Ana Lovejoy
Administrador
Um escritor frustrado a viver no Japão envia para vários jornalistas e escritores que não conhecia um email a anunciar que tenciona pôr fim à vida. Perante a mensagem, há várias atitudes possíveis. Uns reagiram, outros passaram para a mensagem seguinte.
A 10 de Dezembro de 2013, um expatriado americano no Japão enviou para um grupo de redactores, muitos deles do Washington Post, uma carta de suicídio. Com o título “Salvar um Legado”, o professor de Inglês e escritor desconhecido de 66 anos, chamado Dennis Williams, redigiu um email arrepiante.
“Este é o meu último dia neste mundo. Estou a contactá-lo por causa de um artigo seu no Washington Post que me deixou impressionado... Estou a pôr fim à minha vida não por desespero, mas porque já disse tudo o que tinha para dizer e considero que o meu trabalho está terminado. Uma vez que ninguém actualmente (nem no passado) está interessado, não tenho qualquer plataforma através da qual me expressar sobre o meu trabalho. Por isso, acredito que tenho muito para dar, não apenas da alma como do coração, mas simplesmente não há ninguém para o receber.”
Era já final da manhã em Minato-ku, no Japão, quando Williams enviou o email. A mensagem chegou ao mesmo tempo a caixas de correio no Japão, China, Los Angeles, Washington D.C. e New Jersey. Dado as 14 horas de diferença para a costa Leste dos EUA, a maioria dos que a receberam ali só a abriram na manhã seguinte. Eu estava acordada até tarde e a ler emails na cama no meu portátil. Abri-o um pouco antes da meia-noite.
“Oh, meu Deus!”, exclamei, sentando-me direita. A comoção repentina chamou a atenção do meu marido. Quando lhe expliquei o que estava a ler, ele nem sequer se mexeu, fazendo em vez disso um barulho entre o desinteresse sonolento e o aborrecimento. É uma piada, ignora-o, disse ele. O meu marido é jornalista de criminologia, e entre os dois tivemos as duas reacções possíveis a um emaildeste género: horror e cepticismo.
Comecei à procura de sinais no email que indicassem tratar-se de uma farsa. Mas isto não era coisa de um miúdo imaturo ou um monólogo furioso de um homem incapacitado. Não havia referências a extraterrestres nem a controlo de mentes por parte do Governo. Estava bem escrito, ora desolador, ora loucamente autoconsciente.
O autor disse que se chamava Katry Rain, mas explicou que esse era um pseudónimo. Nasceu como Dennis Williams. No momento em que carregou no “enviar”, vivia a dez quilómetros de Minato-ku, a sua última paragem no caminho que o levou de Detroit, onde nasceu a 5 de Julho de 1947, à Califórnia, Austrália, Nova Zelândia e Japão.
Williams, a 24 de Maio de 1972, à frente da Casa Branca para entregar uma mensagem ao Presidente Richard Nixon WASHINGTON POST
Opção 2: Fazer alguma coisa
Quando acordei, na manhã seguinte, voltei a fazer-me a mesma pergunta: “Quem faz uma coisa destas?” Mas desta vez cheguei a uma resposta. Alguém que precisa de ajuda. Censurei-me por ter ido dormir sem ter feito nada.
Se Williams tivesse estado à porta de minha casa ameaçando matar-se, eu teria chamado a polícia. Se um membro da minha família ou amigo pedisse ajuda a estranhos, eu gostaria que alguém o ajudasse. A ameaça de suicídio, só por ter chegado num ecrã, não me conferia a hipótese de não intervir.
Mandei uma mensagem privada através do Facebook a uma mulher que partilhava o apelido de Williams e que interagiu com ele em alguns dos seus posts no Facebook. Nos comentários parecia amável, respondendo animadamente a actualizações, incluindo fotos dele sozinho em locais cénicos no Japão. Expliquei a situação, desculpei-me pelo conteúdo da minha mensagem e fechei o computador.
Durante a noite tinha nevado, a ponto de fechar Washington. Eu e a minha filha de quatro anos fomos para a rua brincar, fazer anjos na neve naquela manhã cinzenta e nevosa. Quando estava deitada, olhei para cima e pensei em Williams. Fechei os olhos na esperança de que não acontecesse o pior.
Passaram-se dias até ficar a saber que aconteceu o pior.
