- “O ajuste fiscal promovido se mostrou contraproducente, pois gerou aumento da dívida pública e do déficit público”
Não houve "ajuste fiscal". Os gastos continuaram a subir, enquanto a arrecadação já vinha em queda desde antes disso. Desde o início da série de dados disponíveis pela Fazenda (1997-presente), a despesa primária caiu em apenas dois anos: 2003 (-3,87%) e 2011 (-2,67%), sendo que nesse último caso o fato ocorreu logo após um ano de crescimento recorde dessas despesas: 16,30% em 2010! Nos anos seguintes, a despesa seguiu crescendo sempre: 5,4% em 2012, 6,4% em 2013, 6,3% em 2014 e 2,1% em 2015. Mesmo com esse crescimento, a economia se retraiu, e daí o aumento da dívida e do déficit: enquanto receita e produto caíram, os gastos seguiram crescendo. Inclusive, nota-se que esse crescimento dos gastos não impediu o produto de cair. (ver a imagem anexada, que utiliza dados da secretaria do tesouro, ajustados pelo IPCA).
- "Em 2015, por exemplo, os investimentos públicos sofreram queda real de mais de 40% no nível federal"
Pelo que verifiquei nos dados de investimento público do orçamento geral da união, essa queda foi na verdade de 35,4%, em valores reais (91,2 bi para 58,9 bi). Se somarmos os valores do PAC de cada ano (67,3 bi em 2014 e 49,8 bi em 2015), essa queda é de 31,4%. Gostaria de saber de onde vieram os números do artigo, mas eles não citam. Talvez eles tenham incluído inversões financeiras na conta do investimento, mas se for o caso faltou deixar isso mais claro.
- "Naquele ano (2015), apesar de todo o esforço do governo para reduzir as despesas, que caíram 2,9% em termos reais"
Não confere. As despesas cresceram 2,1% em 2015, em termos reais (dados da secretaria do tesouro, ajustados pelo IPCA).
- "O afrouxamento da meta fiscal para 2016 e 2017 evidencia por um lado o pragmatismo econômico e, por outro lado, hipocrisia dos que argumentam pela austeridade e, simultaneamente, passam a defender um déficit primário recorde no novo Governo."
Não há nenhuma hipocrisia em estabelecer uma meta fiscal que seja compatível com a realidade. Mudar o volume de gastos não é algo exequível da noite para o dia (como o próprio debate sobre a PEC revela), então é preciso trabalhar com os cenários reais, que envolvem a queda acentuada na arrecadação decorrente da retração econômica. Estabelecer uma meta irreal seria irresponsabilidade fiscal. Além disso, é errado falar em "defender um déficit". Ninguém defende o déficit (a não ser o artigo em questão, em alguns pontos). O déficit é apenas uma realidade, ninguém fez uma defesa dele.
- "A proposta apoia-se em argumentos falsos de que nações desenvolvidas usam regras semelhantes. "
Tetos de gastos já foram aplicados em vários países. De maneira exatamente igual ao da proposta neste momento (isto é, com reajustes indexados apenas pela inflação) realmente não. O fato é que cada país tenta aplicar medidas adaptadas às suas necessidades e ao seu contexto. O que também não significa que não se possa olhar para outros casos para tentar tirar lições.
- "Desde 2011, membros da União Europeia estabeleceram um limite para o crescimento da despesa associado à taxa de crescimento de longo prazo do PIB e não em crescimento real nulo. "
Países que estão em condições muito diferentes na nossa condição atual, e que não possuem um risco inerente tão grande em torno de sua dívida, o que lhes permite ter juros baixos para financiar eventuais déficits.
- "Na maioria desses países já existe uma estrutura consolidada de prestação de serviços públicos, diferentemente do Brasil onde há muito maiores carências sociais e precariedades na infraestrutura."
Países com renda elevada possuem mais condições de consolidar serviços públicos. Sem renda, não há de onde extrair recursos para pagar as contas que decorrem dos gastos públicos, sejam em áreas sociais ou não. Nosso caso é o de um país que optou por um estado de bem-estar crescente, ao passo que nossa produtividade permaneceu estagnada. A conta não fecha.
- "para que o teto global da despesa seja cumprido – dado que algumas despesas como os benefícios previdenciários tendem a crescer acima da inflação - os demais gastos (como Bolsa Família e investimentos em infraestrutura) precisarão encolher de 8% para 4% do PIB em 10 anos e para 3% em 20 anos"
Uma coisa é verdade: é preciso que ocorra também uma reforma previdenciária. A PEC exercerá pressão adicional para que isso ocorra. Sobre a redução dos demais gastos, não é possível precisar em que medida e onde ocorrerá exatamente. Mas se não houver reforma previdenciária, é fato que reduções terão que ocorrer em outros lugares.
