Paganus
Come to van, I have candy
Acordei, de uma sentada, um tanto quanto ansiosa mas ainda meio sonolenta. Estiquei o braço por cima do corpo dele, para desligar o despertador. Não adiantava, ele nunca acordava na hora. Saí da cama, nem me preocupei em arrumar nada, depois que ele acordasse seria mais fácil limpar o quarto. E precisava limpar tudo, deixar tudo bem arrumado porque precisamos sair antes das dez para haver alguma possibilidade segura de pegar a estrada antes que aquela viagem ficasse impossível. Já havia acontecido antes...
Esperara meses por aquele dia, mas eu era a principal responsável pelos atrasos, pelos adiamentos. Não conseguia me desapegar do trabalho, das responsabilidades e cuidados de casa, seguia vivendo como se nada houvesse mudado, como se a desagregação que me rodeava fosse mais um problema de gestão, mais um elemento a organizar, a direcionar, algo observável por um gráfico de planilha. Não, sabia que era outra coisa, outra coisa, completamente diferente. Dessa vez. Não tinha como saber resolver, porque os grandes problemas eu havia deixado no altar, na casa da mamãe, nos pátios da faculdade, até mesmo... como ele bem sabia, até no pátio do clube, nos degraus da escola distante, distando duas décadas. As grandes resoluções, já naquela época (e ele sabia), haviam sido tomadas e toda a minha vida, agora isso parecia claro, toda a minha vida se desenrolava seguindo os fios tecidos pelo planejamento lento, metódico e abrangente de épocas infantis. Sempre soube o que queria e não havia dúvidas em minha mente, mesmo agora.
Não entendia o que aquelas conversas significavam. Ele me perguntava como estava, eu dizia que estava casada há cinco anos, mas não especificava. Anos tristes, anos felizes, anos tediosos? Sabia que ele queria saber, mas não me dava oportunidade de contar, quase como se não quisesse saber, como se pudesse pescar a verdade no ar e usá-la conforme sua conveniência. Isso era típico dele. Na escola eu precisava me esfolar de estudar para conquistar as mais altas notas, enquanto ele se safava sem praticamente pegar um livro para estudar, um manual, um tempo para fazer exercícios. Desprezava, com a sua vida e atitude, toda a minha organização, minha disciplina de ferro, minha dedicação, ele praticamente ria de mim, ria do sistema educacional ao rir de mim, com suas brincadeiras infantis, sua alegria imatura, e pelas formas elaboradas com que caía nas armadilhas da indústria para fazê-lo perder dinheiro e principalmente tempo. E como fazia isso? Simplesmente prestando atenção às aulas algumas vezes, fazendo perguntas impertinentes que deixavam os professores irritados, indo mal nas provas de matemática e conquistando a nota máxima em uma atividade de dissertação, porque... Deus. Era tão bom com as palavras, elas possuíam tanto mel, tanta graça. Mesmo eu, mesmo a mim... ele me desconcertava, às vezes.
Mas isso foi em outra época, em outra vida.
Despi-me apressadamente, com a leveza e a estupidez que só eu podia ter, me enrolei no roupão pendurado na porta interior do armário e rumei para o banheiro do corredor, o mais longe possível do meu querido esposo. Era um acordo tácito entre nós, não verbalizado. O que era íntimo demais para ser compartilhado por quem não fosse um casal vivendo a lua de mel estávamos vetando. Ou era eu que não suportaria me ver nua e me banhar em um banheiro que não nos era mais, como direi?, unicamente nosso? Não importa. Rumei para lá, tirei o roupão, pendurei-o no gancho impessoal, e entrei no box, igualmente impessoal, e o enchi com a minha pessoa, temerosa, encolhida. Sempre me encolhia ali porque o chuveiro, ao ser ligado, caía com uma água gelada que me arrepiava toda. Não era desagradável, mas não estava para aquilo naquela manhã fria. Entrei, me encolhi e tomei o banho, pensando em como o espaço da casa havia se encolhido. Era um apartamento de tamanho médio, talvez com uns cem metros quadrados, ou pouco menos, com espaços amplos, arejados e decorados com gosto e sobriedade, como eu gostava, por uma das amigas dele, como ele gostava. Havia espaço, havia paz, e muito conforto, com móveis amplos, elegantes e tudo no seu lugar, perfeito para recém-casados. Éramos recém-casados há 5 anos.