Foi pela sobrinha de Williams, com quem comuniquei por Facebook. Numa mensagem enviada oito dias depois, agradeceu-me por lhe ter contado do email que ele enviara. O tio, disse ela, tinha-se realmente suicidado, saltando de um prédio horas depois de o enviar.
Meses mais tarde, dei esta notícia ao editor literário do Post, Ron Charles, tal como dera a todos os outros receptores do email que contactei para escrever este artigo.
Charles tinha aberto a mensagem de manhã quando rondava pela casa de roupão. No meio do monte habitual de emails, a mensagem de Williams chamava a atenção de forma arrepiante. Charles identificou um tipo de desespero, ainda que numa forma particularmente extrema, que vê com regularidade na sua qualidade de “porteiro” daqueles que pretendem tornar-se o próximo fenómeno editorial.
Quando meses mais tarde nos encontrámos para conversar sobre o email, confessou que o desespero é uma das razões pelas quais já nem atende o telefone.
“Cada vez há mais pessoas desesperadas por atenção a escrever e nós simplesmente já não temos essa atenção para dar”, afirmou. “Independentemente de quão ricos ou educados nos tornamos, só temos 24 horas. E, com toda a gente a promover-se em todas as redes sociais possíveis, todos tão desesperados por sermos lidos com atenção, eu incluído, com todos nós a viver e morrer por um clique na nossa história, este é um exemplo extremo e terrível do que toda a gente sente: ‘Porque é que não estão a olhar para mim?’”
É de uma estranheza sem precedentes que na nossa cultura actual praticamente qualquer pessoa consiga publicar um livro. Antes, autopublicar significava reunir fundos para pagar uma vaidade. Cópias baratas chegavam numa caixa e ficavam sem ser compradas durante anos na sala de estar do autor. Agora, a Internet torna a autopublicação quase imediata, com apenas alguns cliques.
Há casos excepcionais em que a fama se segue a esses cliques, sendo o mais notável o da E. L. James eAs Cinquenta Sombras de Grey, que vendeu mais de 100 milhões de exemplares em todo o mundo. Mas para a maioria dos autores, simplesmente, não há resposta. O próprio Williams, num post, recordou ter ficado ligeiramente destroçado há alguns anos depois de uma pequena editora ter publicado um dos seus livros, The Water Book, e de este não ter recebido qualquer atenção. Talvez os colegas do trabalho e amigos tenham vacilado por causa do preço, disse ele. Numa altura em que os livros se vendiam a 10 dólares, o seu custava 29,95. Acabou por vender ou dar 60 cópias antes de deixar um caixote com os livros nos degraus de uma livraria durante a noite.
“As pessoas que conseguem fazer dinheiro com a venda de livros que auto-editam acabam por criar nas outras expectativas irrealistas”, afirma Charles. “E isso também é incentivado por nós, os media, porque escrevemos histórias sobre os poucos autores famosos que publicaram eles próprios os seus livros e se tornaram best-sellers.”
Como a maior parte dos que receberam o email de Williams, Charles interrogou-se se aquela seria uma piada de mau gosto. “Mas, mesmo que fosse falso, era um penoso grito de ajuda”, comenta.
Sem saber que já era tarde demais, reencaminhou-o para a mulher citada na mensagem.
No outro extremo, a mulher, Keiko Sato, sabia que era tudo menos um embuste. Sato era ex-mulher de Williams. Durante décadas ouvi-o falar de suicídio, intercalado com o desejo de que a sua escrita fosse conhecida.
“Eu sabia que mais cedo ou mais tarde ele o faria”, diz Sato, falando-me por telefone numa tarde a partir da sua casa em São Francisco.
Dennis Williams e Keiko Sato, no dia do seu casamento, em Abril de 1978 DR
Esta professora de Japonês conheceu Williams na década de 1970 quando ele era seu aluno e estavam os dois nos seus 30 anos. Casaram-se e ficaram juntos durante várias décadas antes de, devagar e amistosamente, se afastarem e Williams lhe pedir o divórcio.
Recorda o ex-marido como um filósofo, um pensador, um escritor não apenas de palavras mas também de música. Um professor de Inglês popular, com alunos que o adoravam. A família dela no Japão continuou amigável, apesar de poder correr com ele por se ter divorciado. Tinha-lhe sido diagnosticado um cancro na próstata um ano antes de morrer, mas não fez qualquer tenção de se tratar.
