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Carlos Drummond de Andrade

Drummond é foda demais. Leio um poema dele praticamente todo dia... Lindo demais.
Fodástico, o poeta itabirano :yep:


Esse poema Sete Faces de Drummond deu vida a muita coisa. Uma versão do Torquato Neto.

LET'S PLAY THAT
Torquato Neto (musicado por Jards Macalé)

Quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião

eis que esse anjo me disse
apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes

Let's play that
Do CD Torquato Neto - Todo Dia É Dia D
Vários Artistas, Dubas Música, 2002
 
À pedidos da Ceinwyn, que é daquele tipo de ordem que a gente faz de muito bom grado, vou postar aqui um poema do Drummond do livro Claro Enigma, que é meu livro dele preferido:

Fraga e Sombra

A sombra azul da tarde nos confrange.
Baixa, severa, a luz crepuscular.
Um sino toca, e não saber quem tange
é como se este som nascesse do ar.

Música breve, noite longa. O alfanje
que sono e sonho ceifa devagar
mal se desenha, fino, ante a falange
das nuvens esquecidas de passar.

Os dois apenas, entre céu e terra,
sentimos o espetáculo do mundo,
feito de mar ausente e abstrata serra.

E calcamos em nós, sob o profundo
instinto de existir, outra mais pura
vontade de anular a criatura.

Lembro-me que o povo do Meia tava reclamando que não passava da primeira estrofe quando lia poesia, e aí eu sugeri que eles tentassem ler o poema de trás pra frente, pois isso funcionava com alguns, como os sonetos (visto que eles seguem um silogismo).

Esse poema do Drummond é consideravelmente difícil, mas, se você lê-lo de trás pra frente, ele fica bem mais fácil: assim, o poeta diz logo de cara que, no profundo instinto de existir (algo meio animalesco), ele quer anular a criatura. A próxima estrofe, que na leitura normal seria a penúltima, dá uma ideia disso: sentir o espetáculo do mundo que é feito de mar ausente e abstrata serra: e aí basta o leitor imaginar uma paisagem sem mar e sem serra. Em outras palavras, você não bem anulou a criatura, mas anulou os meios dessa criatura existir (isto é, o espaço).

A próxima estrofe nessa leitura inversa fala da música que é breve e a noite que é longa. Ou seja, a música é insuficiente para a noite, e essa noite talvez seja a noite do Nada advinda do mar ausente e da abstrata serra. Mas, logo depois, Drummond fala num alfanje (numa espada) que ceifa o sono e o sonho (onde sono+sonho=noite), e os ceifa devagar, como se esse alfange atrapalhasse a noite, como se ele atrapalhasse o mais profundo instinto de existir. Mas esse alfanje mal se desenha, fino (afiado, talvez), ante a falange das nuvens esquecidas de passar: e isso pois, segundo nossa leitura, o espaço se dissociou.

E essa clima de nada é o que nos confrange, conforme diz a última (a primeira) estrofe. A luz crepuscular é a luz que percorre o livro Claro Enigma inteiro e que se dissocia apenas no último poema do livro. O não saber quem toca o sino é uma forma de alienação que nos massacra mas que, ao mesmo tempo, não corresponde ao nosso profundo instinto de anular a criatura, pois a simples busca por saber quem tange esse sino em meio ao nada é uma espécie de luta contra a não-existência, pois buscar saber o espaço que nos cerca é também uma forma de conhecimento.

Essa contradição parece ser a tônica do poema analisado separadamente; se fôssemos analisar ele no contexto do livro, aí já teríamos que considerar o amor como uma forma de anulação da criatura etc (e, de modo geral, a descoberta do amor como solução ao tom crepuscular do poema que seria explicitada no poema MARAVILHOSO "Campo de Flores").

O título dá uma ideia disso também: fraga e sombra, rocha e sombra. Ou, em outras palavras, espaço e indivíduo, essa contraposição fundamental que Drummond desenha de forma magnífica (reiterando o que disse anteriormente, o termo "fraga", para além do "sombra" a que me referi, também tem conotações ao longo do poema. Mesmo porque, de resto, fraga remete ao "Uma pedra no meio do caminho").
 
Drummond também deixou uma mensagem de ano novo:

Receita de Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Discurso de primavera e algumas sombras. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1979, p. 115.
 
