Capítulo 11: Pessoas selvagens
Circa iria para Temarlo com seus sete colegas e Obi, escoltando-os até o porto e até sua primeira moradia temporária. Mapa, pertences e alguns mantimentos, ajuda no translado e toda a assistência possível. Explendor não tinha tanta sorte, e fez a viagem sozinha, um mês antes. Pegou carona num barco pequeno que passava por Gártore para fins comerciais. A viagem foi desconfortável, o barco era pequeno e sacolejava por demais nas ondas do mar, na companhia de marinheiros gordos e de longas barbas sujas. Definitivamente aquela pequena ruiva de apenas dezoito anos não pertencia àquele meio.
Quando chegou no porto de Temarlo, algumas poucas moedas no bolso (gastara todo o resto na passagem), três mudas de roupa, suas armas penduradas na cintura, Explendor teve mais medo que quando, cinco anos atrás, percebeu-se fora da cidade pela primeira vez. Todas aquelas pessoas eram muito mais intimidadoras que qualquer animal, que só ataca por fome ou segurança própria. A noite escura e a chuva forte não amenizavam o cenário. Tinha muita fome. Não tinha a menor noção de onde deveria ir e onde procurar passar a noite.
Decidiu tentar fingir que sabia o que estava fazendo, diziam que não era boa ideia mostrar que era estrangeiro. Cobriu os cabelos ruivos com um capuz e pôs-se a seguir um pescador que viera no mesmo barco que ela, mas desistiu assim que ele entrou em um bordel de muito mal gosto. A arquitetura de pedra era parecida com Gártore, mas as ruas eram muito mais populosas, e as pessoas passavam correndo, com um olhar desconfiado a analisar uns aos outros, o que a deixava muito desconfortável.
Chegou a uma espécie de taverna ou bar e decidiu avaliar o local. Estava muito cheio para seu gosto mas ela precisava de algo para comer. Por sorte, achou uma mesa vaga, afastada. Sentia que estava sendo vigiada por todo mundo. Sentia que já haviam descoberto que ela não pertencia àquele lugar e estava com medo. Pediu algo para comer embora achasse tudo muito caro. Ficou sentada por algumas horas acuada, e percebeu que estava exatamente como Circa, no dia em que a encontrara pela primeira vez. Ah, como queria que ela estivesse ali, estava tão cansada de viver sozinha o tempo todo... Solitária no meio de tanta gente. Começou a observar os outros clientes, talvez não fossem tão maus assim.
Fixou o olhar em um rapaz encostado em uma parede, do outro lado da rua, abaixo da luz de um lampião, com um pé no chão e outro na parede. Aparentava ter uns 5 ou 8 anos a mais do que ela. Deveria ir lá tentar falar com ele? Buscar algumas informações? Talvez, se explicasse a situação, ele até o ajudaria, não poderiam ser todos maus... Ela definitivamente precisaria de amizades nesse novo mundo. O sujeito não parecia nada mal, nem diferente dela mesma. Era magro, com rosto fino e aparência descansada. Não tinha barba. Segurava uma faca na mão direita, a qual usava para partir uma fruta roxa que vinha comendo, que ela não conhecia. Alternava o olhar somente entre a fruta e o céu, até que seu olhar cruzou com o de Explendor.
A princípio, ela desviou o olhar, por reflexo ou por medo. Não resistiu e olhou outra vez. Percebeu que ele continuava a encará-la, com uma expressão que Explendor não conseguia decifrar. O rapaz terminara a fruta e mastigava lentamente o último pedaço. Explendor tentou desviar o olhar uma, duas vezes, na esperança que ele também o fizesse, mas ele persistia. Com o bar e a rua movimentados, várias pessoas cruzavam a linha entre os dois, e ele persistia em fitá-la. Estavam relativamente distantes, mas a garota notou que ele estava com um quase imperceptível sorriso nos lábios, como se a desafiasse para olhar para ele também. Explendor não fugiu do desafio.
Como outros, um homem careca que andava pela rua para o sul cruzou a linha entre os dois naquele momento, caminhando próximo ao rapaz. Mas quando a linha foi desobstruída de novo, Explendor viu que o rapaz não estava mais olhando para ela. Em vez disso, ele estava enterrando sua faca na nuca do transeunte, tão facilmente quanto na fruta que comera. Com um forte movimento, forçou a vítima a cair de joelhos, indefesa. Puxou a faca para fora com grande violência e o sangue jorrou para todos os lados, parte dele em seu rosto. Sua mão esquerda apanhou a mochila da vítima antes mesmo que essa caísse no chão. Ainda uma última vez, tornou a olhar para Explendor, o sorriso nos lábios agora era largo e evidente, antes de colocar-se a correr para o norte, pelo mesmo caminho por onde o falecido havia chegado.
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Capítulo 12: Um dia para conhecer Temarlo
Quanto sangue frio! Explendor não conseguia acreditar no que vira. Grande parte das pessoas ao redor se afastaram, alguns pareceram não se importar, enquanto outros três, como abutres, se jogaram ao corpo deitado na rua a procurar o que pudessem pilhar. O garçom que a atendeu percebeu seu espanto: "Não se preocupe, aqui dentro você está segura. Mas fique de olhos abertos e olhos nas costas assim que pisar ali fora".