Cerca de oito meses antes de se suicidar, anunciou no seu blogue que tinha cancro e fez referência a uma conversa com um amigo 25 anos antes. No seu livro digital Love Letter to Japan, diz que essa conversa ocorreu com um primo. “Eu disse-lhe: ‘Quando achar que o meu trabalho está terminado, será uma boa altura para morrer.’ E agora acho que o meu trabalho está terminado, por isso está na altura de morrer.”
Apesar de Sato ter lido os seus romances — um foi iniciado assim que o anterior estava terminado, recorda — nem sempre os admirava. Num deles, escrito depois do divórcio, havia detalhes terríveis e íntimos sobre a sua vida. “É uma questão de privacidade”, comenta.
Testemunhou as décadas de frustração por a sua escrita não ser reconhecida. Recorda-se de já em 1983 ele ter dito que se não tivesse sucesso era bem capaz de se suicidar. Entre 1988 e 1992, quando o casal vivia em Seattle, houve um período particularmente agudo de depressão. Mas nas últimas mensagens que ele lhe enviou, em finais de 2013, Sato ficou surpreendida com a mudança.
“Acho que no final ele não estava deprimido”, afirma. “Queria terminar o seu trabalho. Sentia que tinha conseguido o que realmente desejava fazer na vida, ainda que a sua escrita não fosse reconhecida.”
Um amigo de Williams no Facebook deu ecos disso mesmo num comentário na sua página no dia em que ele morreu. “Ontem, ele escreveu um post de que aquele seria o seu último dia na Terra”, escreveu o amigo, referindo-se a Williams pelo seu pseudónimo. “Para muitas pessoas, isto pode ter sido uma crise emocional, mas qualquer pessoa que conhecesse Katry perceberia que isto tinha sido uma coisa pensada durante muito tempo.” Elogiou-o como um professor excelente e altamente respeitado, bem considerado pelos colegas, um homem com qualidades e uma grande calma, com capacidade de se relacionar com os outros e, o que para Williams seria o mais importante, um escritor.
Apesar de Sato e Williams terem mantido contacto por email três ou quatro vezes por ano, há dez anos que ela não o via. Quando recebeu o email suicida, ligou para o hotel onde ele vivia no Japão para que um empregado fosse ver se ele estava bem. Não mencionou a palavra “suicídio”, referiu apenas que estava preocupada com ele. Williams estava bem, afirmou Sato.
No dia seguinte, começou a receber uma quantidade anormal de emails de estranhos enviados de vários sítios do mundo — os jornalistas que tinham recebido aquele que era realmente o seu últimomail.
Na caixa correio electrónico estava uma mensagem do consulado americano dando conta de que Williams tinha morrido, conta. Saltou do telhado do seu hotel.
Sato contactou o irmão dele, Albert, na Califórnia. A família não foi buscar as cinzas porque ele tinha deixado uma nota a indicar que queria ficar no Japão. (Albert Williams não quis prestar declarações para este artigo.) O irmão enviou-lhe alguns dos objectos do ex-marido, que achou que ela gostaria de ter.
Será que Sato carrega alguma culpa por este último capítulo da vida de Williams?
“Eu não podia impedi-lo de morrer”, diz. “Ele é o tipo de pessoa muito independente e quando decide uma coisa é quase impossível demovê-lo.”
Encontro algum conforto nisto, vindo da mulher que o conhecia melhor do que ninguém. O que ligava Ron Charles, Dara Horn, Paul Farhi e eu era a crença de que poderíamos ter feito alguma coisa. Sato dizia-nos que não teria feito diferença.
Dada a diferença horária e a distância, e o seu passo audacioso de enviar emails a jornalistas que não tencionavam sinceramente intervir, parece plausível que a mensagem não fosse um pedido de ajuda, que ele não tivesse qualquer esperança de desencadear uma missão de salvamento internacional. É possível que o que ele realmente queria — o que lhe importava mais do que a própria vida — era que finalmente se falasse da sua escrita.
Ao longo da sua vida enquanto escritor, “ele tentou quase de tudo”, conta-me Sato. “Então, esta talvez fosse a sua última esperança. Que alguém reconhecesse que aquela pessoa era um escritor e que valia a pena perceber o que ele tinha para dizer.”