Agora, porém, agora sabia que o apartamento não era exclusivo do casal. Além das visitas que recebíamos com o meu consentimento, houveram outras, não muitas, mas houveram, sem meu consentimento, e não iam para lá fazer coisas que se esperava de visitas. Tinha nojo de saber que meu lar havia sido conspurcado assim, tivera gana até de dar o troco, como se diz, mas isso era tão contrário à minha natureza... Como sempre, procurei entender. Joguei verdades duras na sua cara, o ofendi, e ultrajei a imagem que ele tinha de si mesmo, mas nem enquanto o via decepcionado, desolado e mesmo irado, nem assim satisfiz minha sede de vingança. Não me satisfazia com sangue. Sempre preferi apaziguar minha raiva ajudando os outros, oferecendo palavras de consolo, tomando para mim as dores, tentando disciplinar e orientar, mas a verdade é que nunca soube fazer isso bem quando se tratava de mim mesma. Minha mãe assumia esse papel, com dureza e firmeza, mas não sem misericórdia e tato.
Falo de lar, agora, ensaboando os braços morenos, pequenos como toda a minha estatura, mas fortes. Falo de lar, mas nunca vi mesmo aquele lugar como lar, preferia minha mesa, na minha sala conquistada com tanto sacrifício, como um lar mais aconchegante. Aquele era o dormitório, era o lugar de diversões loucas, sempre na cama, como era meu gosto, e onde comíamos a comida que porventura pedíssemos e quando estávamos sem saco para sair, para comer fora. Mas nenhum de nós passava muito tempo ali. Percebi que a impessoalidade reinava por toda a casa enquanto enxaguava os cabelos ondulados, e que não era apenas o nosso quarto que se afastava do meu ambiente familiar, mas era como se houvesse se espalhado por todo o apartamento aquela atmosfera de separação, de distinção, diferença, como se cada portal entre cômodos fosse um umbral para uma nova dimensão, mais estranha, mais alheia.
Terminei o banho, me meti no roupão e fui para a sala me enxugar. Arranquei a toalha da cabeça e comecei, nunca soube porquê, a enxugar os cabelos, longos, caindo por sobre o roupão, entre minhas pernas, direto para o carpete. Ele ficaria ensopado e daria um trabalhão para limpar. Limpar. Eu não tinha tempo para isso, certamente o mandaria para a lavanderia e ele voltaria um primor, mas ainda assim ouviria: era um carpete caro, de um tecido e fábrica únicos, um dos luxos que se permitira. Mas não me importava nem com o sofá, onde sentara sem pudor, ensopada, deixando uma marca razoável, e ali fiquei, me enxugando, passando a toalha por entre as dobras do roupão, e me secando, com ardor e fervor, lembrando das mensagens, do seu tom frio, distante, desapaixonado e ao mesmo tempo, carinhoso, tão típico de pessoas do passado querendo se reaproximar, com suas propostas vazias, algumas indecentes, outras apenas covardes. Só que essas... quase podia lê-las com o som da voz dele, sua voz rouca e nada atraente, mas macia, doce, uma voz que não mentia sobre suas reais intenções, sempre honestas, mas jamais diretas, sempre epigráficas, enigmáticas na expressão e no tom. Quase podia senti-lo ao meu lado, conversando sobre as diferenças culturais entre as classes, o imperialismo norte-americano, as inconsistências da teologia católica, e tantas outras coisas que eu me envergonhava de admitir para ele que entendia pouco, mas era sempre na mais absoluta igualdade e máximo interesse que discutíamos. Aquilo era se sentir viva. Ouvida. Ser tema de uma atenção desinteressada, passional e puramente intelectual. E, mesmo sem poder confessar isso, se sentir... amada?