O que mais impressionou Explendor não foi o fato em si, mas a reação das pessoas. Um homem brutalmente assassinado pelas costas no meio da rua, mas era como se um simples copo houvesse caído no chão: todos olharam e se afastaram dos cacos, mas logo continuaram seus assuntos, como se aquilo fosse muito comum. Não demorou para que a recém-chegada entendesse o porque. Ainda naquela noite, mais dois episódios parecidos ocorreram. Uma mulher fora morta por uma flecha que veio da escuridão. Algumas horas depois dois jovens magos se enfrentaram, um com magias que pareciam ser elétricas, mas o vencedor foi o que fez uma magia para atear fogo no inimigo.
Ela, Circa e todos os outros tinham sonhado em sair de Gártore por muito tempo, mas talvez tudo teria sido um grande engano. Sentiu saudades de sua pequena ilha, onde tudo era mais simples. Ursos e lobos eram perigosos, mas até mesmo os trolls de lá só atacavam por necessidade, não por uma mochila e algumas moedas. Ela não saberia se defender de homens, ou de flechas que surgem do nada, e imaginou que morrer queimada como a última vítima fosse sofrimento demais. Mas agora ela estava lá, não havia como voltar. Como precisasse arrumar onde passar a noite, pensou em chamar o garçom e pedir informações. Paralisada pelo medo, assim que ele a atendeu, não conseguiu dizer palavra alguma. Sua língua e voz a traíam nos momentos mais inoportunos! Pediu mais uma água para ganhar tempo.
— Água? — Gritou alguém enquanto socava uma grande caneca com cerveja em sua mesa e puxava uma cadeira para se sentar. — Que tal segurar um estandarte dizendo "eu não sou daqui"? Seria mais discreto! — Soltou uma gargalhada enorme enquanto girou a cadeira e se sentou colocando o encosto a frente de sua barriga. — Você se lembra de mim... Estava me vigiando mais cedo, logo antes de eu matar aquele homem. — Disse ele com naturalidade. Seguiu um momento de silêncio. A menina não sabia o que responder, a presença dele a intimidava. Com uma atitude exageradamente descontraída, ele continuou: — Não pense que não vi que estava me olhando só porque está com esse capuz aí! hahaha. Terminou sua cerveja em um longo gole e fez um gesto para o garçom, pedindo outra. Explendor notou que havia um homem atrás dele que vigiava a conversa. Mais uma vez o rapaz falou: — Olha, não quero te assustar, aquele cara me devia umas moedas, não queria pagar e eu o fiz me pagar. Você não me deve nada, deve? — Ela apenas meneou a cabeça negativamente. — Então não tem que ter medo. Eu e meu amigo aqui atrás, nós cuidamos de pessoas como você... que chegam a Temarlo sem conhecer muita coisa. Você tem sorte, está em boas mãos. Como se chama? O tal amigo estava alguns passos atrás dele, escorado em uma parede de pedra, com as mãos segurando a própria mochila vermelha e olhando para o lado oposto.
Ela não podia responder, não podia se mexer e tinha dúvidas se realmente estava respirando. O garçom chegou com a cerveja do rapaz, que pediu outra para Explendor. — Você precisa se soltar um pouco, garota, está muito... — Gesticulava com a mão como se o movimento substituísse a palavra. Conversava o tempo todo com um sorriso no rosto. — Meu nome é Vick. Você veio de Gártore não é? Temarlo recebe pessoas de toda parte, mas quem vem de Gártore geralmente se assusta mais que os outros. Haha, eu sabia! Olha, eu já me apresentei e até lhe paguei uma cerveja, agora você me deve algo. Ou me revela seu nome ou tira o capuz, o que me diz?
Para alguém com tanta dificuldade na fala, aquela era uma escolha fácil, e tirou o capuz, revelando-se. A expressão de Vick mudou por um instante, surpreso com sua beleza diferenciada. A garota possuía uma aparência que flutuava entre uma atraente fragilidade e uma força dormente, esperando para explodir. — Nada de nomes então... - Continuou o estranho. - Mas gostei do seu cabelo!
Inclinou-se para a mesa, saboreando a cerveja, apoiou os braços na mesa e falou, mais baixo, dando a entender que o que falava era algo exclusivo: - Deixe-me lhe contar. Não muito longe daqui possuo um lugar... precisa de um lugar para passar a noite, não? Pois nesse lugar vai encontrar o que queres. É grande, protegido, silencioso e ninguém jamais reclamou!
Era exatamente o que ela queria, mas não com aquele assassino. Mas e se essa fosse a única opção da cidade? E se todos fossem assassinos? O coração de Explendor era tão puro que não conseguia entender com clareza a maldade ou a astúcia, e já começava a cogitar a ideia. Porém, algo nela a impedia, e pensava consigo mesma: "Você viu o que ele fez Explendor, não confie nele." Vick insistiu: — É pequeno mas aconchegante! — Reunindo todas as forças que podia, finalmente Explendor abriu a boca e respondeu, enquanto balançava a cabeça: — N... nnnão, mas... obrigada. — Antes que terminasse a frase o rapaz a interrompeu, inclinando-se para trás, mostrando as palmas das mãos e concordando: Talvez da próxima vez! Foi um prazer ter essa gostosa conversa, nos vemos um outro dia, com certeza. — Deu um largo sorriso e se retirou, com o companheiro atrás dele.
Explendor respirou aliviada como se algo estivesse lhe pressionando o peito este tempo todo. Dormiu ali mesmo, sentada á mesa do bar.