- "A nova regra não prevê nenhum mecanismo para lidar com crises econômicas ou outros choques. Ao contrário, tende a engessar a política fiscal por duas décadas."
Uma década na verdade, pois permite revisão após isso. De qualquer forma, esse de fato pode ser um problema, para quem defende que o estado tenha um papel fundamental de realizar políticas fiscais anti-cíclicas (o que não é meu caso, por exemplo, mas isso entra em outra discussão muito mais longa).
- "o que o novo regime se propõe a fazer é retirar da sociedade e do parlamento a prerrogativa de moldar o tamanho do orçamento público"
Não retira "da sociedade", porque nunca esteve nas mãos “da sociedade” a decisão sobre o tamanho do orçamento. Ele é definido segundo critérios que não passam pela aprovação ou reprovação direta da sociedade, mas sim de seus representantes - os mesmos representantes que podem estar optando agora por reduzir sua capacidade de definir o tamanho desse orçamento. De qualquer forma, uma das conquistas mais importantes das sociedades modernas é justamente a introdução de mecanismos constitucionais que restringem o poder discricionário do estado - isto é, a sociedade escolheu restringir a ação de seus ditos representantes, o que é fundamental (Constituições são sobre isso!). A PEC é uma forma de apertar essas restrições, uma vez que as atuais (como a LRF) se mostraram insuficientes para controlar a irresponsabilidade com o dinheiro público.
- "Quem ganha? Quem não quer financiar os serviços públicos por meio de impostos e o grande capital que enxerga o Estado como concorrente quando esse ocupa setores que poderiam ser alvo de lucros privados, como saúde e educação"
Quem financia o estado com impostos é sobretudo a população mais pobre, então essa assertiva acaba defendendo a PEC. Pergunte a qualquer um se ele gosta de pagar impostos, se ele desejaria pagar mais impostos.
E o "grande capital" não é concorrente do estado, é aliado. A melhor coisa para o "grande capital" é usar o estado para garantir suas posições e restringir a concorrência. Rent-seeking é o sobrenome do Brasil.
- "Quem perde? A população mais pobre, isto é, aqueles que são os principais beneficiários dos serviços públicos. Além disso, aqueles que vislumbram uma sociedade mais justa e igualitária"
Quem perde são os rentistas, que ao longo do tempo perderão receitas derivadas de juros da dívida pública. Quem perde é a casta dos servidores públicos que ganham muito acima do que o mercado lhes pagaria, e que sempre conseguem revisões muito generosas de seus salários, sempre às custas do pagador de impostos (não à toa eles são um dos principais fronts no combate à PEC).
- "A recomendação de que o Estado deve cortar gastos em momentos de crise parte de uma falácia de composição que desconsidera que se todos os agentes cortarem gastos ao mesmo tempo, inclusive o Estado, não há caminho possível para o crescimento"
A falácia está em usar um espantalho, afirmando que "TODOS os agentes cortam gastos ao mesmo tempo". De qualquer maneira, novamente aí entra a questão bem discutível do papel do estado como promovedor de políticas anti-cíclicas. Por exemplo:
- "A solução mais razoável para tratar de um desajuste fiscal em meio a uma recessão é, portanto, estimular o crescimento, não cortar gasto. "
Se existe um déficit, como a saída para ele pode ser gastar mais, e não menos? A única saída é se esse gasto estimular o crescimento. Mas isso nem sempre ocorre (ver a imagem, onde os gastos seguiram crescendo, e o PIB caindo), e o desajuste fiscal se agrava de qualquer maneira - afinal, apenas uma fração dos recursos gastos irá retornar como receitas. Intertemporalmente, a população continua tendo que pagar a conta. Então é como se o governo aumentasse o déficit e a dívida hoje (e por consequência elevando juros, o que leva a aumento da dívida no futuro) para cobrar a conta da população amanhã. O problema estrutural não foi resolvido - provavelmente foi agravado.
- "cortes do gasto público induzem a redução do crescimento que provoca novas quedas da arrecadação que, por sua vez, exige novos cortes de gasto. "
Não necessariamente. Não cortar gastos e manter o déficit implica que o governo precisa se financiar com empréstimos, e também implica aumento do risco - o que leva a aumento de juros, o que também retrai a economia. Em um estado muito dependente do governo, é evidente que a redução do gasto estatal vai levar a uma retração econômica no curto prazo. Mas isso pode ser saudável no longo prazo, pois deixa mais dinheiro no bolso das pessoas e da iniciativa privada. De modo geral, a análise do texto peca pela miopia: só vê questões de curto prazo e ignora o horizonte de tempo mais amplo.
