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Do Coco doce.

Fluo

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Cidade pequena, mas não tão pequena. Grande o bastante pra comportar quilômetros de ruas, muitas de chão batido. E o apito do sorveteiro, assoviando sempre no mesmo tom. Era magrelinho feito um cachorro galgo, mas sem a mesma elegância, sem o mesmo porte. Antes tinha um desjeito de tímido e os olhos fujões. As mãos eram de piá da roça, de pegar na enxada e de deixar a casa mais cedo do que devia. E ia sempre repetindo as mesmas frases ensaiadas. “Cabeça de nega acabô, tem limão, morango, chocolate, doce de leite...”. Os pés já nem doíam, estavam acostumados à pouca borracha e às muitas horas sem descanso. Quando chovia, chovia. Quando fazia sol, fazia sol. Ele era o sorveteiro. Ia sempre caminhando, fazendo o apito assoviar, contando as moedinhas e dando os trocos certos. Sempre certos. Nunca errava uma conta, uma rua, um sabor de picolé... a cabeça era rápida. Sempre fazia o mesmo caminho. Mesmo caminho. E mesmo que a alça da caixa lhe cortasse os ombros ossudos, falava nada não, que era o trabalho que tinha. E se os picolés derretiam, punha na boca um pouco, pra tirar o derretido, e guardava de novo nos saquinhos, sem derretido nenhum, de modo a vender mais pra diante. Quando juntava muita sujeira nos dentes, esfregava eles na manga blusa e ficavam lisinhos de novo.

Tinha andado desde manhãzinha e já era fim de tarde. Ainda não tinha vindo o lusco-fusco não, mas já tinha passado por todas as ruas pelas quais tinha que passar. Deu uma olhada no dinheiro do bolso, contou e recontou as moedinhas e as poucas notas miúdas, separando do lucro a parte que não devia gastar. Lucro. De um dia de trabalho todo. Estava quebrado, as costas doíam e as pernas pediam pra sentar. Sentou na calçada de paralelepípedos, assim se encostando no murinho de uma casa, pensando consigo no que havia de fazer com seu lucro. Levar pra casa? Já tinha dado pros irmãos todo o dinheiro de todos os outros dias daquele mês. É que morava com os irmãos. Pai e mãe ainda na roça, queria o piá fazer vida nova, crescer e ser gente na cidade. Gente com seu próprio lucro. Pra fazer dele o que bem entendesse.Abriu a caixa de isopor. Tinham sobrado poucos picolés, chupou todos. Já tinha passado por todas as ruas de sempre e já não havia mesmo modo de vender mais nenhum. Então mandou o dinheiro de não gastar pra um bolso e o lucro pro outro, catou a caixa e levantou pra fazer o caminho de volta pra casa. Não longe de casa, deu com uma feira, com batatas, ovos, uma porção de verduras, frutas e... uma barraquinha de doces. Doces. Sempre passava perto da feira, mas nunca tinha visto doces antes. Doces. Andou pra mais perto, e achando muito bonitas as barras adocicadas cortadas em pedaços. Escorregou a mão pro bolso. Ali estavam as moedas, seu lucro, e lá estava seu objetivo, logo atrás da plaquinha “coco”.Coco. Ele gostava de coco. E já tinha muito tempo que não comia nenhum tipo de doce, senão, é claro, os próprios picolés, dos quais já estava enjoado, e açúcar no pão, que só servia mesmo pra matar as bichas. Ele queria um doce de verdade. Ele merecia um doce de verdade. Tinha trabalhado o dia todo por isso. Podia escolher. Podia escolher coco. Então, com o rosto quente e os passos titubeantes, chegou mais perto, se demorando muito, e, sem olhar a mulher dos doces, apontou, pedindo “um desses”. Era difícil comprar, dava vergonha. Mas valia a pena. Então, dado o preço, pagou e pegou sua recompensa. Seu doce. Doce de coco. E foi doce pegar nas mãos, deu um arrepio. Ele não só gostava de coco, ele adorava coco, amava coco. Coco. Saindo da feira e se pondo na direção de casa, todo alegre, quis correr. Mas não sabia correr. Então foi só andando rapidinho. Sem demora, desembrulhou com pressa o seu doce e deu uma boa mordida.
Mas não era gostoso. Não era doce. Mastigou devagar, sentindo grudar nos dentes, e engoliu muito forçosamente. Não era bom. Era sabão. Era sabão!

Burro! Quis chorar, mas não pôde. Quis voltar, mas não pôde. Quis devolver, mas não pôde. Quis trocar, mas não pôde. Quis gritar!... mas não pôde... Já era muito tarde, já tinha comprado. Então... embrulhou de novo e... foi pra casa. Encolhido. Com um gosto na boca que não saía. E não tinha mais nenhum picolé pra chupar.

Chegou em casa, muito apagado, e, quando perguntaram o que tinha acontecido, contou tudo, sem fazer cara nenhuma. Então vieram os risos. E eram largos como tapas. “Por que não perguntou o que era antes de comprar, piá?”. Não sabia perguntar. “Por que não voltou devolver, piá?”. Não sabia voltar devolver.

Deitou mais cedo naquele dia, fingindo sono. Só queria ficar sozinho. É que estava cansado de um jeito esquisito. De um jeito que nunca tinha sentido antes. No dia seguinte, acordou também mais cedo e lavou a roupa. Primeira vez que não usava sabão de cinzas, mas sabão de coco. Coco. Ele gostava de coco.
 
Que trágico Paola =(
coitado do piazinho...mas, acho que a vendedora não iria devolver o dinheiro =/

"Cabeça de nega" não conhecia esse sabor, é de chocolate? Me lembrou um doce da infância que gostava de comer, teta de nega:
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Parabéns pela prosa :)
 
Wow! Belo... Conto, acho que posso chamar assim, não é? lol.

Uma das coisas que mais me chamou a atenção foi a narrativa: Ela é simples, direta, segue uma linha lógica e alguns trechos se repetem como se fossem ecos. Em suma, eu diria que é como poder ler os pensamentos do narrador, pois a narrativa em si funciona como se fosse uma série de pensamentos.

Além disso, devo dizer que gostei da forma como a ingenuidade foi retratada nesse texto. Muitas vezes a ingenuidade é usada para fins de comicidade (como se vê em muitas fábulas) ou para fins de tragédia (vide a personagem Desdêmona, de Otelo), mas você usou-a de uma forma... Agonizante, sensibilizante, tocante. O que chega a ser muito incomum nesse contexto, uma vez que, normalmente, jovens que passam por esse tipo de dificuldade se tornam espertos e marotos logo cedo.

Gostaria de fazer mais comentários, mas não posso demorar-me mais. Anyway, meus parabéns!
 

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