Ólipe Carmeso
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- Nasceu! Seu irmão nasceu! – Disse Lúcia naquela manhã ensolarada de domingo. Naquele dia, nascia aquele que viria marcar minha família para sempre.
Eu tinha quatro anos quando meu irmão nasceu. Minha mãe, que prometera a Lúcia dar o menino para ela batizar, tinha ido para o hospital na noite anterior, sentindo grandes dores.
Era o nascimento de seu segundo filho, fruto de um segundo caso. O primeiro, onde ela havia engravidado de mim, havia deixado-a quando eu contava sete meses. Já o pai do meu irmão tinha sido diferente. Abandonara minha mãe antes mesmo dele nascer, de modo que no hospital, apenas minha avó acompanhava minha mãe.
Lembro-me bem de quando Lúcia, vizinha e amiga de minha mãe, deu-me banho e me arrumou para receber meu irmão no dia seguinte. Lembro-me que gostei desse dia, não só por conhecê-lo, mas também por não precisar ir à creche. Durante meses, minha avó, Lúcia e sua filha mais velha, Cris, de nove anos, ajudaram minha mãe com o bebê.
Quando ele completou dois anos foi que começou. Assistindo à televisão num sábado, ele viu pela primeira vez um mágico num programa de auditório. Ficou fascinado e daquele momento em diante não falava em outra coisa: iria ser mágico quando crescesse.
As brincadeiras que se seguiram, sempre giraram em torno desse tema. Eu, enquanto preferia bolas de gude, pião e bater figurinhas, meu irmão, com três anos recém-completados, ficava cada vez mais ficcionado por mágicas.
Todo dia quando Lúcia chegava do serviço – era manicure, trabalho comum em nosso bairro de classe baixa – meu irmão corria para verificar se ela trouxera consigo o kit de mágica que prometera havia já dois meses.
Quando eu, após gozar-lhe dizendo que ele nunca ganharia o tal kit, Lúcia apareceu com um embrulho grande, roxo e amarelo, dizendo que tinha uma “surpresa” para o afilhado “mais lindo do mundo”.
O kit completo trazia um baralho, dados, uma capa, uma cartola (de cartolina dura), um bastão preto com a ponta branca e um pequeno livro ilustrado ensinando os truques.
Morávamos os três, mais minha avó que, devido à saúde debilitada, viera morar conosco, fazendo com que minha mãe trabalhasse ainda mais, como se isso fosse possível. Era ela quem tomava conta da gente, enquanto minha mãe trabalhava como caixa num pequeno mercadinho, o Mercado das Flores, no próprio bairro. Eu adorava quando minha avó me mandava ir lá comprar alguma coisa: geralmente carne para a janta ou pão e mortadela para o café da tarde, fazendo com que me sentisse o “homem” da casa. Mas não era isso mesmo que eu era? Uma mãe que ficava fora o dia todo, um irmão mais novo que vivia no mundo da lua com suas “mágicas” e uma avó doente. Sim, eu era realmente o homem da casa.
Mas naquele dia, queria não o ser. Foi quando minha avó me mandou comprar pó de café no mercadinho, onde minha mãe trabalhava. Sentia muito orgulho da minha mãe, e ela sempre me dava uma goma de mascar ou uma bala de fruta quando eu passava no caixa (sempre no que ela estava atendendo) para que todos soubessem que aquela era minha mãe.
Pensava nisso quando dobrei a esquina e fiquei com o estômago embrulhado na mesma hora: meu irmão estava na laje, paramentado com seus trajes de mágico, balançando sua varinha ao sabor do vento, mais dizendo que gritando: “Vou voar!”.
Não era alto de onde ele caiu, mas foi de tal jeito que não havia tempo ou o que fazer. O baque surdo de seu pescoço quebrando foi abafado pelo meu grito de desespero. Minha avó, que cochilara no sofá não vira nada e Lúcia estava trabalhando naquele dia.
Quando minha mãe chegou, o resgate já havia levado meu irmão e a polícia fazia perguntas. Minha mãe desmaiou, minha avó gritava e eu, atônito, não sabia se chorava ou se protegia minha mãe de todas aquelas pessoas.
Ele foi enterrado no cemitério municipal, no dia seguinte, num caixão pequeno e branco. Minha mãe, novamente passou mal e nem mesmo Lúcia, a vizinha, amiga e madrinha, sabia o que dizer. Só o que fazia era chorar.
Minha mãe ficou um tempo sem voltar ao Mercado das Flores e pra falar bem a verdade, ela ficou meio boba depois disso tudo. Chorava toda noite e, em meio suas orações, pedia para Deus ter piedade da gente e cuidar da alma do meu irmãozinho. Eu, por minha vez, me sentia culpado: por que fui ao mercadinho e deixei meu irmão pra trás sabendo que eu era o responsável por ele? Por que não adverti minha avó a ficar de olho nele, sabendo que ele adorava peripécias que envolviam o impossível? Agora minha mãe chorava e talvez eu nunca mais ganhasse goma de mascar ou bala de fruta.