- "A obsessão alarmista contra qualquer elevação da dívida pública esconde uma agenda política permeada por interesses de grupos econômicos, mas travestida como uma questão meramente técnica, seja ao defender a retração de bancos públicos, seja ao demandar a redução dos gastos sociais. "
A dívida pública não é "meramente técnica": é questão fundamental para a saúde econômica de um país. Mas é curioso falar que a contenção da dívida é uma agenda permeada por "interesses de grupos econômicos". Além de ser uma afirmação extremamente vaga (quais grupos econômicos), ignora que, por exemplo, para rentistas que adoram viver de altos juros da dívida, a contenção da mesma naturalmente não é interessante.
- "No fundo, a austeridade é principalmente um problema político de distribuição de renda e não um problema de contabilidade fiscal."
Aqui o autor dá a definição que ele quer para austeridade (distribuição de renda). Curiosamente, não é a definição clássica de austeridade (controle de gastos para que estejam compatíveis com as receitas).
- "Apesar das inúmeras evidências contrárias à sua eficácia, a austeridade persiste como ideologia e sempre retorna ao debate político por ser oportuna para os grupos dominantes de poder."
Um ataque à "ideologia" da austeridade, vindo de um texto que é recheado de assertivas ideológicas. Faltou enumerar essas “inúmeras” evidências. De preferência, evidências sérias, que busquem mensurar a dimensão das políticas de austeridade e isolar seus efeitos.
- "em contextos de baixo crescimento, a busca pelo cumprimento da meta fiscal por meio de uma política fiscal contracionista retira estímulos à demanda agregada e reduz ainda mais o crescimento econômico e a própria arrecadação."
Ou, pode enviar um sinal positivo para o mercado de que o governo será responsável, e a atividade econômica pode responder positivamente. Expectativas desempenham um papel importante, e são diretamente afetadas pela maneira que a mensagem é passada e sua credibilidade. De qualquer maneira, é uma falta de imaginação acreditar que a única saída para "um contexto de baixo crescimento" seja gastar mais. Além desse tipo de recomendação ignorar as causas desse baixo crescimento, se furtando a atacar o problema real, ela tem uma crença infundada na eficiência do gasto público. E novamente, é preciso contrastar a retração econômica recente com o contínuo crescimento dos gastos. Eles não deveriam ter estimulado a atividade econômica?
- "Há diversas variantes institucionais para um regime fiscal, dentre essas estão as que estipulam metas fiscais ajustadas ao ciclo econômico, como a meta de “resultado fiscal estrutural”. Ou alternativamente, pode-se adotar bandas fiscais de forma análoga ao que ocorre no regime de metas de inflação. Ainda há a opção, aplicada em alguns países, de retirar todo investimento público do cálculo do superávit primário (assim como o gasto com juros é excluído desse indicador) e assim incentivar o uso do investimento público como vetor de desenvolvimento e abrir espaço para atuação anticíclica do gasto público"
Já existe uma aplicação de resultado fiscal estrutural realizada pela Secretaria de Política Econômica. Por ela, os resultados dos últimos anos seriam os seguintes (colocarei em parênteses o número do resultado primário convencional, pra contrastar): 2010: 1,7% (2,62%);
2011: 2,18% (2,94%); 2012: 1,41 (2,18%); 2013: 0,14% (1,72%); 2014: -2,02% (-0,57%); 2015: -0,9% (-1,88%).
Ou seja, quase sempre o resultado estrutural é pior, no nosso caso. Na média 2002-2015, o resultado médio pelo critério estrutural é de 1,97%, conta 2,32% pelo convencional. Se for considerar apenas o governo central, o critério estrutural aponta média de 1,29%, contra 1,61% do critério convencional. (fonte:
http://www.spe.fazenda.gov.br/assun...do-fiscal-estrutural-no-periodo-2002-15-2.pdf)
Sobre bandas fiscais e remoção do investimento, também temos que pensar o seguinte: uma mudança de critérios agora pode ser um péssimo sinal, uma declaração de incapacidade de cumprir com os critérios vigentes, um atestado de frouxidão com o dinheiro público. Se esses modelos poderiam ser melhores, cabe fazer avaliação. Mas tentar mudar o sistema agora é uma receita quase certa para o pior.
