caminhando entre tantas pessoas. E pensar que cada uma delas tinha consciência, via o mundo de um jeito totalmente diferente!
Viu a mulher com uma touca vendendo pipoca e em seu interior pensou em comprar um bom saco de pipoca salgada. Mas não comprou, não tinha dinheiro trocado.
Não pôde deixar de ver o dono da banca acenar para ele, mesmo tendo certeza de não conhece-lo de lugar algum, e reparar na beleza que lhe faltava. Cabelos escassos, dentes podres, olhos amarelados... Uma maldição que andava!
Entrou na papelaria e por um tempo permaneceu ali, na entrada, cogitando se compraria uma borracha nova ou não. Decidido, foi até o balcão e pediu uma borracha. Não, aquela era muito cara, podia ser a mais barata mesmo. A mulher do caixa, uma senhora de óculos cujo olhar mostrava que não havia simpatizado com ele, esticou suas mãos repugnantes e ele depositou o dinheiro. Guardou a borracha na sua mala de uma alça só e saiu da loja.
Sorriu. Todas visões da cidade passaram por sua mente enquanto seguia seu caminho. O prédio, o ônibus, o homem alto de terno, os postes ainda nem acessos, o cigarro no chão esmigalhado por um salto impiedoso, as ambulâncias ironicamente sem pressa, o vendedor de cartões telefônicos em sua barraca suja, a banca onde revistas infantis se misturavam com filmes pornográficos, o avião e seu rastro de fumaça, o hippie, o casal sem dimorfismo sexual, as lojas e mais lojas (e os trocadilhos imbecis que vinham à sua cabeça quando via uma drogaria), o mendigo usando de sua deformidade para ganhar dinheiro, a moeda afundada no asfalto, o ronco dos motores, a moto que caiu, a ave que voou, o restaurante de higiene duvidosa, as pessoas se esbarrando, os anúncios obscenos no orelhão, o rebelde encarando o conservador, o cartaz no poste, as mudas de árvores (que todos sabiam que não cresceriam), o judeu, o homem fardado, a perua escolar, a construção antiga que alojava um banco, o chiclete grudado no pé, a velha de roupas floridas, o vendedor de relógios na rua (que não responderia com exatidão se perguntassem que horas eram, ninguém o sabia), o ponto de ônibus lotado, o Office boy, a cabeça de um homem saindo de um bueiro, o trecho em construção, a goteira de água suja caindo do toldo, o loiro risonho, a folha voando, o cheiro de hortelã, o anel dançando nos dedos inquietos da moça, o manco, a revelação em uma hora, o ladrilho cuidadosamente colocado no chão com cimento fresco, o sex shop (e a toy store), o assobio, a camiseta listrada, a saída de um estacionamento qualquer, brincos à venda (pobres aves!), o possível ator, o adolescente e sua mochila, o torcer de nariz, a piscadela, os guardas conversando... Tudo era tão comum! Tudo tão corriqueiro!
Ele já sabia da onda que se ergueu do mar e das estrelas que esquecemos de contar, já conhecia aquelas imagens tão bem como se passassem todo dia na sua frente. E de fato passavam! As três morenas caminhando juntas, a mulher que dividia o ônibus com ele todo dia sem que tivessem trocado uma sequer palavra, a atendente do fast food que incrivelmente sempre o estava de bom humor (talvez fosse paga para isto), a velha mendiga com olhar perverso (que naquele dia não estava lá)... Todas estas pessoas tão tediosamente comuns que insistiam em segui-lo em sua rotina, como as odiava!
Mesmo assim, a vida era doce naquela tarde. Suas pernas não reclamavam, talvez seu joelho tenha começado a reclamar após ser tropeçado naquela calçada, mas andar nunca pareceu tão fácil. O céu não estava nem um pouco limpo, mas estava claro.
Olhou por um tempo a doméstica esperando o ônibus e perguntou-se que tipo de esperanças tinha uma pessoa como aquela. Será que tinha um marido, filhos, pais? O que passava pela cabeça daquela alegórica criatura? Quantas vezes havia indagado o que fazia no mundo e quantas vezes havia aceitado o silêncio como resposta?
Tentou entendê-la. Talvez, sem estudo, tenha optado por trabalhar para uma família como uma condenada... Mas aquilo era tão estranho! Para ele, nascido em berço de prata, não fazia sentido alguém se humilhar por uns trocados. Viver com os três salários mínimos que ela devia ganhar? Impossível!
Mal sabia ele, porém, que humilhante, para aquela mulher, que naquele dia havia sido demitida, era não trabalhar, era depender do dinheiro dos pais. Pobre garoto, não sabia que aquela criatura, cuja bolsa era uma ridícula imitação de Louis Vuitton, era, para todos os efeitos, mais rica do que ele.
Então, sem aviso, veio a mulher com os olhos cheios d’água. Não era parte da sua rotina, era linda, decerto um tipo comum de mulher, mas era algo tão novo para ele que não pôde deixar de contempla-la. As lágrimas que começavam a brotar eram tão graciosas que não soube esconder seu deslumbre, o que levou, irremediavelmente, ao olhar ultrajado da mulher. Ela continuou seu caminho, ofendida, e nunca soube que a sua imagem foi a última de que aquele garoto pôde se lembrar.
Uma mão o arrastou para um beco, sua bolsa de uma alça só foi arrancada, seus bolsos foram revirados e o dinheiro lá escondido foi roubado. O último pensamento que teve, antes do triste véu vermelho cobrir sua visão, foi que haviam roubado seu dinheiro e não poderia pagar a sua aula de inglês.