Gostaria de dizer algo sobre as manifestações e me 'manifestar' ideologicamente aqui. Eu tenho acompanhado pelas redes sociais (além dos atos em Cubatão e em Santos, onde fui participar ativamente) a sequência dos eventos e dos efeitos dos eventos nas consciências individuais de certas pessoas, manifestantes ou não, além de uma certa consciência coletiva, semi-ideológica e plenamente ideológica.
Como disseram o Movimento Passe Livre existe já há algum tempo, luta por certas medidas, certas mudanças práticas na qualidade do transporte público, a forma como se deveria administrar o serviço, e ideologicamente, é um movimento de esquerda. Não é um partido nem um movimento que prega, pelo menos que eu saiba, essa ou aquela medida genericamente classificada como 'de esquerda', mas assim se denomina, de forma mais ou menos genérica, por seus membros parecerem ser ativos membros da esquerda, se manifestarem, agirem, reivindicarem direitos tendo como pontos epistêmicos e filosóficos a longa tradição de pensadores marxistas mais ou menos ortodoxos etc. Isso todo mundo sabe, ou deveria saber.
Por outro lado, o MPL jamais considerou, pelo que vejo, a necessidade de se aderir a certos princípios ideológicos mais claros da 'direção' embora, claro, creio eu, os deixassem bem claros para que as pessoas soubessem quem eles são, o que defendem etc. Isso é belo e moral, sem problemas aqui. O problema mesmo começa quando os manifestantes se multiplicaram fantasticamente, quando uma montanha de pessoas passou a aderir às manifestações. Seria vingança contra a PM? Um sentimento latente de revolta contra a forma como o Brasil, o Estado, seu município, enfim, a Nação, é administrada, governada e fiscalizada? Um instinto bestial de quebrar coisas? Um coice no queixo das autoridades pela forma trollesca como somos tratados diariamente por elas? Creio haver um pouco disso tudo aí, tudo junto e misturado, e talvez algo mais.
Uma analogia é aquilo que os pensadores tradicionalistas consideravam ser a identidade espiritual da massa: sua identidade como prakrti, a substância indiferenciada de que purusha, o espírito, se utiliza, o Sol iluminando as potências vitais da Lua, o Céu se casando com a Terra, para que dessa união sagrada (hierogamos) se nasça o cosmo. O cosmo é então o reino hierarquizado dos espíritos que formam uma matéria composta de infinitas possibilidades, que só se atualizam pela mesma energia espiritual solar. Já falei disso aqui antes. Sol e Lua. Céu e Terra. Purusha e Prakrti. Julius Evola considerava as castas como tendo uma identidade metafísica: os brâmanes possuem toda a autoridade espiritual do Alto, os xátrias a missão sacerdotal e política (sem separação) de governar o Estado como os deuses ao cosmo, os vaixás organizam suas vidas conforme o regime puramente econômico e material do cosmo, seguidos pelos sudras, que são a poeira, os inferiores, escravos, trabalhadores. Quanto mais próxima estiver do Alto mais distante a casta está da Matéria, quanto mais Alta for mais longe estará das paixões, da violência, dos desejos e prazeres imundos, das taras e obsessões, das influências psíquicas mais baixas e mesmo inférnicas e mais próxima da ciência, da purificação das paixões e controle dos instintos, das virtudes, do comedimento, prudência, controle de si, e dotados dos maiores poderes mágicos e espirituais, seguidores do mais árduo e santo ascetismo. Sim, é um pensamento totalmente anti-moderno a ponto de ser chocante.
Os governos se seguem, e novos governos se seguem aos antigos, por conta de revoluções de diversos tipos, sejam puramente religiosas, científicas, ou puramente políticas, mas claro que no mundo não existe nada de 'puro', existe toda uma relação mais ou menos orgânica em tudo que é humano. A crítica tradicionalista se foca no caráter involutivo dos ciclos da manifestação, em como as ideologias manipulam as massas ou as direcionam, como verdadeiras marés que eles surfam, para demolir o castelo da elite dominante e substituí-la, nunca por algo melhor (raramente) mas por uma elite amparada por uma ideologia pior, ou seja, cada vez mais materialista e espiritualmente decadente. Quanto mais involuída, dissoluta, decadente está uma sociedade maior valor ela dará a ideias e instituições que representam esse estado mais material, mais inferior da manifestação, o dos instintos e paixões.
