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Formas de matar um escritor

  • Criador do tópico Calib
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Calib

Visitante
Não faz dez minutos que uma amiga minha publicou no Facebook a seguinte frase, atribuída por ela a Shakespeare:
"Ainda bem que sempre existe outro dia, e outros sonhos, e outros risos, e outras pessoas, e outras coisas."
Daí desconfiei que ela estivesse a ler Shakespeare de verdade e joguei no Google a primeira sentença, e os resultados apontavam autoria de Shakespeare, Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu, pelo menos esses três.
Mas encontrei por acaso este texto do Michel Laub, de 2013, que eu acabei lendo e achando bacana. Ei-lo.


Formas de matar um escritor

Exemplo de frase atribuída a Clarice Lispector na internet: "Ainda bem que sempre existe outro dia, e outros sonhos, e outros risos, e outras pessoas, e outras coisas". Outro exemplo: "Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome".

Ambas estão num site que, reagindo ao que o mundo virtual faz contra autores como Luis Fernando Verissimo e Caio Fernando Abreu, dispõe-se a conferir a autenticidade de citações. Tarefa digna, embora eu fique em dúvida sobre o que é pior: a Clarice falsa (sonhos e pessoas) ou a verdadeira (desejo sem nome).

Quer dizer, a Clarice transformada em autoajuda ou a tirada de contexto, numa vulgarização do registro original. A segunda frase é o ponto de vista de uma personagem --a protagonista de "Perto do Coração Selvagem"--, e fora do ambiente claustrofóbico e idiossincrático do romance vira apenas banalidade.

Há muitas formas de matar um escritor, e a mais segura talvez seja botá-lo num pedestal, escondendo as falhas e oscilações que o tornam humano --e, portanto, próximo do que a literatura deve ser. Acontece quando o transformamos num oráculo, com verdades a revelar sobre temas que pouco ou nada têm a ver com os seus.

Caso dramático é o de ficcionistas cujo mérito maior não é a capacidade de síntese, ou mesmo as ideias. "Grande Sertão: Veredas" é um clássico por vários motivos, um deles o acúmulo caudaloso e virtuoso de termos raros e palavras inventadas por Guimarães Rosa, num ritmo e ambientação a serviço de uma grande narrativa de aventura.

É um efeito que só se potencializa por causa desse fluxo --ao qual o leitor precisa dedicar tempo, paciência e atenção diversos do que exige uma simples frase. Destacar do romance uma fala como "pão ou pães, é questão de opiniães", do jagunço Riobaldo, é escolher (e indiretamente apontar como essência) apenas o que Rosa tem de diluído --uma celebração algo ingênua, ou algo demagógica, de uma suposta sabedoria popular.

Se a fala até pode ser charmosa pela sintaxe, sonoridade e empatia que evoca no contexto de "Grande Sertão", na vida real equivale a uma criança dizendo espertezas diante de adultos. "Viver é muito perigoso", outra máxima conhecida do livro, não é uma tolice, ok, mas repita-a sem a muleta de um medalhão das letras, em tom compenetrado, numa festa ou reunião de trabalho, e saboreie o efeito que causará.

Claro que citar é inevitável. Há autores talhados para isso, de frasistas como Nelson Rodrigues e Paulo Francis a romancistas cujos diálogos valem de maneira autônoma. Isso ocorre quando os personagens estão no mesmo nível do criador, sem que o último precise se rebaixar ou distanciar --com ironia, crueldade, paternalismo ou condescendência-- para exprimir a voz dos primeiros.

Também quando não emprestamos às frases uma filosofia moral adaptada a conveniências. Transformar Rubem Braga num militante da ecologia, como fez um programa recente de TV por causa de um trecho sobre passarinhos, é alistar o cronista numa batalha que não era a sua, ao menos nos termos ideológicos de hoje. E trair o que ele tinha de particular, sua melancolia cética e nunca açucarada, na contramão de qualquer bom sentimento da moda.

Da mesma forma, "o que desejo ainda não tem nome" talvez diga algo de "Perto do Coração Selvagem", mas usar isso em confissões de Facebook --como se houvesse grande transcendência nos anseios indizíveis do eu feminino-- é puxar para si uma sugestão de mistério, profundidade, alma complexa. Um egocentrismo tão contemporâneo e distante do que o texto de Clarice significou, inclusive em risco de incompreensão e fracasso, à época em que foi escrito (1943).

A boa ficção usa mentiras para dizer a verdade, e as citações malfeitas são o contrário: usam verdades (trechos reais) para mentir (atribuir ao livro um sentido que ele não quer ter). Ao contrário do que pensa quem as promove, é um desserviço à literatura. Apenas mais um, num tempo em que pouca gente tem disposição para abrir um romance --ou pensar qualquer coisa-- e ir além de meia dúzia de slogans.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/michellaub/1254151-formas-de-matar-um-escritor.shtml




(No fim das contas eu nem persisti na busca e não sei de quem é a frase lá do início. Oh boy...)
 
problema do raciocínio do laub é que ele está generalizando, como se todo mundo que compartilhasse clarice não tivesse lido e não conhecesse o contexto da frase. e digo mais: um negócio foda que o livro tem é de falar para você às vezes através das frases mais simples. te comover, principalmente quando você se reconhece ali. domingo de manhã tava com lágrimas nos olhos lendo o final de stoner, e a frase que disparou o sentimento foi um simples “What did you expect?”. E daí se esse trecho parece não dizer nada se coloco como meu status no facebook*? é para mim que tem que dizer, e ele disse. essa coisa de dizer que citação de livro de lispector "fora do ambiente claustrofóbico e idiossincrático do romance vira apenas banalidade" parece impor uma única leitura possível ao livro e, pior, uma leitura só para iniciados. isso sim me parece um desserviço à literatura.

_________
*não sou de atualizar meu status do facebook com citações, mas lembro que fazia isso no msn :lol:
 
Pelo que vejo, grande parte do problema vem da interpretação na aplicação de citações. Alguns erram na hora de citar o autor, outros erram na hora de traduzir ou redigir as linhas e outros usam a citação para fins pessoais conscientes de que era para fazer sentido apenas dentro do raciocínio individual de quem usou a citação. Ou seja, como nem sempre o propósito está revelado, se a curiosidade for muita o que eu faço nesses casos é perguntar diretamente pra pessoa o que ela quis dizer com a citação. Porque pode ser "intencional" ou "não intencional".
 

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