Morfindel Werwulf Rúnarmo
Palestina livre!
Acompanhei os protestos contra o aumento na passagem de ônibus no município de São Paulo, ocorridos nesta quinta (6), e o confronto com a polícia militar. Conversei com gente que deles participou e está, até agora, com a lembrança do gás lacrimogênio.
Houve depredação de equipamentos públicos? Sim, você encontra minorias de idiotas em todos os lugares. Mas isso não invalida nem diminui a importância do ato, que chama a atenção a um aumento de R$ 3,00 para R$ 3,20. Ou seja, uma passagem, que já é cara, de um serviço público de transporte urbano ruim ficará mais cara ainda. Jovens revoltados foram às ruas. Queriam protestar, se fazerem ouvidos. O poder público dialogou com bombas de gás.
Autoridades e alguns veículos de comunicação não demoraram a chamá-los de vândalos. Repórteres, com os olhos arregalados do tamanho do mundo, demonstravam o pânico de quem nunca imaginaria que aquela massa disforme poderia fazer barricadas com sacos de lixo. Falou-se em “contenção”, comentaristas na TV em “imposição da ordem”. Pouco sobre um Estado que não está nem aí para quem (sobre)vive nas franjas da sociedade e depende de transporte público. Na internet, houve quem pediu para colocar esses miseráveis bandidos de volta para o lugar deles.
A Justiça despeja centenas de famílias humildes de um terreno em São Paulo (que procuravam uma casa) e os sem-teto é que são vândalos. Jovens de classe média alta criam bandos para espancar e matar e moradores de rua e dependentes químicos (que procuram simplesmente existir) é que são vândalos. Fazendeiros invadem terras indígenas no Mato Grosso do Sul e mandam bala para quem cruzar a cerca e os indígenas que moravam ali (e procuram ser eles mesmos) é que são vândalos. Vândalos somos todos que ainda nos importamos com isso. Pois a indignação nada mais é que vandalismo para quem está tão embutido no sistema a ponto de ignorar que ele não funciona a contento.
A força pública paulista, que usou spray de pimenta em quem participava de uma manifestação contra a tarifa de ônibus há dois anos, agora repele o protesto com agentes químicos. Você pode escolher: ou chora porque seu mês “encurtou” com a tungada do reajuste ou pela ardência da malagueta. O recado que se passa à sociedade é claro: reclamar é proibido. Votou, escolheu, agora fique quieto e espere a próxima eleição. Regra de três: se o poder público deixasse de usar tanto spray de pimenta contra a população, sobraria mais dinheiro para abaixar o preço do busão?
A cidade tem que melhorar sua política de subsídios para o transporte coletivo a fim de estimular seu uso em detrimento ao transporte individual. Se não garantirmos opções boas e acessíveis, não conseguiremos desarmar essa que é uma das piores bombas-relógio da maior cidade do país.
E não é só evitar que o preço da passagem suba, e sim garantir qualidade e conforto para trazer o público que não é usuário de transporte coletivo para ele (aos poucos, é claro, porque não tenho tanta esperança no senso de coletividade da classe média paulistana assim). Enquanto isso, encarecer o transporte individual a ponto de ser um mau negócio usar carro a todo o momento, destinando os recursos dessas taxas e afins à ampliação da rede pública.
Nunca na história deste país se produziu e se comprou tantos carros. Ótimo para quem está tendo acesso a bens de consumo pela primeira vez e para parte da economia, mas se não avaliarmos os impactos dessas ações, estaremos cavando nossa própria cova. Durante a crise econômica global, quando se aventou contrapartidas trabalhistas, sociais e ambientais às montadoras de automóveis que receberam benefícios de bilhões, chiaram as velhas e boas carpideiras do mercado, dando entrevistas às rádios pelo viva-voz de seus SUVs, bradando que o papel do Estado não é impor condições e criar entraves ao progresso. Por que, afinal de contas, todos nós sabemos que o papel do Estado é dar tiro em estudante para proteger a integridade do status quo.
Na lista de prioridades das coberturas de TV, congestionamentos ficam em primeiro plano. Colocam depoimentos de motoristas reclamando que perderam a hora para alguma coisa, xingando os “baderneiros”, mas não se escuta devidamente os manifestantes. Eles aparecem na tela para mostrar a causa do “drama” e desaparecem quando já serviram ao seu propósito.
Não estou defendendo que interditar vias públicas de grande circulação é a forma correta de protestar até porque “forma correta de protestar” é por si só uma contradição. Para algumas pessoas e grupos sociais é a saída encontrada para sair da invisibilidade. Ao contrário do que muitos pensam, ninguém faz greve porque quer ver multidões plantadas no aeroporto, chegando atrasadas no emprego ou perdendo o ano letivo, da mesma forma que ninguém protesta pelo prazer de ver outros se descabelarem no carro. ”Ah, mas o congestionamento afetou a vida de mais gente, por isso é a notícia mais importante.” O conceito de relevância jornalística se perde em justificativas como essa, desumanizando a situação, quando o motivo do protesto nem é devidamente citado.
Acreditamos que somos ocupantes provisórios da cidade em que vivemos. Os donos reais são os automóveis, é a eles que São Paulo pertence. Caso tivéssemos essa necessária sensação de sermos donos disso aqui, participaríamos realmente da vida da metrópole e das decisões dos seus rumos. O que restringe nosso direito de ir e vir não são protestos e sim o aumento na passagem de ônibus.
Pois, em São Paulo, quem tem dindim é livre. Quem não tem, vive pela metade.
