SANTA MARIA — Pais de uma aluna da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), vítima da tragédia na boate Kiss, foram nesta quarta-feira pela manhã até o campus devolver um livro do acervo da biblioteca local, que encontraram no quarto da filha.
— Havia no livro a etiqueta da biblioteca universitária, e eles vieram aqui devolver. Eu não sabia o que dizer — confessou a coordenadora do curso de Zootecnia, Rosamélia Berleze.
Às vésperas da retomada das aulas, na segunda-feira, os professores do Centro de Ciências Rurais (CCR) estão abatidos e desorientados e sem saber como receber os alunos. Constituído pelos cursos de Agronomia, Medicina Veterinária, Zootecnia, Engenharia Florestal e Tecnologia dos Alimentos, o CCR foi o departamento mais atingido pelo incêndio na discoteca, com 62 alunos mortos e outros tantos hospitalizados.
Pelo site de seu curso no Facebook, Rosamélia tem procurado incentivar seus alunos a não perderem a volta às aulas na semana que vem:
— Alguns deles escrevem dizendo que não querem mais vir. Temos de trazê-los para cá o quanto antes, inclusive para eles também nos darem força. É tentar juntar os pedacinhos do que sobrou.
Para orientar os docentes na difícil tarefa de acolher alunos chocados com a perda de tantos colegas, o CCR convocou para às 9h de hoje uma reunião de seus cerca de 230 professores em seu auditório, para receber o aconselhamento de psicólogos da universidade.
— Não se sabe como será a reação dos alunos. Estamos nos preparando psicologicamente. Os professores mais fragilizados, principalmente os mais jovens, entre 28 e 30 anos, têm vindo nos pedir apoio, e dizem: “O que fazer? Fazer o quê” — contou Irineu Zanella, vice-diretor do CCR.
A formatura do curso de Zootecnia, prevista para amanhã, foi adiada para março. Haverá apenas uma colação em gabinete para aqueles que necessitam do diploma agora. A festa “Galope da Veterinária”, agendada também para amanhã, foi cancelada.
— Esses eventos todos terão de ser revistos, inclusive por causa dos locais onde são realizados. O meu CTG (Centro de Tradições Gaúchas), que perdeu três dançarinas na tragédia, e onde são organizadas formaturas, possui um alvará provisório, por exemplo — alerta Zanella.
No balcão da coordenação do curso de Medicina Veterinária, a estudante Mirela Lopes, abalada, não tinha forças para falar. Sua mãe morreu há dez dias, e agora perdeu no incêndio da Kiss seu afilhado, que fora criado por ela.
— Ele era como um filho para mim — diz, com a voz sumindo.
Mirela foi até o campus para suspender o curso por um semestre, mas estava contrariada com as datas em precisaria retornar para oficializar o pedido.
— Não pode ser antes? Tudo o que eu quero é fugir dessa cidade — desabafou.
O coordenador do curso, José Carlos de Oliveira, não conseguia esconder sua desolação. Do total de quatro alunas de sua turma numa disciplina complementar, duas morreram:
— Quinze alunos da Veterinária morreram na tragédia. Professores sugerem que se deve promover celebrações para as vítimas na volta aulas. Mas acho que isso não será bom, poderá abalar ainda mais, afeta muito emocionalmente.
No curso de Agronomia, coordenado por Toshio Nishijima, o incêndio fez 26 vítimas. Ele foi um dos que correram para o Centro Desportivo Municipal, para onde foram transferidos os corpos dos jovens, tão logo soube da dimensão da tragédia:
— Fui para lá, apesar de terem me dito: “Professor, naquele ginásio está um cenário de guerra”. Mas não foi assim. Meu pai veio da Segunda Guerra no Japão, e o cenário que ele descrevia não era aquele. Havia naquele ginásio uma dignidade muito grande, uma enorme solidariedade.
Na disciplina Fundamentos da Ciência do Solo, o professor Fabrício de Araújo Pedron perdeu 12 alunos de uma mesma sala de aula. Triste, desconcentrado, conta que no final do ano passado fez uma viagem de dois dias com a turma para conhecer o solo da região, o que aproximou mais o grupo.
— Quando um aluno morre já é complicado, imagine 12. Haverá 12 cadeiras vazias. E acredito que 90% dessa turma de cerca de 60 alunos estiveram na festa de sábado. Nós não vivenciamos aquele horror, mas eles, sim. É muito duro para eles. É difícil saber como recomeçar — admitiu.
Para ele, a primeira semana de aula deve ser reservada para palestras e encontros, sem aulas. Mas as opiniões divergem:
— Tem professor que quer a anulação do semestre; outro diz que todos os alunos devem ser aprovados, e tem quem quer começar a dar aula. Por isso necessitamos da ajuda dos psicólogos.
Em torno de uma mesa de madeira disposta num corredor, sete alunos do curso de Engenharia Florestal se reuniram espontaneamente para refletir sobre ações a serem promovidas no reinício das aulas. Camila Traesel Schreiner sugeriu uma homenagem:
— Eu penso que se deve construir uma concha acústica, com música e manifestações, um espaço aberto, vivo, o oposto daquela boate fechada e abafada onde morreram nossos colegas e amigos.