Toda essa lenga-lenga metafísica que eu sei que ninguém aqui vai concordar serve pra amparar meu ponto. O que levou as multidões às ruas não foi patriotismo, nem uma verdadeira consciência política, mas um estado normal de todo grande levante, a insatisfação da massa com a forma com que é tratada pelos governos. É uma insatisfação legítima mas que nesse caso não tem como ser coordenada exceto muito fragmentaria e pragmaticamente por pequenos grupos regionais de líderes que nada mais fazem que tentar dar alguma organização a algo que grita em uma época que os princípios da massificação, da prakrti, explodem por todos os lados, de forma caótica, descontrolada, aglutinadas em certas bandeiras muito díspares, em certa insatisfação e em certa 'festa' de orgulho nacional, de militância por não sei o quê.
É nesse contexto que enxergo algumas discussões nas redes sociais: esquerdistas se sentem 'roubados' por uma suposta 'apropriação' de seus direitos pelo que chamam de 'fascismo', cheiram 'golpe' nessas manifestações mais amplas em vez de apoio. É até compreensível essa reação pelo contexto em que se iniciou o movimento e pela própria natureza militante da esquerda brasileira, tão intensamente envolvida em questões sociais, na luta por direitos aos moldes progressistas etc. É um engano porém, pensar que haja tal instrumentalização porque a direita brasileira, seja liberal ou conservadora, é completamente incapaz de articular qualquer coisa do tipo e o próprio apartidarismo nas ruas coíbe esses delírios, nem há qualquer organização nesse sentido em diversos outros pontos da própria agenda 'fascista'. De outro lado existe aquele grupelho de conservadores, essa olavetaiada e muitos monarquistas, que se inflamam falando de 'golpe comunista', de instrumentalização da massa, que logo se iludiram com o apartidarismo e engrossaram as fileiras da prakrti, justificando essa adesão pela expulsão dos partidos. Não se trata de 'autoritarismo', mas da exacerbação pela absoluta falta de representatividade nos meios democráticos 'oficiais', além de muito ufanismo e uma idiotice contra-revolucionária bem sintomática. O ponto que quero traçar aqui é o seguinte: a naturalidade orgânica que a esquerda militante possui nos fronts 'revolucionários', sua ligação histórica e, principalmente, ideológica com uma cultura de manifestação ativa. Daí a ojeriza aos 'coxinhas'. Já a direita, além de não ter uma unidade e nenhuma representatividade (oficial, ao menos), tem quase nenhuma cultura militante, pode até ter certo envolvimento em causas sociais e na promoção da agenda progressista mas isso se limitaria mais a uma burguesia, uma classe média alimentada por clichês vários. Pelo que eu percebo entre os conservadores o que existe mesmo é toda uma 'mitologia da revolução' que demoniza o marxismo como a pior calamidade da história e o responsável pelo mal no mundo, tudo em uma visão gnóstico-fatalista de péssimo gosto e é nesse nível boçal que a coisa se manteve e nem mesmo essa cultura impediu conservadores de se unirem aos 'coxinhas' e 'comunas de Satanás'. Enfim... lembrei também dos liberotários, digo, libertários fazendo coro aos gritos liberais exigindo 'menos Estado', 'privatização'. Isso poderia ter gerado muita merda em termos práticos mas não, afinal, quem liga pros anarcomiguxos e a bosta da Ayn Rand?
Coisa muito diferente ocorre com certa extrema-direita. Não sei como vai as coisas com os neo-nazis e fascis assumidos, mas as manifestações, inicialmente vistas com ojeriza, foram apoiadas, suportadas e a elas aderiram de forma muito entusiástica, muitos integralistas e vários tradicionalistas que eu conheço. Isso é muito interessante, porque mostra bem como a questão mística da 'revolução' é uma coisa verdadeira pra essas pessoas (sim, porque nem de 'grupos' se podem chamar), como é verdadeiro o legítimo sentimento de comunhão com as críticas da esquerda às privatizações e enxugamento do Estado, enfraquecimento das instituições e da eficácia da política e do próprio diálogo democrático pelos entraves e compromissos assumidos pelo governo com as elites econômicas do país e mesmo alianças aos interesses globalistas de vários tipos. Críticas ao capitalismo de forma geral e posicionamentos geopolíticos estão sempre em pauta quando os revolutionary-conservative se unem a protestos de todo tipo. Eu acho essas convergências muito interessantes e confesso que muito do meu interesse nesses protestos se deveu a uma curiosidade pela forma como que, em discurso e na prática, se daria essa participação.
