Eu não consigo ver a literatura como a melhor mídia pra falar do agora. Pro meu gosto, ela se sai melhor quando fala do passado, ou quando imagina. Ou quando fala de um agora que só viria a ser entendido algum tempo no futuro (ahm?), não das questões imediatas (essas precisam de tempo pra digestão). Possivelmente, qualquer um pode apontar dez livros que desmentem essas opiniões, livros que são necessários imediatamente, mas é mais ou menos como eu enxergo a questão.
E existe diferença entre poesia e prosa, nesse aspecto também. A poesia tem um parentesco com a música e com a pintura (ou fotografia), que normalmente não aparece na prosa. Não lembro o que eu pretendia dizer depois (escrever durante o trabalho dá nisso), mas, de qualquer jeito, ler a literatura feita hoje só garante conhecer a literatura feita hoje, não o "hoje" propriamente dito.
O Sebald dizia que "writing is a slow and painful business", que é "or should be, an attempt to saving souls (e, antes que o Paganus bata na mesa, levante e grite "ô, glória!", acrescenta: "in a completely non-religious way, needless to say"). Eu acho que ele faz um uso muito próprio e correto da palavra "soul", que dá a entender que o efeito da literatura não é tópico, mas lento e profundo, que ela atua nos nossos "inner workings" inclusive bem abaixo do consciente, e eu amo muito tudo isso.
Entendi onde você quis chegar. Acho que é o mesmo ponto de partida do post do Morfindel. A base da obra literária é a imaginação, então é normal que um tempo que não seja o agora ela dê a impressão de se sair melhor -- pois, querendo ou não, o agora tem sempre a nitidez do agora. Mas mesmo a obra que fala do hoje, que traz à tona, por exemplo, personagens que são o próprio autor andando pelas ruas; mesmo esse tipo de obra também possui sua ordenação imaginária. E talvez por isso mesmo ela seja sempre mais incômoda.
Porque, mesmo sem apresentar um argumento contrário, você há de convir que é uma verdadeira sinuca de bico isso que o Bruce disse:
"essa questão entre o encaixe e a apreciação da obra em seu momento original e o distanciamento como ferramenta de reavaliação." O problema é que a obra contemporânea não pode depender desse distanciamento; literatura contemporânea é sinônimo de estourar a boiada. Então o problema de distanciar é que vamos estar falando de pães amanhecidos. Como o Bruce também disse, confiar na posteridade é perigoso. Os homens de amanhã vão estar preocupados com a boiada de amanhã. Como sujeitos históricos, temos que unir tanto o distanciamento, que é fundamental pra que uma avaliação, um certo encaixe daquela situação num panorama geral seja feito, como também temos de unir uma vivência, o calor do momento. Na maior parte dos casos isso não dá bons resultados, como as várias opiniões, por exemplo, que a Revolução Francesa gerou. Mas é uma via necessária, pois, por mais que no futuro isso que tenhamos traçado esteja errado, uma coisa no mínimo será inegável e indelével: a tentativa a mais ampla possível de entender o que vivemos, e a vivacidade de podermos dizer que vivemos.
O que eu vejo é que, para todos os efeitos, a literatura não encara o agora num sentido direto, mas é sempre pelos olhos de Maisie. É sempre pelos olhos do leitor, é sempre lhe permitindo um novo modo de ver o mundo. E é nesse sentido que acho que ela é uma ótima mídia pra se falar do agora. Mesmo porque, de resto, como já atestam textos hermenêuticos, é muito complicado nós falarmos da realidade e do sujeito sem que exista uma mediação, sem que exista o processo da interpretação entre eles. A realidade objetiva é interpretada; a literatura ajuda muito nesse sentido, especialmente pelo fato de seu fundamento ser a imaginação, o que pressupõe, para os dois lados, uma forma de criação. Um despojamento, uma humildade de reconhecer essa via de estar-aí no mundo.
Então a ideia seria como se a obra literária fosse uma espécie de película que nós colocamos em nossos olhos e que nos ajuda a perceber o mundo. E aí eu discordo de você nisso de que a literatura feita hoje nos permite conhecer apenas o hoje. Pois a literatura feita hoje é, nesse sentido mais amplo, uma forma também mais ampla de se entender o hoje. Pesquisar esses rastros, como a tendência contemporânea de muitos poetas hoje em dia de retrabalharem o cotidiano, é pesquisar e entender novamente, ou simplesmente entender, a própria realidade que nos cerca. Porque a questão que eu lanço, e aqui já abarco também a fala do Morfindel, é: será que apenas viajando ao local, conhecendo o local, podemos, de fato,
conhecer o local? Acho que, muitas vezes, nós temos a ilusão de que a vivência é a forma mais completa e fechada em si mesma de interpretação ou de conhecimento. Mas às vezes viajar na maionese pode ser bem benéfico. E isso, é claro, incorrendo num termo bem errado, pois comparar literatura a viajar na maionese é uma heresia. (A ideia foi mais a de que, com a literatura, temos a possibilidade de conhecer o outro etc e tal.) E, também é claro, no fato de que restaria entender o que é essa "vivência". É um termo muito amplo... Envolve outra coisa muito ampla: a vida.
Essa frase que você colocou do Sebald é também muito interessante. Não conheço quase nada dos processos psicanalíticos e das explicações mais contemporâneas que eles dão entre as camadas de consciência do ser humano, e até mesmo concordo que a literatura trabalha pesadamente no "inner working". É como os bolinhos de Proust; é como se fosse um estoque de vidas anteriores que, creio, vai de encontro à transconsciência e des-individualização que o Paganus se referiu.
Mas ao mesmo tempo não sei se é possível que algo trabalhe apenas no nosso inconsciente. Acho que os materiais culturais atuam em todas as camadas, de modo que também atuam em nossa consciência. Nos dois ao mesmo tempo, no ser humano completo. Seja no
conhecimento imediato que temos uns dos outros, seja na compreensão ou no vir-a-tona de um inconsciente coletivo.