Vou ressuscitar o tópico porque queria uma opinião dos apreciadores de Drummond, qual livro vcs acham que seria o ideal pra começar a ler ele? Manjo pouco de poesia (não queria começar por antologia poética por ser caro haha)
 
Mas é que a Antologia Poética é realmente o melhor custo-benefício!

Outra opção seria você procurar pelos volumes da Poesia Reunida do Drummond. Se não se importar com livros velhos, recomendo a edição de 70, com uma capa horrorosa mas a meu ver a melhor entre todas que foram lançadas: digo isso em especial pelo fato de você ter o arco de 10 livros do Drummond, até o Lição de Coisas, que são meio que a parte mais importante da sua poesia (os outros livros possuem uma notória queda de qualidade), e pois você tem uma introdução do Antonio Houaiss que já é meio clássica. (Essa edição de 70 é só um livro; nas outras eles foram colocando em mais de uma edição.) É esse aqui:

IMGReuni%C3%A3o_0002.jpg

Se quiser uma edição mais recente do Poesia Reunida, aí é comprar os livrinhos da BestBolso:

http://www1.folha.uol.com.br/livrar...-23-livros-de-drummond-em-uma-so-edicao.shtml

Agora se quiser comprar ou ler um livro em específico, recomendo pra você o A Rosa do Povo. Acho ele mais acessível, e, em muitos sentidos, é um dos melhores do Drummond e dos melhores da poesia brasileira, em especial por unir com grande felicidade uma poesia participante e social a uma poesia esteticamente bem realizada.
 
valeu pelas sugestões @Mavericco . Mas sobre a "antologia poética", tenho uma dúvida, não faria mais sentido pegar um dos livros "normais" dele? Tipo, até onde eu saiba, um livro de antologia poética funciona mais ou menos como um "greatest hits", pra um leitor iniciante não seria melhor pegar um livro com poemas de assuntos interligados? (como é o caso da "rosa do povo" ou "sentimento do mundo"?

não sei se deu pra entender direito a dúvida haha
 
Sim, geralmente o funcionamento das antologias é esse. Mas essa antologia do Drummond foi feita pelo próprio Drummond, seguindo algumas linhas de força que ele enxerga na própria poesia (e a divisão dele é bem acurada). Então os poemas que ele seleciona, e da maneira que seleciona, permitem uma espécie de fio da meada -- ou isso que você disse de assuntos interligados -- tranquilamente!
 
"A Rosa do Povo" tem vários dos melhores poemas do Drummond, na minha opinião. E é o meu livro preferido dele. Se quiser começar por esse também é um bom caminho.
 
Sou conterrânea de Drummond, achei lindo quando ví esse tópico. :coxinha:

Vou postar uma poesia que é meio clichê mas que como todo itabirano sinto muito orgulho em compartilhar e estranhamente eu realmente me identifico com o "ser itabirano" orgulhoso, de ferro que Drummond sabiamente observava naquelas ruas de pedras que ainda estão lá:

Confidência do Itabirano

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

:(
 
Repulsa e reverência: antes de amá-lo, Drummond apedrejou Machado de Assis

drummond-x-machado.jpg


Carlos Drummond de Andrade tinha 22 anos quando, em 1925, escreveu o artigo "Sobre a Tradição em Literatura", publicado n'A Revista, de Belo Horizonte. Com a arrogância típica dos jovens, apontou a caneta contra Machado de Assis. Arremessando pedra e relativizando a importância dos clássicos, acusou o autor de "Dom Casmurro" de ser um romancista "tão curioso e, ao cabo, tão monótono", dono de uma obra clássica, "porém sem nenhum classicismo autêntico".

Não satisfeito, Drummond disparou uma profecia pra lá de furada: "O escritor mais fino do Brasil será o menos representativo de todos. Nossa alma em contínua efervescência não está em comunhão com sua alma hipercivilizada. Uma barreira infinita nos separa do criador de Brás Cubas. Respeitamos a sua probidade intelectual, mas desdenhamos a sua falsa lição. E é inútil acrescentar que temos razão: a razão está sempre com a mocidade".

Machado monótono? Machado como escritor menos representativo de todos? Razão sempre com a mocidade? É bom saber que um intelectual do quilate do mineiro de Itabira também já escreveu bobagens colossais. Em todo caso, é curioso notar que, durante o achincalhamento, Drummond dá indícios de sua admiração pelo próprio bruxo do Cosme Velho (apesar de conter certa ironia, apontá-lo como "escritor mais fino do Brasil" deixa transparecer esse reconhecimento).