- "A dívida brasileira é tão grande? Qual é o parâmetro para definição de “grande”? Na verdade, poucos economistas se arriscam a definir um parâmetro ótimo para dívida pública, simplesmente porque as evidências não parecem indicar que esse patamar exista."
A não existência de uma medida ótima não implica que não se deva preocupar com o tamanho da dívida e que não se possa afirmar algo sobre o quão grande ela pode ser, ou quão saudável. É possível verificar, por exemplo, o quanto o pagamento de juros pode estar afetando as contas públicas, a dinâmica da dívida no médio e longo prazo e nossa (in)capacidade de pagá-la.
- "No Brasil, a excessiva preocupação com o patamar da dívida é carregada por preconceitos ideológicos"
"Preconceito" implica que a "ideologia" em questão não considerou uma série de fatores antes de expressar sua preocupação. Não parece ser o caso quando a análise sobre a dívida é embasada em literatura, em comparações internacionais, etc. Afirmar que é "preconceito ideológico", assim, é completamente vazio.
- "Uma dívida elevada pode custar muito caro, mas um Estado soberano não quebra por conta de dívidas na sua própria moeda."
O estado não "quebra" porque ele pode continuar extraindo recursos de sua população ou emitindo moeda. Mas até isso tem limite. Em algum ponto a coisa degringola de vez, e aí acontece o que vimos nos anos 1980. Falar que "o estado não quebra" para defender o endividamento elevado é quase sinônimo de irresponsabilidade fiscal: ignora todos os efeitos nefastos que podem decorrer desse endividamento.
- "No final de 2014, pelo critério da dívida líquida não havia um cenário de tragédia fiscal, desenhado pelos economistas da mídia e do mercado."
Ninguém utiliza dívida líquida como critério, mas sim dívida bruta. Afirmar isso é demonstração de desconhecimento das contas públicas e de indicadores da situação fiscal do país.
- "Havia sim, condições financeiras para realizar uma política anticíclica que ampliasse o investimento público e o gasto social para impedir que a desaceleração cíclica se transformasse em uma depressão."
Lembrando: os gastos públicos continuaram crescendo. Ainda assim, a desaceleração seguiu seu curso. Algo está errado nessa análise.
- "a política de expansão dos empréstimos do BNDES, em 2009, foi importante para a ação contracíclica que assegurou a recuperação rápida da economia brasileira"
Sinceramente, eu preferiria que o meu dinheiro não tivesse sido destinado para Eikes Batistas para "salvar a nação da crise". Salvação que durou pouco, aliás. A conta tarda, mas chega.
- "se o objetivo for equacionar a dívida bruta é preciso desatar o nó da gestão macroeconômica, reduzir substancialmente o gasto com juros e ponderar o custo da estratégia de acumulação de ativos."
Como reduzir gastos com juros se não há proposta de obter superávit primário para reduzir a dívida? Ao contrário, a proposta de seguir expandindo gastos terá o efeito de elevar os juros.
- "A ideia que se disseminou no Brasil de que ao governo só compete controlar os gastos primários, desconsiderando os custos e benefícios fiscais das demais políticas macroeconômicas, deve ser revista e amplamente debatida."
Se disseminou mesmo? Olhando para a prática do governo, não se observa isso: ele continua atuando para muito além dos gastos primários.
- "Vale notar que, a despeito de gastos elevados, o governo conseguiu manter resultados fiscais positivos na última década e meia pelo aumento da carga tributária (1999-2005) ou pelo crescimento mais acelerado do PIB (2006-2011)."
Exatamente. Agora o cenário mudou completamente. Quase não há espaço para aumento da carga tributária (também convém lembrar a curva de Laffer), bem como o crescimento do país estagnou, não somente pela questão fiscal, mas por não ter resolvido uma série de problemas estruturais. Enquanto esses problemas não forem resolvidos, teremos na melhor das hipóteses uma sucessão de vôos de galinha - um cenário que não vai permitir gastos elevados.
- "Então, qualquer proposta de reforma do imposto de renda que não passe pela tributação dos dividendos não será tão efetiva nos objetivos de contribuir com uma maior justiça fiscal e também gerar receitas extras para o governo. "
É preciso analisar com precisão os efeitos dessa tributação. Não adianta calcular uma alíquota em cima de uma base e desconsiderar que essa base pode mudar em função da alíquota (fuga de capitais, por exemplo), ou não considerar a possibilidade de desinvestimento. Não quero defender que ricos não devam pagar impostos enquanto pobres arcam com tudo. Mas também não podemos ser Polianas e achar que as coisas vão reagir conforme gostaríamos que reagissem.