Levantei-me do móvel marcado, e voltei para o quarto, com as portas escancaradas do armário a me sugerir quais roupas usar. Um terninho preto, aquela meia-calça, o sapato de salto, e ainda precisava passar meus cremes, fazer a make. Sempre baixa, discreta, mas deslumbrante na minha sobriedade, como o belo adormecido me fazia questão de lembrar, como se ostentasse minha afeição grata como um troféu para seus amigos poderosos. As visitas, porém, só iniciaram no último ano. Certamente não era isso, mas os homens tinham maneiras insólitas e simplórias de resolver seus problemas. Não sei quando as coisas começaram a dar errado. Tentava puxar pela memória, mas todos os nossos problemas de casamento, nos primeiros meses, pareciam tão indissociáveis dos problemas típicos de todo casamento que conhecia que acreditava que aquele stress constante era felicidade. O casamento certamente me enchia de orgulho, ainda que tudo nele, da celebração na igreja à festa de dois dias, parecesse mais uma impostura da nova vida quebrando os limites conhecidos da minha vida antiga, que agora entendia porque amava tanto o trabalho. Era uma das poucas coisas estáveis da minha vida, uma das poucas coisas que não mudaram com o casamento, que não sofreram uma brusca solução de continuidade, tanto que até meus amigos do escritório permaneciam os mesmos ao passo que todo o resto que me formara o núcleo da minha personalidade, foi se desagregando, desaparecendo, se soltando... seria isso?
Talvez fosse uma questão de tempo até o grande homem se descolar de mim, primeiro com o desejo, depois com corpo, agora como entidade que precisava se integrar ao meu mundo com uma solução burguesa e condenada ao fracasso desde sua concepção: uma viagem. Nela tudo seria perdoado, ou ao menos seria conversado, teríamos tempo de sobra um para o outro, poderíamos ter muitas discussões, até brigas, mas em um ambiente idílico, pensei enquanto fazia minhas malas, seria tudo diferente depois, poderiam reconstruir a vida, recomeçar, talvez até mudar de apartamento, ou mesmo de empregos. Eu estava tão cansada, tão exausta daquele grande cargo que não ia para lugar nenhum, que não me dava autonomia alguma e onde me tolhiam todas as ideias de grandes projetos... Assim, nasceu o projeto. O projeto que impediria que eu me desagregasse de mim mesma.
Ele me mandou outra mensagem, a sétima ou oitava que visualizei e não respondi. Não responderei. Não agora. Quero ver, quero saber até onde ele vai, quanto ele pode aguentar, quero saber o que ele quer, como ele quer. Aí posso tomar uma decisão. Não sou uma mulher de decisões drásticas, muito menos de decisões rápidas, então só tomarei essa decisão depois que ele me der muitas certezas, garantias e provas de que não estou lidando com uma ilusão. De qualquer forma, ele esperará pelo menos dois meses dessa viagem para que lhe dê qualquer sinal de vida, mesmo que me mande mil mensagens. Como amarrar duas pontas soltas há tanto tempo? Como restaurar uma história interrompida há tanto tempo, aliás, nem interrompida, sequer começada? Tudo que me restava dela eram memórias desconexas que às vezes vinham sabe Deus de onde, e azedavam minha fruição dos bens que adquiri, especialmente os bens emocionais. Era quase como se tivesse deixado algo inacabado lá atrás no passado, mas nada concreto, nada real, nada além de um sentimento, amorfo, disforme até, e detestava sequer pensar que meu coração pudesse sentir algo tão irracional e incognoscível assim. Como se guardasse uma estrela dentro do peito, e as estrelas... bom, elas nascem do caos. E nascem explodindo.
Por isso, essa decisão vou postergar. Porque agora já tomei outra decisão, sobre outro assunto, e seguirei com ela até o fim, doa a quem doer. Ele não vai comigo, o belo adormecido: que durma mais, sozinho, com quem quiser, como quiser, ou me procure ou me esqueça. Mas ele não irá comigo, não é dele que eu preciso, nem de cenas idílicas, nem de romantismo, ou nenhumas dessa bobagens que me fazem perder tempo. Que adormeça. Que o outro espere. Sou uma rainha, terei tudo o que eu quero, tudo o que eu mereço. Não posso me perder de mim.