Essa rusga do autor de "A Rosa do Povo", "Sentimento do Mundo" e "Claro Enigma" com o colega carioca ainda duraria algum tempo, mas com o tempo se transformaria em admiração. É isso que mostram os artigos e notas reunidos pelo Hélio de Seixas Guimarães, pesquisador e professor livre-docente na USP, no cativante "Amor Nenhum Dispensa uma Gota de Ácido – Escritos de Carlos Drummond de Andrade Sobre Machado de Assis" (Três Estrelas).

Antes do amor, o ácido em mais algumas estocadas contra os clássicos. Em "T'aí!", também de 1925, Drummond defende que o modernismo brasileiro deveria deixar de respeitar o peso da tradição. "Não posso negar o passado: um enforcado não pode negar a corda que lhe aperte o pescoço. Mas tenho o direito de declarar que a corda está apertando demais, puxa! E que o melhor é cortá-la duma vez. A boa gente do passadismo não deixa a tradição descansar… É tradição pr'aqui, tradição pr'acolá…", argumenta, para depois alegar que nomes como Shakespeare, Dante e Goethe só se tornaram gênios justamente porque "desrespeitaram a tradição, tiveram a coragem bonita de espirrar com o próprio nariz!". Na sequência, ainda chama de "hipócrita" o leitor que enumera nomes como esses para arquitetar uma defesa do tradicional.

Brigando pela liberdade criativa dos pares de sua época, que não deveriam se preocupar demais em seguir linhagens literárias já estabelecidas, Drummond debate-se contra a tradição e, por extensão, contra a visão a respeito do próprio Machado. No entanto, mais maduro, muda o tom com relação ao bruxo e passa a reconhecê-lo como "nossa figura máxima". Num elogio que evidencia essa conflituosa relação que nutre, escreve em artigo de 1950:

"O autor de 'Quincas Borba' peca por esse vício inicial de escrever bem, bem demais, excessivamente bem. Não é recomendável que se institua um modelo dessa ordem, num país ainda novo, que deve cultivar sobretudo as suas forças primitivas e cósmicas". Exemplo máximo da reverência escancarada, não mais conflituosa, está em "A Um Bruxo, Com Amor", publicado no Correio da Manhã de 1958, poema no qual o Drummond apoia-se em escritos do próprio Machado. Nele, o mineiro enaltece o mestre: "Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro". E continua: "Onde o diabo joga dama com o destino,/ estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,/ que revolves em mim tantos enigmas".

Ao longo dos escritos reunidos no volume organizado por Guimarães, Drummond ainda demonstra um particular interesse pela carreira de burocrata do colega – o poeta mineiro também foi um burocrata, não custa lembrar – e encampa a briga contra a transferência do corpo de Machado e Carolina, sua esposa, do cemitério onde tinham sido enterrados para a sede da Academia Brasileira de Letras (ABL). Nesses momentos, transparece um discurso que soa oportuno ainda hoje. "E o que faria d. Carolina de Assis nesse panteão privativo de acadêmicos, ela que nunca pertenceu à Academia, a qual por sua vez jamais admitiu mulheres em suas poltronas?", questiona em artigo de 1958. Ainda sobre a companheira de Machado e a ABL, volta ao tema em no ano seguinte, quando lembra que Carolina "não foi acadêmica, nem podia sê-lo, pois a corporação é misógina".

Drummond morreu em agosto de 1987. Já no final da vida, em um breve fragmento de 1986 no qual comenta a sua formação de leitor, aproveitou para admitir as rusgas de outrora com o autor que tanto admirou: "Cheguei cedinho a Machado de Assis. Deste não me separaria nunca, embora vez ou outra lhe tenha feito umas má-criações. Justifico-me: amor nenhum dispensa uma gota de ácido. É mesmo o sinal menos que prova, pela insignificância e transitoriedade, a grandeza do sinal mais. Se me derem Machado na tal ilha deserta, estou satisfeito: o resto que se dane, embora o resto seja tanta coisa amorável".
 
O Modernismo é realmente intrigante: ao mesmo tempo em que prega pela renovação máxima e pela jovialidade, não ironicamente é, em certos aspectos, bastante careta.
 
