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O estrado

Haleth

Sweet dreams
Não se ouvia o barulho do relógio, a pilha havia acabado e não havia dinheiro para comprar novas. Era fim de madrugada. De um lado da janela, o sol já começava sua aparição apoteótica, indiferente às dores e insônias dos homens. Do outro, Amália tirava da testa alguns fios de cabelo bagunçados durante sua atividade noturna.

Fazia um frio leve, natural de todo amanhecer. Ela tinha a pele arrepiada, mas não sentia vontade de se agasalhar. A claridade vinda de fora já deixava visíveis os móveis do quarto: a escrivaninha, os criados-mudos, a cama, o estrado do bercinho, a cadeira em que estava sentada. Sem pensar nem sentir nada, Amália pousou a mão sobre o ventre oco.

Olhava o marido deitado na cama. A musculatura de suas costas sempre produzia nela pensamentos não muito católicos. Suspirou, baixando os olhos e apoiando a cabeça no joelho esquerdo. Enquanto uma mão balançava com habilidade o toco de lápis entre os dedos, a outra deixou o ventre para se esconder na nuca. O calor dos cabelos compridos aquecia melhor do que as luvas que já não tinha.

Lamentava ser jovem. Ficou a pensar nisso por um tempo e em seguida escreveu: “é chegada a hora.” Parou. Antes de continuar, olhou uma última vez para o marido, para ter certeza de que não se arrependeria do que escreveria a seguir. Não saberia dizer por quanto tempo ficou assim. Fato é que um movimento brusco interrompeu sua meditação: retomou a escrita vorazmente, vestiu o casaco e pôs-se porta a fora, sem olhar pra trás.

A afobação de sua saída fez Edson levantar-se da cama, mas não a tempo de alcançá-la ainda em casa, e de propósito. Ele estivera acordado o tempo todo, atento a cada som que ela produzia durante sua noite em claro. Ainda assim ficou surpreso ao encontrar o berço desmontado. Como ela conseguiu fazer aquilo no escuro e tão silenciosamente?

Abriu a janela e foi olhar de perto o estrado. Havia marcas na madeira. Por um lado, ficou aliviado por ela ter feito tudo aquilo à noite, assim poupou os olhos do que saturava o coração. Mas também se sentiu cruel por ter se omitido tão vergonhosamente em um momento tão delicado para a esposa, mas ele tinha justificativas plausíveis. Aliás, viviam uma situação em que ninguém poderia reclamar inocência nem apontar o erro do outro. Por isso é que há pouco mais de uma semana não trocavam uma palavra. Dor por dor, cada um carregava a sua até o momento em que um dos dois tombasse ante o peso insuportável da parcela de culpa que lhe cabia.

Mal terminara o raciocínio, Edson sentiu um terror tomar conta de si. Afinal, aonde ela foi? Pulou por cima da cama, abriu o armário e enfiou o primeiro par de roupas que encontrou, nem conseguia acertar o fecho da camisa. Calçou os sapatos sem meia mesmo, e já ia trancando a porta quando lembrou que havia deixado os documentos em cima da escrivaninha, e no contexto político que viviam, sair sem identificação era a desculpa que o governo precisava para fazer o que bem quisesse com quem quer que fosse. Amália, meu Deus, ela levou os documentos? Saiu tão apressada... Nem quis pensar. Entrou o mais rápido que pôde e foi para o quarto.

Bem ao lado de sua carteira, havia uma nota fiscal de supermercado, datada de quatro dias atrás. Em cima da nota, estava a aliança de Amália. Dessa vez ele quis, mas não conseguia pensar. Era típico dela deixar mensagens cifradas espalhadas pelo caminho, mas dessa vez, parecia bem explícito. Não sabia o que fazer. Calma, calma, pensa. Respira e pensa.

Sentou-se na cadeira para tentar domar o caos repentino que o engolia. Observou a escrivaninha. Havia lá sua carteira, a nota fiscal, a aliança de Amália, o relógio parado, migalhas de pão e... o toco de lápis.

Com o coração aos pulos, pôs a aliança no bolso e pegou a nota fiscal, virando-a do outro lado. Viu que a letra de Amália estava pequena, tombada de lado e apressada. O grafite partido fez com que as palavras fossem escritas com linha dupla. Não havia rasuras. Olhou para o chão e viu papéis amassados, mas cumpriu a promessa de nunca desdobrar os rascunhos dela. Fosse o que fosse aquele escrito, era definitivo. Controlando a respiração, leu em silêncio o verso de um papel que um dia atrás era tão insignificante.


[align=center]É chegada a hora.
É preciso que sejamos fortes.

Conceda-me Deus a graça, se assim Ele quiser,
De que, ainda que as forças te abandonem,
Sejas tu um homem,
Pois eu sou tua mulher.
[/align]

Nem precisou pensar. Saiu de casa como um gato selvagem, correndo para a praia onde ela lhe havia dito sim.
 
ñ vou falar nada desse texto.

ñ tenho nada pra falar.

e tenho dito.

manu, :upa:
 
Fiquei aqui matutando sobre seu conto. Ela abortou? Ela levou o bebê para seu abandono ou afogamento? Intrigante.

Você é mesmo muito detalhista, Manu. Desta vez a linha dupla do grafite quebrado.

Por alguma razão esse conto me lembrou o primeiro conto seu que li no Meiapalavra: Morte na Sé. Mas são suposições. Casal pobre e possíveis problemas com recém-nascidos. Mas o outro teve todo um crime e uma reflexão religiosa, um retrato da miséria. Nesse as duas personagens são fortes, não só o Afrânio.

O que é mais angustiante do que fingir que se dorme quando a vontade é pular da cama e parar de ser platéia? (ok, muitas coisas são angustiantes, mas seu conto me angustiou, no bom sentido)
 
Nossa, Rodovalho, ganhei o dia ao saber que o texto te intrigou. Juro. =)

Não tinha feito essa associação entre o Morte na Sé e O Estrado. Interessante... Tem coisa que está mais dentro da gente do que a gente imagina. Mas o casal da Sé provoca em mim sentimentos diferentes do Edson e da Amália. O Afrânio me esfrangalha, porque ele é um miserável em desespero, que encontra uma redenção inesperada, rapidamente é privado dela e fim. O Edson e a Amália estão bem mal, mas há algo dentro deles que é diferente. Eles me inspiram esperança, uma esperança triste e cansada, mas ainda assim esperança. Talvez esse conto não mostre isso muito claramente porque a história toda ainda não está pronta, preciso amadurecer o enredo antes de continuar. Evitar clichês, "chicklitice" e dar profundidade a personagens dá mais trabalho do que eu pensava, mas a gnt tenta. Se depender só de vontade, acho que esses dois ainda vão render mais alguns contos um dia.

Obrigada pelo comentário. Vc nem faz ideia de como essas coisas me incentivam. ;)
 
Muito legal, Manu! Muito mesmo!

Gostei da sua escrita, desses detalhes de linha dupla, ventre oco etc.

Vou te ler mais.
 

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