Esperara meses por aquele dia, mas eu era a principal responsável pelos atrasos, pelos adiamentos. Não conseguia me desapegar do trabalho, das responsabilidades e cuidados de casa, seguia vivendo como se nada houvesse mudado, como se a desagregação que me rodeava fosse mais um problema de gestão, mais um elemento a organizar, a direcionar, algo observável por um gráfico de planilha. Não, sabia que era outra coisa, outra coisa, completamente diferente. Dessa vez. Não tinha como saber resolver, porque os grandes problemas eu havia deixado no altar, na casa da mamãe, nos pátios da faculdade, até mesmo... como ele bem sabia, até no pátio do clube, nos degraus da escola distante, distando duas décadas. As grandes resoluções, já naquela época (e ele sabia), haviam sido tomadas e toda a minha vida, agora isso parecia claro, toda a minha vida se desenrolava seguindo os fios tecidos pelo planejamento lento, metódico e abrangente de épocas infantis. Sempre soube o que queria e não havia dúvidas em minha mente, mesmo agora.
Não entendia o que aquelas conversas significavam. Ele me perguntava como estava, eu dizia que estava casada há cinco anos, mas não especificava. Anos tristes, anos felizes, anos tediosos? Sabia que ele queria saber, mas não me dava oportunidade de contar, quase como se não quisesse saber, como se pudesse pescar a verdade no ar e usá-la conforme sua conveniência. Isso era típico dele. Na escola eu precisava me esfolar de estudar para conquistar as mais altas notas, enquanto ele se safava sem praticamente pegar um livro para estudar, um manual, um tempo para fazer exercícios. Desprezava, com a sua vida e atitude, toda a minha organização, minha disciplina de ferro, minha dedicação, ele praticamente ria de mim, ria do sistema educacional ao rir de mim, com suas brincadeiras infantis, sua alegria imatura, e pelas formas elaboradas com que caía nas armadilhas da indústria para fazê-lo perder dinheiro e principalmente tempo. E como fazia isso? Simplesmente prestando atenção às aulas algumas vezes, fazendo perguntas impertinentes que deixavam os professores irritados, indo mal nas provas de matemática e conquistando a nota máxima em uma atividade de dissertação, porque... Deus. Era tão bom com as palavras, elas possuíam tanto mel, tanta graça. Mesmo eu, mesmo a mim... ele me desconcertava, às vezes.
Mas isso foi em outra época, em outra vida.
Despi-me apressadamente, com a leveza e a estupidez que só eu podia ter, me enrolei no roupão pendurado na porta interior do armário e rumei para o banheiro do corredor, o mais longe possível do meu querido esposo. Era um acordo tácito entre nós, não verbalizado. O que era íntimo demais para ser compartilhado por quem não fosse um casal vivendo a lua de mel estávamos vetando. Ou era eu que não suportaria me ver nua e me banhar em um banheiro que não nos era mais, como direi?, unicamente nosso? Não importa. Rumei para lá, tirei o roupão, pendurei-o no gancho impessoal, e entrei no box, igualmente impessoal, e o enchi com a minha pessoa, temerosa, encolhida. Sempre me encolhia ali porque o chuveiro, ao ser ligado, caía com uma água gelada que me arrepiava toda. Não era desagradável, mas não estava para aquilo naquela manhã fria. Entrei, me encolhi e tomei o banho, pensando em como o espaço da casa havia se encolhido. Era um apartamento de tamanho médio, talvez com uns cem metros quadrados, ou pouco menos, com espaços amplos, arejados e decorados com gosto e sobriedade, como eu gostava, por uma das amigas dele, como ele gostava. Havia espaço, havia paz, e muito conforto, com móveis amplos, elegantes e tudo no seu lugar, perfeito para recém-casados. Éramos recém-casados há 5 anos.