É possível que o que ele realmente queria — o que lhe importava mais do que a própria vida — era que finalmente se falasse da sua escrita
Mas Moutier, da American Foundation for Suicide Prevention, não dá tanto conforto. “O mito é as pessoas acharem que se alguém está mesmo inclinado a matar-se nada a deterá”, afirma. “Mas isto é incorrecto sob vários aspectos. Não diríamos isso sobre outro tipo de doença com consequências fatais. E, em segundo lugar, contraria a prova de que quando as pessoas conseguem ultrapassar este apelo intenso [de morrer], muitas vezes sentem vontades diferentes depois.”
Moutier refere a nossa tendência moderna de partilharmos demais e, ironicamente, nos isolarmos na tecnologia. Falámos sobre o facto de o último apelo de Williams ter sido feito a estranhos. Confessei que fiquei relutante de responder ao email, por medo de correr algum risco ou parecer tonta.
“Como americanos, temos muito pudor em intervir porque temos medo de nos estarmos a intrometer ou ofender”, diz. “A nossa cultura não ajuda porque nos diz que somos todos ilhas, responsáveis por nós próprios. É um fenómeno esquisito, acho, por causa dos nossos ambientes electrónicos. A condição humana faz de nós criaturas sociais e pedir ajuda assim foi a sua forma de se ligar.”
Não passa despercebido que ao escrever sobre o suicídio de Williams lhe estou a dar aquilo que ele desesperadamente queria. Esta história vai tornar-se agora parte da sua narrativa digital. Provavelmente será lida por muito mais pessoas do que qualquer coisa que ele tenha escrito ao longo dos seus 66 anos. Será dissecada, receberá likes e será partilhada ou deitada para o lixo.
Seja como for, esta peça conseguirá uma coisa que Williams queria quando carregou no botão “enviar” do email na manhã em que se suicidou: resposta. Reconhecimento.
“Tudo o que escrevi na minha vida escrevi para si”, escreveu ele no último ano de vida numa entrada do blogue intitulada “The end of the road” [O fim da estrada].
“Se acabar por ser como um presente de Natal que não desejamos, peço desculpa. Tentei dar-lhe aquilo que pensava que precisava, não o que queria.”
fonte
(aqui em inglês)
A 10 de Dezembro de 2013, um expatriado americano no Japão enviou para um grupo de redactores, muitos deles do Washington Post, uma carta de suicídio. Com o título “Salvar um Legado”, o professor de Inglês e escritor desconhecido de 66 anos, chamado Dennis Williams, redigiu um email arrepiante.
“Este é o meu último dia neste mundo. Estou a contactá-lo por causa de um artigo seu no Washington Post que me deixou impressionado... Estou a pôr fim à minha vida não por desespero, mas porque já disse tudo o que tinha para dizer e considero que o meu trabalho está terminado. Uma vez que ninguém actualmente (nem no passado) está interessado, não tenho qualquer plataforma através da qual me expressar sobre o meu trabalho. Por isso, acredito que tenho muito para dar, não apenas da alma como do coração, mas simplesmente não há ninguém para o receber.”
Era já final da manhã em Minato-ku, no Japão, quando Williams enviou o email. A mensagem chegou ao mesmo tempo a caixas de correio no Japão, China, Los Angeles, Washington D.C. e New Jersey. Dado as 14 horas de diferença para a costa Leste dos EUA, a maioria dos que a receberam ali só a abriram na manhã seguinte. Eu estava acordada até tarde e a ler emails na cama no meu portátil. Abri-o um pouco antes da meia-noite.
“Oh, meu Deus!”, exclamei, sentando-me direita. A comoção repentina chamou a atenção do meu marido. Quando lhe expliquei o que estava a ler, ele nem sequer se mexeu, fazendo em vez disso um barulho entre o desinteresse sonolento e o aborrecimento. É uma piada, ignora-o, disse ele. O meu marido é jornalista de criminologia, e entre os dois tivemos as duas reacções possíveis a um emaildeste género: horror e cepticismo.
Comecei à procura de sinais no email que indicassem tratar-se de uma farsa. Mas isto não era coisa de um miúdo imaturo ou um monólogo furioso de um homem incapacitado. Não havia referências a extraterrestres nem a controlo de mentes por parte do Governo. Estava bem escrito, ora desolador, ora loucamente autoconsciente.