Poema "E agora, José?" de Carlos Drummond de Andrade


O poema "José" de Carlos Drummond de Andrade foi publicado originalmente em 1942, na coletânea Poesias. Ilustra o sentimento de solidão e abandono do indivíduo na cidade grande, a sua falta de esperança e a sensação de que está perdido na vida, sem saber que caminho tomar.

José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?​

Análise e interpretação do poema


Na composição, o poeta assume influências modernistas, como verso livre, ausência de um padrão métrico nos versos e uso de linguagem popular e cenários cotidianos.

Primeira estrofe


E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?​

Começa por colocar uma questão que se repete ao longo de todo o poema, se tornando uma espécie de refrão e assumindo cada vez mais força: "E agora, José?". Agora, que os bons momentos terminaram, que "a festa acabou", "a luz apagou", "o povo sumiu", o que resta? O que fazer?

Esta indagação é o mote e o motor do poema, a procura de um caminho, de um sentido possível. José, um nome muito comum na língua portuguesa, pode ser entendido como um sujeito coletivo, metonímia de um povo. Quando o autor repete a questão, e logo depois substitui "José" por "você", podemos assumir que está se dirigindo ao leitor, como se todos nós fossemos também o interlocutor.

É um homem banal, "que é sem nome", mas "faz versos", "ama, protesta", existe e resiste na sua vida trivial. Ao mencionar que este homem é também um poeta, Drummond abre a possibilidade de identificarmos José com o próprio autor. Coloca também um questionamento muito em voga na época: para que serve a poesia ou a palavra escrita num tempo de guerra, miséria e destruição?

Segunda estrofe


Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?​

Reforça a ideia de vazio, de ausência e carência de tudo: está sem "mulher", "discurso" e "carinho". Também refere que já não pode "beber", "fumar" e "cuspir", como se seus instintos e comportamentos estivessem sendo vigiados e tolhidos, como se não tivesse liberdade para fazer aquilo que tem vontade.

Repete que "a noite esfriou", numa nota disfórica, e acrescenta que "o dia não veio", como também não veio "o bonde", "o riso" e "a utopia". Todos os eventuais escapes, todas as possibilidades de contornar o desespero e a realidade não chegaram, nem mesmo o sonho, nem mesmo a esperança de um recomeço. Tudo "acabou", "fugiu", "mofou", como se o tempo deteriorasse todas as coisas boas.

Terceira estrofe


E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?​

Lista aquilo que é imaterial, próprio do sujeito ("sua doce palavra", "seu instante de febre", "sua gula e jejum", "sua incoerência", "seu ódio") e, em oposição direta, aquilo que é material e palpável ("sua biblioteca", "sua lavra de ouro", "seu terno de vidro"). Nada permaneceu, nada restou, sobrou apenas a pergunta incansável: "E agora, José?".

Quarta estrofe


Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?​

O sujeito lírico não sabe como agir, não encontra solução face ao desencantamento com a vida, como se torna visível nos versos "Com a chave na mão / quer abrir a porta, / não existe porta". José não tem propósito, saída, lugar no mundo.

Não existe nem mesmo a possibilidade da morte como último recurso - "quer morrer no mar, / mas o mar secou" - ideia que é reforçada mais adiante. José é obrigado a viver.

Com os versos "quer ir para Minas, / Minas não há mais", o autor cria outro indício da possível identificação entre José e Drummond, pois Minas é a sua cidade natal. Já não é possível voltar ao local de origem, Minas da sua infância já não é igual, não existe mais. Nem o passado é um refúgio.

Quinta estrofe


Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!​

Coloca hipóteses, através de formas verbais no pretérito imperfeito do subjuntivo, de possíveis escapatórias ou distrações ( "gritasse", "gemesse", "tocasse a valsa vienense", "morresse") que nunca se concretizam, são interrompidas, ficam em suspenso, o que é marcado pelo uso das reticências.

Mais uma vez, é destacada a ideia de que nem mesmo a morte é uma resolução plausível, nos versos:
"Mas você não morre / Você é duro, José!". O reconhecimento da própria força, a resiliência e a capacidade de sobreviver parecem fazer parte da natureza deste sujeito, para quem desistir da vida não pode ser opção.

Sexta estrofe


Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?​

É evidente o seu isolamento total ("Sozinho no escuro / Qual bicho-do-mato"), " sem teogonia" (não há Deus, não existe fé nem auxílio divino), "sem parede nua / para se encostar" (sem o apoio de nada nem de ninguém), "sem cavalo preto / que fuja a galope" (sem nenhum meio de fugir da situação em que se encontra).