Ao mesmo tempo, quem rompe a barreira do conformismo e protesta é criminalizado ou reduzido a um mero causador de congestionamentos. Para esses insurgentes, que não entendem que a cidade é um organismo autônomo que lhes presta um favor por deixarem nela viver, só gás nos olhos resolve.
Fonte
Houve depredação de equipamentos públicos? Sim, você encontra minorias de idiotas em todos os lugares. Mas isso não invalida nem diminui a importância do ato, que chama a atenção a um aumento de R$ 3,00 para R$ 3,20. Ou seja, uma passagem, que já é cara, de um serviço público de transporte urbano ruim ficará mais cara ainda. Jovens revoltados foram às ruas. Queriam protestar, se fazerem ouvidos. O poder público dialogou com bombas de gás.
Autoridades e alguns veículos de comunicação não demoraram a chamá-los de vândalos. Repórteres, com os olhos arregalados do tamanho do mundo, demonstravam o pânico de quem nunca imaginaria que aquela massa disforme poderia fazer barricadas com sacos de lixo. Falou-se em “contenção”, comentaristas na TV em “imposição da ordem”. Pouco sobre um Estado que não está nem aí para quem (sobre)vive nas franjas da sociedade e depende de transporte público. Na internet, houve quem pediu para colocar esses miseráveis bandidos de volta para o lugar deles.
A Justiça despeja centenas de famílias humildes de um terreno em São Paulo (que procuravam uma casa) e os sem-teto é que são vândalos. Jovens de classe média alta criam bandos para espancar e matar e moradores de rua e dependentes químicos (que procuram simplesmente existir) é que são vândalos. Fazendeiros invadem terras indígenas no Mato Grosso do Sul e mandam bala para quem cruzar a cerca e os indígenas que moravam ali (e procuram ser eles mesmos) é que são vândalos. Vândalos somos todos que ainda nos importamos com isso. Pois a indignação nada mais é que vandalismo para quem está tão embutido no sistema a ponto de ignorar que ele não funciona a contento.
A força pública paulista, que usou spray de pimenta em quem participava de uma manifestação contra a tarifa de ônibus há dois anos, agora repele o protesto com agentes químicos. Você pode escolher: ou chora porque seu mês “encurtou” com a tungada do reajuste ou pela ardência da malagueta. O recado que se passa à sociedade é claro: reclamar é proibido. Votou, escolheu, agora fique quieto e espere a próxima eleição. Regra de três: se o poder público deixasse de usar tanto spray de pimenta contra a população, sobraria mais dinheiro para abaixar o preço do busão?
A cidade tem que melhorar sua política de subsídios para o transporte coletivo a fim de estimular seu uso em detrimento ao transporte individual. Se não garantirmos opções boas e acessíveis, não conseguiremos desarmar essa que é uma das piores bombas-relógio da maior cidade do país.
E não é só evitar que o preço da passagem suba, e sim garantir qualidade e conforto para trazer o público que não é usuário de transporte coletivo para ele (aos poucos, é claro, porque não tenho tanta esperança no senso de coletividade da classe média paulistana assim). Enquanto isso, encarecer o transporte individual a ponto de ser um mau negócio usar carro a todo o momento, destinando os recursos dessas taxas e afins à ampliação da rede pública.
Nunca na história deste país se produziu e se comprou tantos carros. Ótimo para quem está tendo acesso a bens de consumo pela primeira vez e para parte da economia, mas se não avaliarmos os impactos dessas ações, estaremos cavando nossa própria cova. Durante a crise econômica global, quando se aventou contrapartidas trabalhistas, sociais e ambientais às montadoras de automóveis que receberam benefícios de bilhões, chiaram as velhas e boas carpideiras do mercado, dando entrevistas às rádios pelo viva-voz de seus SUVs, bradando que o papel do Estado não é impor condições e criar entraves ao progresso. Por que, afinal de contas, todos nós sabemos que o papel do Estado é dar tiro em estudante para proteger a integridade do status quo.
Na lista de prioridades das coberturas de TV, congestionamentos ficam em primeiro plano. Colocam depoimentos de motoristas reclamando que perderam a hora para alguma coisa, xingando os “baderneiros”, mas não se escuta devidamente os manifestantes. Eles aparecem na tela para mostrar a causa do “drama” e desaparecem quando já serviram ao seu propósito.
Não estou defendendo que interditar vias públicas de grande circulação é a forma correta de protestar até porque “forma correta de protestar” é por si só uma contradição. Para algumas pessoas e grupos sociais é a saída encontrada para sair da invisibilidade. Ao contrário do que muitos pensam, ninguém faz greve porque quer ver multidões plantadas no aeroporto, chegando atrasadas no emprego ou perdendo o ano letivo, da mesma forma que ninguém protesta pelo prazer de ver outros se descabelarem no carro. ”Ah, mas o congestionamento afetou a vida de mais gente, por isso é a notícia mais importante.” O conceito de relevância jornalística se perde em justificativas como essa, desumanizando a situação, quando o motivo do protesto nem é devidamente citado.
Acreditamos que somos ocupantes provisórios da cidade em que vivemos. Os donos reais são os automóveis, é a eles que São Paulo pertence. Caso tivéssemos essa necessária sensação de sermos donos disso aqui, participaríamos realmente da vida da metrópole e das decisões dos seus rumos. O que restringe nosso direito de ir e vir não são protestos e sim o aumento na passagem de ônibus.
Pois, em São Paulo, quem tem dindim é livre. Quem não tem, vive pela metade.
Ao mesmo tempo, quem rompe a barreira do conformismo e protesta é criminalizado ou reduzido a um mero causador de congestionamentos. Para esses insurgentes, que não entendem que a cidade é um organismo autônomo que lhes presta um favor por deixarem nela viver, só gás nos olhos resolve.
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