O autor disse que se chamava Katry Rain, mas explicou que esse era um pseudónimo. Nasceu como Dennis Williams. No momento em que carregou no “enviar”, vivia a dez quilómetros de Minato-ku, a sua última paragem no caminho que o levou de Detroit, onde nasceu a 5 de Julho de 1947, à Califórnia, Austrália, Nova Zelândia e Japão.
Williams, a 24 de Maio de 1972, à frente da Casa Branca para entregar uma mensagem ao Presidente Richard Nixon WASHINGTON POST
Opção 2: Fazer alguma coisa
Quando acordei, na manhã seguinte, voltei a fazer-me a mesma pergunta: “Quem faz uma coisa destas?” Mas desta vez cheguei a uma resposta. Alguém que precisa de ajuda. Censurei-me por ter ido dormir sem ter feito nada.
Se Williams tivesse estado à porta de minha casa ameaçando matar-se, eu teria chamado a polícia. Se um membro da minha família ou amigo pedisse ajuda a estranhos, eu gostaria que alguém o ajudasse. A ameaça de suicídio, só por ter chegado num ecrã, não me conferia a hipótese de não intervir.
Mandei uma mensagem privada através do Facebook a uma mulher que partilhava o apelido de Williams e que interagiu com ele em alguns dos seus posts no Facebook. Nos comentários parecia amável, respondendo animadamente a actualizações, incluindo fotos dele sozinho em locais cénicos no Japão. Expliquei a situação, desculpei-me pelo conteúdo da minha mensagem e fechei o computador.
Durante a noite tinha nevado, a ponto de fechar Washington. Eu e a minha filha de quatro anos fomos para a rua brincar, fazer anjos na neve naquela manhã cinzenta e nevosa. Quando estava deitada, olhei para cima e pensei em Williams. Fechei os olhos na esperança de que não acontecesse o pior.
Passaram-se dias até ficar a saber que aconteceu o pior.
Foi pela sobrinha de Williams, com quem comuniquei por Facebook. Numa mensagem enviada oito dias depois, agradeceu-me por lhe ter contado do email que ele enviara. O tio, disse ela, tinha-se realmente suicidado, saltando de um prédio horas depois de o enviar.
Meses mais tarde, dei esta notícia ao editor literário do Post, Ron Charles, tal como dera a todos os outros receptores do email que contactei para escrever este artigo.
Charles tinha aberto a mensagem de manhã quando rondava pela casa de roupão. No meio do monte habitual de emails, a mensagem de Williams chamava a atenção de forma arrepiante. Charles identificou um tipo de desespero, ainda que numa forma particularmente extrema, que vê com regularidade na sua qualidade de “porteiro” daqueles que pretendem tornar-se o próximo fenómeno editorial.
Quando meses mais tarde nos encontrámos para conversar sobre o email, confessou que o desespero é uma das razões pelas quais já nem atende o telefone.
“Cada vez há mais pessoas desesperadas por atenção a escrever e nós simplesmente já não temos essa atenção para dar”, afirmou. “Independentemente de quão ricos ou educados nos tornamos, só temos 24 horas. E, com toda a gente a promover-se em todas as redes sociais possíveis, todos tão desesperados por sermos lidos com atenção, eu incluído, com todos nós a viver e morrer por um clique na nossa história, este é um exemplo extremo e terrível do que toda a gente sente: ‘Porque é que não estão a olhar para mim?’”
É de uma estranheza sem precedentes que na nossa cultura actual praticamente qualquer pessoa consiga publicar um livro. Antes, autopublicar significava reunir fundos para pagar uma vaidade. Cópias baratas chegavam numa caixa e ficavam sem ser compradas durante anos na sala de estar do autor. Agora, a Internet torna a autopublicação quase imediata, com apenas alguns cliques.
Há casos excepcionais em que a fama se segue a esses cliques, sendo o mais notável o da E. L. James eAs Cinquenta Sombras de Grey, que vendeu mais de 100 milhões de exemplares em todo o mundo. Mas para a maioria dos autores, simplesmente, não há resposta. O próprio Williams, num post, recordou ter ficado ligeiramente destroçado há alguns anos depois de uma pequena editora ter publicado um dos seus livros, The Water Book, e de este não ter recebido qualquer atenção. Talvez os colegas do trabalho e amigos tenham vacilado por causa do preço, disse ele. Numa altura em que os livros se vendiam a 10 dólares, o seu custava 29,95. Acabou por vender ou dar 60 cópias antes de deixar um caixote com os livros nos degraus de uma livraria durante a noite.