Ainda assim, "você marcha, José!". O poema termina com uma nova questão: "José, para onde?". O autor explicita a noção de que este indivíduo segue em frente, mesmo sem saber com que objetivo ou em que direção, apenas podendo contar consigo mesmo, com o seu próprio corpo.

O verbo "marchar", uma das últimas imagens que Drummond imprime no poema, parece ser muito significativo na própria composição, pelo movimento repetitivo, quase automático. José é um homem preso à sua rotina, às suas obrigações, afogado em questões existenciais que o angustiam. Faz parte da máquina, das engrenagens do sistema, tem que continuar suas ações cotidianas, como um soldado nas suas batalhas diárias.

Mesmo assim, e perante uma mundividência pessimista, de vazio existencial, os versos finais do poema podem surgir como um vestígio de luz, uma réstia de esperança ou, pelo menos, de força: José não sabe para onde vai, qual o seu destino ou lugar no mundo, mas "marcha", segue, sobrevive, resiste.
Leia também a análise do poema No Meio do Caminho de Carlos Drummond de Andrade.

Contexto histórico: Segunda Guerra Mundial e Estado Novo


Para compreender o poema na sua plenitude é essencial termos em vista o contexto histórico no qual Drummond viveu e escreveu. Em 1942, em plena Segunda Guerra Mundial, o Brasil também tinha entrado num regime ditatorial, o Estado Novo de Getúlio Vargas.

O clima era de medo, repressão política, incerteza perante o futuro. O espírito da época transparece, conferindo preocupações políticas ao poema e expressando as inquietações cotidianas do povo brasileiro. Também as condições de trabalho precárias, a modernização das indústrias e a necessidade de migrar para as metrópoles tornavam a vida do brasileiro comum numa luta constante.

Carlos Drummond de Andrade e o Modernismo brasileiro


O Modernismo brasileiro, que surgiu durante a Semana de Arte Moderna de 1922, foi um movimento cultural que pretendia quebrar os padrões e modelos clássicos e eurocêntricos, heranças do colonialismo.

Na poesia, queria abolir as normas que restringiam a liberdade criativa do autor: as formas poéticas mais convencionais, o uso de rimas, o sistema métrico dos versos ou os temas considerados, até então, líricos.

A proposta era abandonar o pedantismo e os artifícios poéticos da época, adotando uma linguagem mais corrente e abordando temas da realidade brasileira, como modo de valorizar a cultura e a identidade nacional.

Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, no dia 31 de outubro de 1902. Autor de obras literárias de vários gêneros (conto, crônica, história infantil e poesia), é considerado um dos maiores poetas brasileiros do século XX.

Integrou a segunda geração modernista (1930 - 1945) que abraçou as influências dos poetas anteriores, e se focou largamente nos problemas sociopolíticos do país e do mundo: desigualdades, guerras, ditaduras, surgimento da bomba atômica. A poética do autor também revela um forte questionamento existencial, pensando no propósito da vida humana e no lugar do homem no mundo, como podemos ver no poema em análise.

Em 1942, data de publicação do poema, Drummond estava de acordo com o espírito da época, produzindo uma poesia política que expressava as dificuldades diárias do brasileiro comum e as suas dúvidas e angústias, assim como a solidão do homem do interior perdido na cidade grande.
Drummond morreu no Rio de Janeiro, dia 17 de agosto de 1987, na sequência de um infarto do miocárdio, deixando um vasto legado literário.
 
Ô migo @Finarfin dê uma olhada neste tópico, aqui, e diga-nos se vai tentar ler mais alguma coisa de Drummond.​
 
Eu gosto de Drummond, e não só pretendo continuar lendo, como tenho um monte de livros dele que comprei naquela promoção de troca de editora.

O que aconteceu é que nessa de pegar vários livros, acabei me deparando com muita coisa insossa, que não me diz nada, que não me suscita nada. O último que li, por exemplo, "A falta que ama", não me chamou a atenção nem unzinho poema sequer.

Claro, tem coisas dele que são ótimas. Mas a produção dele é bastante vasta, e tem muuuuita coisa que se eu não tivesse lido, não me faria falta alguma. O que é sempre uma decepção vindo de alguém como ele.
 

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