Às vezes é muito duro ser o homem da casa.
Eu tinha quatro anos quando meu irmão nasceu. Minha mãe, que prometera a Lúcia dar o menino para ela batizar, tinha ido para o hospital na noite anterior, sentindo grandes dores.
Era o nascimento de seu segundo filho, fruto de um segundo caso. O primeiro, onde ela havia engravidado de mim, havia deixado-a quando eu contava sete meses. Já o pai do meu irmão tinha sido diferente. Abandonara minha mãe antes mesmo dele nascer, de modo que no hospital, apenas minha avó acompanhava minha mãe.
Lembro-me bem de quando Lúcia, vizinha e amiga de minha mãe, deu-me banho e me arrumou para receber meu irmão no dia seguinte. Lembro-me que gostei desse dia, não só por conhecê-lo, mas também por não precisar ir à creche. Durante meses, minha avó, Lúcia e sua filha mais velha, Cris, de nove anos, ajudaram minha mãe com o bebê.
Quando ele completou dois anos foi que começou. Assistindo à televisão num sábado, ele viu pela primeira vez um mágico num programa de auditório. Ficou fascinado e daquele momento em diante não falava em outra coisa: iria ser mágico quando crescesse.
As brincadeiras que se seguiram, sempre giraram em torno desse tema. Eu, enquanto preferia bolas de gude, pião e bater figurinhas, meu irmão, com três anos recém-completados, ficava cada vez mais ficcionado por mágicas.
Todo dia quando Lúcia chegava do serviço – era manicure, trabalho comum em nosso bairro de classe baixa – meu irmão corria para verificar se ela trouxera consigo o kit de mágica que prometera havia já dois meses.
Quando eu, após gozar-lhe dizendo que ele nunca ganharia o tal kit, Lúcia apareceu com um embrulho grande, roxo e amarelo, dizendo que tinha uma “surpresa” para o afilhado “mais lindo do mundo”.
O kit completo trazia um baralho, dados, uma capa, uma cartola (de cartolina dura), um bastão preto com a ponta branca e um pequeno livro ilustrado ensinando os truques.
Morávamos os três, mais minha avó que, devido à saúde debilitada, viera morar conosco, fazendo com que minha mãe trabalhasse ainda mais, como se isso fosse possível. Era ela quem tomava conta da gente, enquanto minha mãe trabalhava como caixa num pequeno mercadinho, o Mercado das Flores, no próprio bairro. Eu adorava quando minha avó me mandava ir lá comprar alguma coisa: geralmente carne para a janta ou pão e mortadela para o café da tarde, fazendo com que me sentisse o “homem” da casa. Mas não era isso mesmo que eu era? Uma mãe que ficava fora o dia todo, um irmão mais novo que vivia no mundo da lua com suas “mágicas” e uma avó doente. Sim, eu era realmente o homem da casa.
Mas naquele dia, queria não o ser. Foi quando minha avó me mandou comprar pó de café no mercadinho, onde minha mãe trabalhava. Sentia muito orgulho da minha mãe, e ela sempre me dava uma goma de mascar ou uma bala de fruta quando eu passava no caixa (sempre no que ela estava atendendo) para que todos soubessem que aquela era minha mãe.
Pensava nisso quando dobrei a esquina e fiquei com o estômago embrulhado na mesma hora: meu irmão estava na laje, paramentado com seus trajes de mágico, balançando sua varinha ao sabor do vento, mais dizendo que gritando: “Vou voar!”.
Não era alto de onde ele caiu, mas foi de tal jeito que não havia tempo ou o que fazer. O baque surdo de seu pescoço quebrando foi abafado pelo meu grito de desespero. Minha avó, que cochilara no sofá não vira nada e Lúcia estava trabalhando naquele dia.
Quando minha mãe chegou, o resgate já havia levado meu irmão e a polícia fazia perguntas. Minha mãe desmaiou, minha avó gritava e eu, atônito, não sabia se chorava ou se protegia minha mãe de todas aquelas pessoas.
Ele foi enterrado no cemitério municipal, no dia seguinte, num caixão pequeno e branco. Minha mãe, novamente passou mal e nem mesmo Lúcia, a vizinha, amiga e madrinha, sabia o que dizer. Só o que fazia era chorar.
Minha mãe ficou um tempo sem voltar ao Mercado das Flores e pra falar bem a verdade, ela ficou meio boba depois disso tudo. Chorava toda noite e, em meio suas orações, pedia para Deus ter piedade da gente e cuidar da alma do meu irmãozinho. Eu, por minha vez, me sentia culpado: por que fui ao mercadinho e deixei meu irmão pra trás sabendo que eu era o responsável por ele? Por que não adverti minha avó a ficar de olho nele, sabendo que ele adorava peripécias que envolviam o impossível? Agora minha mãe chorava e talvez eu nunca mais ganhasse goma de mascar ou bala de fruta.
Às vezes é muito duro ser o homem da casa.