“As pessoas que conseguem fazer dinheiro com a venda de livros que auto-editam acabam por criar nas outras expectativas irrealistas”, afirma Charles. “E isso também é incentivado por nós, os media, porque escrevemos histórias sobre os poucos autores famosos que publicaram eles próprios os seus livros e se tornaram best-sellers.”
Como a maior parte dos que receberam o email de Williams, Charles interrogou-se se aquela seria uma piada de mau gosto. “Mas, mesmo que fosse falso, era um penoso grito de ajuda”, comenta.
Sem saber que já era tarde demais, reencaminhou-o para a mulher citada na mensagem.
No outro extremo, a mulher, Keiko Sato, sabia que era tudo menos um embuste. Sato era ex-mulher de Williams. Durante décadas ouvi-o falar de suicídio, intercalado com o desejo de que a sua escrita fosse conhecida.
“Eu sabia que mais cedo ou mais tarde ele o faria”, diz Sato, falando-me por telefone numa tarde a partir da sua casa em São Francisco.
Dennis Williams e Keiko Sato, no dia do seu casamento, em Abril de 1978 DR
Esta professora de Japonês conheceu Williams na década de 1970 quando ele era seu aluno e estavam os dois nos seus 30 anos. Casaram-se e ficaram juntos durante várias décadas antes de, devagar e amistosamente, se afastarem e Williams lhe pedir o divórcio.
Recorda o ex-marido como um filósofo, um pensador, um escritor não apenas de palavras mas também de música. Um professor de Inglês popular, com alunos que o adoravam. A família dela no Japão continuou amigável, apesar de poder correr com ele por se ter divorciado. Tinha-lhe sido diagnosticado um cancro na próstata um ano antes de morrer, mas não fez qualquer tenção de se tratar.
Cerca de oito meses antes de se suicidar, anunciou no seu blogue que tinha cancro e fez referência a uma conversa com um amigo 25 anos antes. No seu livro digital Love Letter to Japan, diz que essa conversa ocorreu com um primo. “Eu disse-lhe: ‘Quando achar que o meu trabalho está terminado, será uma boa altura para morrer.’ E agora acho que o meu trabalho está terminado, por isso está na altura de morrer.”
Apesar de Sato ter lido os seus romances — um foi iniciado assim que o anterior estava terminado, recorda — nem sempre os admirava. Num deles, escrito depois do divórcio, havia detalhes terríveis e íntimos sobre a sua vida. “É uma questão de privacidade”, comenta.
Testemunhou as décadas de frustração por a sua escrita não ser reconhecida. Recorda-se de já em 1983 ele ter dito que se não tivesse sucesso era bem capaz de se suicidar. Entre 1988 e 1992, quando o casal vivia em Seattle, houve um período particularmente agudo de depressão. Mas nas últimas mensagens que ele lhe enviou, em finais de 2013, Sato ficou surpreendida com a mudança.
“Acho que no final ele não estava deprimido”, afirma. “Queria terminar o seu trabalho. Sentia que tinha conseguido o que realmente desejava fazer na vida, ainda que a sua escrita não fosse reconhecida.”
Um amigo de Williams no Facebook deu ecos disso mesmo num comentário na sua página no dia em que ele morreu. “Ontem, ele escreveu um post de que aquele seria o seu último dia na Terra”, escreveu o amigo, referindo-se a Williams pelo seu pseudónimo. “Para muitas pessoas, isto pode ter sido uma crise emocional, mas qualquer pessoa que conhecesse Katry perceberia que isto tinha sido uma coisa pensada durante muito tempo.” Elogiou-o como um professor excelente e altamente respeitado, bem considerado pelos colegas, um homem com qualidades e uma grande calma, com capacidade de se relacionar com os outros e, o que para Williams seria o mais importante, um escritor.