Agora, porém, agora sabia que o apartamento não era exclusivo do casal. Além das visitas que recebíamos com o meu consentimento, houveram outras, não muitas, mas houveram, sem meu consentimento, e não iam para lá fazer coisas que se esperava de visitas. Tinha nojo de saber que meu lar havia sido conspurcado assim, tivera gana até de dar o troco, como se diz, mas isso era tão contrário à minha natureza... Como sempre, procurei entender. Joguei verdades duras na sua cara, o ofendi, e ultrajei a imagem que ele tinha de si mesmo, mas nem enquanto o via decepcionado, desolado e mesmo irado, nem assim satisfiz minha sede de vingança. Não me satisfazia com sangue. Sempre preferi apaziguar minha raiva ajudando os outros, oferecendo palavras de consolo, tomando para mim as dores, tentando disciplinar e orientar, mas a verdade é que nunca soube fazer isso bem quando se tratava de mim mesma. Minha mãe assumia esse papel, com dureza e firmeza, mas não sem misericórdia e tato.
Falo de lar, agora, ensaboando os braços morenos, pequenos como toda a minha estatura, mas fortes. Falo de lar, mas nunca vi mesmo aquele lugar como lar, preferia minha mesa, na minha sala conquistada com tanto sacrifício, como um lar mais aconchegante. Aquele era o dormitório, era o lugar de diversões loucas, sempre na cama, como era meu gosto, e onde comíamos a comida que porventura pedíssemos e quando estávamos sem saco para sair, para comer fora. Mas nenhum de nós passava muito tempo ali. Percebi que a impessoalidade reinava por toda a casa enquanto enxaguava os cabelos ondulados, e que não era apenas o nosso quarto que se afastava do meu ambiente familiar, mas era como se houvesse se espalhado por todo o apartamento aquela atmosfera de separação, de distinção, diferença, como se cada portal entre cômodos fosse um umbral para uma nova dimensão, mais estranha, mais alheia.
Terminei o banho, me meti no roupão e fui para a sala me enxugar. Arranquei a toalha da cabeça e comecei, nunca soube porquê, a enxugar os cabelos, longos, caindo por sobre o roupão, entre minhas pernas, direto para o carpete. Ele ficaria ensopado e daria um trabalhão para limpar. Limpar. Eu não tinha tempo para isso, certamente o mandaria para a lavanderia e ele voltaria um primor, mas ainda assim ouviria: era um carpete caro, de um tecido e fábrica únicos, um dos luxos que se permitira. Mas não me importava nem com o sofá, onde sentara sem pudor, ensopada, deixando uma marca razoável, e ali fiquei, me enxugando, passando a toalha por entre as dobras do roupão, e me secando, com ardor e fervor, lembrando das mensagens, do seu tom frio, distante, desapaixonado e ao mesmo tempo, carinhoso, tão típico de pessoas do passado querendo se reaproximar, com suas propostas vazias, algumas indecentes, outras apenas covardes. Só que essas... quase podia lê-las com o som da voz dele, sua voz rouca e nada atraente, mas macia, doce, uma voz que não mentia sobre suas reais intenções, sempre honestas, mas jamais diretas, sempre epigráficas, enigmáticas na expressão e no tom. Quase podia senti-lo ao meu lado, conversando sobre as diferenças culturais entre as classes, o imperialismo norte-americano, as inconsistências da teologia católica, e tantas outras coisas que eu me envergonhava de admitir para ele que entendia pouco, mas era sempre na mais absoluta igualdade e máximo interesse que discutíamos. Aquilo era se sentir viva. Ouvida. Ser tema de uma atenção desinteressada, passional e puramente intelectual. E, mesmo sem poder confessar isso, se sentir... amada?
