Zeca Pagodinho acaba a entrevista, cantarola Bezerra da Silva ("Favela quando é favela, não deixa morar delator") e conta logo qual é a boa: "Eu vou no jogo ali um bocadinho. Todo dia eu vou para o maldito daquele jogo. Ah, mas é ali que eu sei de tudo: que barracão que está pronto, quem vai sair. Sambista, jogo, futebol e bicheiro, está todo mundo junto."
Ex-anotador do jogo do bicho, o mais conhecido sambista do país é avesso a protocolos. Quando agendou a entrevista com a Folha, sua assessora sugeriu que a conversa fosse conduzida da maneira mais informal possível.
"Até hoje, é complicado você falar com um 'negocião' daquele te filmando. Você tem que saber o que falar", explica o cantor. "Eu sempre falo algum palavrão."
Zeca talvez seja o único brasileiro que levou uma caixinha de cerveja ao visitar o presidente da República ("lá poderia não ter"). O anfitrião de então é considerado um herói para ele, mas apenas isso. "Tem gente que pensa que sou amigo do Lula. Eu não tenho essa amizade, essa coisa de estar com ele toda hora."
Segundos depois, já está elogiando o ministro do STF Joaquim Barbosa, relator do mensalão e fã de Zeca. "Esse foi o cara de 2012. Gosto de gente decente. O cara botou para moer mesmo." E brinda: "Saúde, seu Joaquim."
Dá para explicar samba para gringo?
O gringo gosta de... Mangueira: tum-tum-tuntun-tum. Salgueiro. Portela. Carnaval. Copacabana. Bloco. É isso que gringo gosta. O samba só quem sabe é a gente, é a nossa linguagem. Não tem jeito.
Explicar partido alto é impossível?
Não, claro que não. Só quem pratica é que sabe.
E nem com o pessoal vindo para a Olimpíada esse estereótipo do samba vai mudar?
Isso vai passar, rapaz. Olimpíada não vai ficar pra sempre não. O samba é eterno. Pode até mudar, mas é o samba. Não tem gringo não tem ninguém não.
E você nem se preocupa em explicar o samba para os gringos?
Pra quê? Eles não vão entender mesmo. Se ele vier morar aqui, mesmo assim não dá. Isso é coisa nossa. Está no nosso sangue. Ninguém pode entender essas coisas.
Qual sua opinião sobre as escolas de samba no Rio hoje?
Nenhuma. Eu sou portelense, mas amo todas as escolas. Jamais poderia ser jurado. Ia dar dez para todo mundo. Só o fato de a pessoa se empenhar para fazer uma obra daquela para mim já ganhou. Eu não tenho olho para ser jurado. Acho todo o espetáculo maravilhoso.
As escolas têm sido muito criticadas pela escolha dos temas dos sambas-enredo ultimamente. Você vê isso como um problema?
Eu não frequento essa área. Eu nunca fui sambista de ir para escola de samba. A gente falava assim: o sambista de meio de ano. Sambista que gravava com Beth Carvalho, com Alcione, com Agepê, com Martinho. Sambista de meio de ano. Muitos deles, como eu, não se metiam em samba-enredo. Quando chegava a hora do samba-enredo, a gente tirava férias. Passava o Carnaval, a gente voltava. Ó, a Beth vai gravar, Alcione vai gravar, Mussum vai gravar. Nossa praia sempre foi essa. Mesmo porque antigamente eram 12 escolas. Cada uma com seus puxadores. Gente que tinha a característica da escola. Como o Neguinho da Beija Flor é Beija Flor até hoje. Antigamente você tinha Silvinho da Portela. Morreu na Portela. Aroldo? Da Ilha: Aroldo da Ilha. Então tocava um samba no rádio, conhecia mais pela voz do cara também. Gostava do samba, aprendia. Era mais fácil aprender 12 sambas.
Hoje as pessoas não conhecem. Por quê?
Porque não toca. Antigamente o samba começava a tocar em novembro. Dezembro a gente já sabia tudo. De Mangueira, de Portela, de Império. [Hoje] Não sabem nada. Não sabe o samba do ano passado. Eu sei o samba da década de 60, 70, eu conheço. Mas você não sabe o samba do ano passado. Muita coisa, e toca pouco.
Você vai desfilar neste ano?
Não. Meu Carnaval agora eu vou pra casa de um amigo em Xerém. Levo as crianças todas, amigas da minha filha, vai minha mãe. A gente vai para um sítio lá dentro, aí eu contrato uma bandinha, enfeito tudo como se fosse o carnaval antigo, e as crianças se fantasiam, mesma coisa: mamãe-eu-quero, índio-quer-apito. E a Mônica vai fazer pipoca, cachorro-quente, batata frita. Enfim, o Carnaval. Com confete, serpentina, tudo.
Do Carnaval de hoje você não gosta?
Não tem Carnaval. Vou gostar de quê? Não tem nada. Roubaram tudo, sumiram com tudo. Acabaram com tudo o que é da cultura. Tudo. Não sei que doideira deu nesse mundo aí.
Mas por que esse processo?
Também queria saber. Queria ler isso no jornal.
Desde quando?
Já de muito tempo. Vai muito tempo atrás. É a cultura do carioca, principalmente. Do brasileiro, mas mais do carioca. Antigamente o subúrbio era coisa enfeitada. Tinha coreto. Tinha baile infantil nos clubes. Também não tem mais clube, é um ou outro aqui.
Você acha que a violência teve algum papel?
Também. Não tem baile infantil pra você levar [as crianças]. Lá no meu condomínio tem, no prédio, mas eu não vou estar lá. Não sei o que aconteceu. As ruas não são mais enfeitadas. Também no meu bairro, em Del Castilho, tinha as cornetas. A gente ouvia as músicas de carnaval. Era um Carnaval. Não tem mais. Acho que Olinda que ainda tem. Carnaval. A Bahia tem, mas é axé, aquelas coisas assim. Estou falando de Carnaval, máscara, eu acho que é mais pro lado de Olinda.
No Rio você começou a notar esse declínio a partir de quando?
Há mais de 20 anos. Meu último filho nasceu no Carnaval. Ainda tinha Carnaval na Abolição. De lá pra cá...
E a relação do jogo do bicho com as escolas? Isso teve algum papel? É maléfico ou é benéfico?
Jogo, futebol, samba e feira é tudo igual. É todo mundo da mesma coisa. O cara que está vendendo maçã logo mais é o cara que está tocando ou cantando, e está no talão, e está jogando uma bola no domingo ou no sábado, ou é profissional. Sempre caminhou junto. Pelo que eu sei, as escolas cresceram por causa dos bicheiros, não foi mais por causa de ninguém. O jogo é que sempre bancava as escolas. Hoje em dia tem o governo, tem não sei quem, tem a prefeitura. Mas as escolas de samba sempre foram coisa do bicheiro, que levaram esse Carnaval até agora. Agora parece que vai mudar, não sei. Se até agora estava bom, meu medo é que mexa e...
E o Carnaval de rua aqui no Rio? Esse ano haverá quase 700 blocos.
É legal. A prefeitura deveria apoiar isso, dando mais banheiro, preparando a cidade para isso. Vem gente de fora. Não adianta botar dez banheiros para 200 mil pessoas. Não dá. E na hora de mijar nego não pensa em... Na hora que der vontade... Eu mesmo sou um, que tenho incontinência urinária, eu tomo remédio. Se puder eu vou mijar andando mesmo. Não quero saber não, fazer o quê?
Aqui, a entrevista completa, com vídeo