Apesar de Sato e Williams terem mantido contacto por email três ou quatro vezes por ano, há dez anos que ela não o via. Quando recebeu o email suicida, ligou para o hotel onde ele vivia no Japão para que um empregado fosse ver se ele estava bem. Não mencionou a palavra “suicídio”, referiu apenas que estava preocupada com ele. Williams estava bem, afirmou Sato.
No dia seguinte, começou a receber uma quantidade anormal de emails de estranhos enviados de vários sítios do mundo — os jornalistas que tinham recebido aquele que era realmente o seu últimomail.
Na caixa correio electrónico estava uma mensagem do consulado americano dando conta de que Williams tinha morrido, conta. Saltou do telhado do seu hotel.
Sato contactou o irmão dele, Albert, na Califórnia. A família não foi buscar as cinzas porque ele tinha deixado uma nota a indicar que queria ficar no Japão. (Albert Williams não quis prestar declarações para este artigo.) O irmão enviou-lhe alguns dos objectos do ex-marido, que achou que ela gostaria de ter.
Será que Sato carrega alguma culpa por este último capítulo da vida de Williams?
“Eu não podia impedi-lo de morrer”, diz. “Ele é o tipo de pessoa muito independente e quando decide uma coisa é quase impossível demovê-lo.”
Encontro algum conforto nisto, vindo da mulher que o conhecia melhor do que ninguém. O que ligava Ron Charles, Dara Horn, Paul Farhi e eu era a crença de que poderíamos ter feito alguma coisa. Sato dizia-nos que não teria feito diferença.
Dada a diferença horária e a distância, e o seu passo audacioso de enviar emails a jornalistas que não tencionavam sinceramente intervir, parece plausível que a mensagem não fosse um pedido de ajuda, que ele não tivesse qualquer esperança de desencadear uma missão de salvamento internacional. É possível que o que ele realmente queria — o que lhe importava mais do que a própria vida — era que finalmente se falasse da sua escrita.
Ao longo da sua vida enquanto escritor, “ele tentou quase de tudo”, conta-me Sato. “Então, esta talvez fosse a sua última esperança. Que alguém reconhecesse que aquela pessoa era um escritor e que valia a pena perceber o que ele tinha para dizer.”
É possível que o que ele realmente queria — o que lhe importava mais do que a própria vida — era que finalmente se falasse da sua escrita
Mas Moutier, da American Foundation for Suicide Prevention, não dá tanto conforto. “O mito é as pessoas acharem que se alguém está mesmo inclinado a matar-se nada a deterá”, afirma. “Mas isto é incorrecto sob vários aspectos. Não diríamos isso sobre outro tipo de doença com consequências fatais. E, em segundo lugar, contraria a prova de que quando as pessoas conseguem ultrapassar este apelo intenso [de morrer], muitas vezes sentem vontades diferentes depois.”
Moutier refere a nossa tendência moderna de partilharmos demais e, ironicamente, nos isolarmos na tecnologia. Falámos sobre o facto de o último apelo de Williams ter sido feito a estranhos. Confessei que fiquei relutante de responder ao email, por medo de correr algum risco ou parecer tonta.
“Como americanos, temos muito pudor em intervir porque temos medo de nos estarmos a intrometer ou ofender”, diz. “A nossa cultura não ajuda porque nos diz que somos todos ilhas, responsáveis por nós próprios. É um fenómeno esquisito, acho, por causa dos nossos ambientes electrónicos. A condição humana faz de nós criaturas sociais e pedir ajuda assim foi a sua forma de se ligar.”
Não passa despercebido que ao escrever sobre o suicídio de Williams lhe estou a dar aquilo que ele desesperadamente queria. Esta história vai tornar-se agora parte da sua narrativa digital. Provavelmente será lida por muito mais pessoas do que qualquer coisa que ele tenha escrito ao longo dos seus 66 anos. Será dissecada, receberá likes e será partilhada ou deitada para o lixo.
Seja como for, esta peça conseguirá uma coisa que Williams queria quando carregou no botão “enviar” do email na manhã em que se suicidou: resposta. Reconhecimento.
“Tudo o que escrevi na minha vida escrevi para si”, escreveu ele no último ano de vida numa entrada do blogue intitulada “The end of the road” [O fim da estrada].
“Se acabar por ser como um presente de Natal que não desejamos, peço desculpa. Tentei dar-lhe aquilo que pensava que precisava, não o que queria.”
fonte
(aqui em inglês)