Levantei-me do móvel marcado, e voltei para o quarto, com as portas escancaradas do armário a me sugerir quais roupas usar. Um terninho preto, aquela meia-calça, o sapato de salto, e ainda precisava passar meus cremes, fazer a make. Sempre baixa, discreta, mas deslumbrante na minha sobriedade, como o belo adormecido me fazia questão de lembrar, como se ostentasse minha afeição grata como um troféu para seus amigos poderosos. As visitas, porém, só iniciaram no último ano. Certamente não era isso, mas os homens tinham maneiras insólitas e simplórias de resolver seus problemas. Não sei quando as coisas começaram a dar errado. Tentava puxar pela memória, mas todos os nossos problemas de casamento, nos primeiros meses, pareciam tão indissociáveis dos problemas típicos de todo casamento que conhecia que acreditava que aquele stress constante era felicidade. O casamento certamente me enchia de orgulho, ainda que tudo nele, da celebração na igreja à festa de dois dias, parecesse mais uma impostura da nova vida quebrando os limites conhecidos da minha vida antiga, que agora entendia porque amava tanto o trabalho. Era uma das poucas coisas estáveis da minha vida, uma das poucas coisas que não mudaram com o casamento, que não sofreram uma brusca solução de continuidade, tanto que até meus amigos do escritório permaneciam os mesmos ao passo que todo o resto que me formara o núcleo da minha personalidade, foi se desagregando, desaparecendo, se soltando... seria isso?
Talvez fosse uma questão de tempo até o grande homem se descolar de mim, primeiro com o desejo, depois com corpo, agora como entidade que precisava se integrar ao meu mundo com uma solução burguesa e condenada ao fracasso desde sua concepção: uma viagem. Nela tudo seria perdoado, ou ao menos seria conversado, teríamos tempo de sobra um para o outro, poderíamos ter muitas discussões, até brigas, mas em um ambiente idílico, pensei enquanto fazia minhas malas, seria tudo diferente depois, poderiam reconstruir a vida, recomeçar, talvez até mudar de apartamento, ou mesmo de empregos. Eu estava tão cansada, tão exausta daquele grande cargo que não ia para lugar nenhum, que não me dava autonomia alguma e onde me tolhiam todas as ideias de grandes projetos... Assim, nasceu o projeto. O projeto que impediria que eu me desagregasse de mim mesma.
Ele me mandou outra mensagem, a sétima ou oitava que visualizei e não respondi. Não responderei. Não agora. Quero ver, quero saber até onde ele vai, quanto ele pode aguentar, quero saber o que ele quer, como ele quer. Aí posso tomar uma decisão. Não sou uma mulher de decisões drásticas, muito menos de decisões rápidas, então só tomarei essa decisão depois que ele me der muitas certezas, garantias e provas de que não estou lidando com uma ilusão. De qualquer forma, ele esperará pelo menos dois meses dessa viagem para que lhe dê qualquer sinal de vida, mesmo que me mande mil mensagens. Como amarrar duas pontas soltas há tanto tempo? Como restaurar uma história interrompida há tanto tempo, aliás, nem interrompida, sequer começada? Tudo que me restava dela eram memórias desconexas que às vezes vinham sabe Deus de onde, e azedavam minha fruição dos bens que adquiri, especialmente os bens emocionais. Era quase como se tivesse deixado algo inacabado lá atrás no passado, mas nada concreto, nada real, nada além de um sentimento, amorfo, disforme até, e detestava sequer pensar que meu coração pudesse sentir algo tão irracional e incognoscível assim. Como se guardasse uma estrela dentro do peito, e as estrelas... bom, elas nascem do caos. E nascem explodindo.
Por isso, essa decisão vou postergar. Porque agora já tomei outra decisão, sobre outro assunto, e seguirei com ela até o fim, doa a quem doer. Ele não vai comigo, o belo adormecido: que durma mais, sozinho, com quem quiser, como quiser, ou me procure ou me esqueça. Mas ele não irá comigo, não é dele que eu preciso, nem de cenas idílicas, nem de romantismo, ou nenhumas dessa bobagens que me fazem perder tempo. Que adormeça. Que o outro espere. Sou uma rainha, terei tudo o que eu quero, tudo o que eu mereço. Não posso me perder de mim.