De resto, tirando esses 10% (sendo generoso) de participações mais politizadas e bem informadas (embora igualmente confusas pelo rumo todo da coisa) o grosso das manifestações é de coxinhas mesmo, de pessoas de classe média exigindo ter seus direitos respeitados, o fim da corrupção, e toda uma série de medidas a nível federal, estaduais e municipais, inicialmente como apoio a São Paulo por conta da repressão de uma polícia militarizada e desumana, posteriormente como aquilo que todo o movimento nacional é: através dessas difusas bandeiras, desse apartidarismo vago e dogmático ao mesmo tempo, dessas reivindicações mais ou menos concretas, ufanismo e até mesmo certas alucinações 'revolucionárias' e 'anarquistas' por parte de uma massa de gente do tipo mais improvável, de coxinhas a proletários, de representantes da mídia a trabalhadores comuns, angariando ódios burgueses contra o petismo, mágoas marxistas contra o lulismo, um sentimento ardente, explosivo, apaixonado de revolta da prakti, da massa indiferenciada e amorfa contra algo muito indefinido a que decidiu chamar 'governo', por conveniência. Aí existe certo oportunismo embora eu considere isso muito vago pra ser chamado realmente assim, e é aí que ouvimos coisas fantásticas, como esquerdistas chorando que anarquistas estão se aliando aos 'fascistas' e outras barbaridades do tipo, que só demonstram como ninguém entende bem o que está acontecendo, quem está manipulando quem, se há manipulação, se há levante revolucionário ou um fogo-fátuo pseudo-primaveril, enfim, uma zorra do caralho. Prakrti. Caos.
Só queria observar que essas 'análises' minhas se dão baseado no que vi em certos manifestantes tanto pelo facebook como pelos artigos de blogs e notícias que li aqui e acolá, além de conversas com diversos amigos meus e seus conhecidos. É uma coisa muito tosca, pueril, de alguém que não tem lá muitos conhecimentos em política, tem pouquíssima margem, etc, posso ter falado muita merda, mas a minha conclusão é essa mesmo. A massa se descontrolou, transbordou e o que se iniciou como um apoio se inflamou em uma coisa muito maior, mais perigosa, descontrolada e que pode acabar, se apagar de uma hora pra outra. Ou não. E é por isso que eu apoio as manifestações e participo ativamente. Primeiro, porque quero conhecer essas pessoas, seus sonhos, desejos e ideias, por mais vagos e infantiloides que sejam na maioria dos casos, quero compreender como se forma essa consciência na prática, o desenrolar dos acontecimentos, a formação de uma luta política que se desprega não apenas das ideologias dominantes como de toda e qualquer ideologia exceto de restos misturados e mastigados delas, quero mergulhar nesse caldeirão de fogo que pode se apagar amanhã. Ou não. Esse 'não' me interessa. Segundo, quero sentir na pele e conhecer como se articulará a resposta do governo, em suas diversas esferas administrativas e ideológicas, a esses gritos descompassados. Quero aprender. Terceiro, quero entender o movimento, a direção pela qual a roda segue não importa, o que importa é ver como se caminha pela estrada, como se articula e se desenvolve a marcha da revolução, aquele fogo indistinto e primevo que me incendiou na adolescência e hoje volta a me chamar a atenção pela própria natureza do tradicionalismo, a Revolução é Deus. Não é Deus como está na Bíblia e na Tradição de forma geral, falo aqui do caráter ígneo da prakrti, do seu fogo abrasador de potencialização de forças vivas que mesmo que não tenham praticamente nenhum referencial para se formarem, se cristalizarem em algo coeso, se tornam combustível. Mas combustível para que...? Não sei.
Só o que eu sei é que existe algo metafísico e profundo nesses gritos, nada que eu tenha inventado, nenhuma ilusão que eu tenha criado, mas existe algo, algo que mesmo que não frutifique em nada sólido, pode ser sim o começo de uma nova forma de se fazer política, de falar e ser ouvido, uma forma de lembrar ao governo para quem eles governa. Nesse caso, eu fico com o Caos. Em outras palavras apoio as bandeiras mais concretas da redução da tarifa de ônibus enquanto observo o desenrolar dos acontecimentos.
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Quanto a esquerdistas com choradeira de 'sequestro do movimento', to aqui cagando de montes pra vancês.