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[L][O Sujo de Sangue][Íntegro]

INTEGRO

Henry era líder de uma comunidade judaica. Já tiozão, uma vez ouviu um sujeito de chapéu e cachinhos dizer para seu filho: “você tinha que ser como o Henry. Esse sim é um exemplo de caráter”.

Ainda jovem, destaque nos grupos de estudo das palavras sagradas, a integridade de Henry era seu orgulho e capricho. Respeitavam-lhe, tinham no em alta conta por seu temperamento controlado e bondoso. As garotas eram atraídas pela castidade que ele sugeria.

Com o tempo, Henry cresceu na comunidade, assumindo liderança e representação. Tornou-se um ícone dos ideais judaicos. E cada vez era mais bom (melhor). Quando fraquejava, ou se sentia inseguro, sua amiga mais íntima lhe jurava:

-Você é bom, Henry. Você é bom.

Era vaidoso.

E o tempo, infalível, passava e passava, e dentro de Henry um câncer lhe consumia as vísceras. Não sabia o que era aquele vazio, aquele tédio que lhe ocorria nas noites de sábado. Sentia os membros paralisados e impotentes. Uma agonia sem nome nem rosto. Fria e desconhecida.

Henry tinha uma paixão secreta: Nelson Rodrigues. Lia e relia todos seus contos, suas peças. Uma vez leu uma entrevista do “tarado” : “cada vez que alguém lê sobre um adultério, um traição deixa de acontecer”.

E Henry lia e relia. Assim, não ia contra ao que esperavam dele. A realidade que ele ignorava diretamente existia trancafiada num quarto dos fundos cheio de poeira do seu cérebro.

Glorinha era moça, 16 anos, um rabinho, e lhe passava os ternos, servia café e gostava de ver o patrão sempre um brinco. Admirava mesmo o homem que era, via-o como um pai e tentava não pensar em Henry de outra forma. Era católica não praticante, e achava lindo toda a cerimônia judaica, o templo, os trajes, as leituras, toda aquela tradição tão austera e sublime.

Entregava-lhe a camisa, o terno, os sapatos lustrosos e escolhia a gravata. Nesta, era onde pegava Henry de jeito: sempre escolhia a exata, a perfeita para o dia e ocasião, como que por mágica ou um tato sensibilíssimo.

Henry era louco por gravatas. Tinha mesmo uma certa mania, superstição ou sei lá. Acordava de manhã, se sentia azul, e escolhia uma marinho. Noutro dia, se sentia emaranhado, e pegava uma xadrez. Nem ele entendia a subjetividade de sua escolha, mas a gravata que vestia dava o ar do seu dia, ditando mesmo o seu humor.

Tinha reparado na moça bonita que o servia com respeito, e no rabo da moça bonita que lhe servia com respeito. Mas quando ela começou a cuidar também de suas roupas, e no primeiro dia que lhe escolheu a gravata, percebeu qualquer coisa de ingênuo, inocente, puro, delicado, seleto... Qualquer coisa de magnífico no olhar baixo da garota.

-Eu gosto desta gravata, senhor Henry.

-Eu também. Eu também.

Pela primeira vez pensou que Glorinha era um nome rodriguiano.

Se a gravata lhe ditava o dia, e a gravata passou a ser escolhida por Glorinha, Glorinha passou a lhe ditar o dia. Num em que reclamou do café, Glorinha escolheu uma de um vinho fúnebre. Seu dia foi detestável. E ele se sujeitava, sem saber porque, a escolha da garota. Dia após dia.

À noite, passou à sonhar com Glorinha. Ela lhe escolhia uma gravata transparente, e ela própria vestia apenas uma gravata vermelha. Agia com naturalidade, como se estivesse vestida, e Henry não sabia se ela estava realmente nua, ou se sua imaginação lhe pregava uma peça.

Passou a ter insônia. A tomar remédio para insônia. Que além de não funcionar, lhe deixava um caco o dia inteiro. Glorinha e as gravatas se tornaram idéia fixa.

A menina percebeu a mudança do patrão. Por mais de uma vez, pegou-lhe olhando para seu traseiro. Flagrado, o homem ficava roxo. E roxa seria a sua gravata do dia.

Um dia Glorinha põe as coisas em panos limpos. Entrega a gravata, Henry elogia a escolha e ela, indo embora, se vira:

- Gostou mesmo da gravata de hoje? ??Era uma gravata vermelha lisa. Como a que Glorinha usara no sonho de Henry.

- Oh, sim, é uma linda gravata, e me parece perfeita para o dia de hoje. Sempre gosto das gravatas que me escolhe. Acho que eu mesmo não poderia escolher melhor.

- E se eu não lhe escolhesse mais a gravata?

- Como assim? Está de brincadeira, é? Eu faço questão.

- Pois então eu quero receber uma recompensa à parte. Eu quero um beijo. Um beijo por cada gravata escolhida.

- Ora, mas que história é essa? Perdeu o juízo? Eu não admito que fale assim comigo, ouviu? Agora xispa, xispa daqui!

Glorinha foi embora. Não voltou mais.

No dia seguinte, Henry também não foi trabalhar. Também não foi capaz de ir a uma entrevista na TV que tinha à tarde. Nem no aniversário de seu sobrinho, no dia seguinte. Na verdade, sem conseguir escolher uma gravata e sem saber quem era, nunca mais saiu de casa. Até o dia em que foi preso, delirante, roubando gravatas nas lojas mais chiques da cidade.
 
Última edição:
Dificil de acreditar na complexidade da história, até chegar nos ultimos parágrafos.

muito bom, muito bom MESMO!!!!!


O título também está perfeito ^^
 
agora eu entendi porque ele roubou aquelas gravatas, tufaz sentido agora.
Muito bom mesmo.
 
Esse texto é realmente muito bom. Me envolveu, e passei um bom tempo refletindo a respeito... É muito bem escrito, de uma maneira clara, embora envolva uma complexidade muito bem desenvolvida. Tive de ler duas vezes para captar a história por completo.
O nome Glorinha, devo confessar-lhe, me recordou de um filme baseado numa peça de Nelson Rodrigues (que tenho muita vontade de conhecer mais aprofundadamente..) que se chama "Bonitinha, mas ordinária". Não sei, foi um lampejo.
Embora eu também goste de escrever, meus textos são muito mais confusos e atolados em descrições muito detalhadas sobre o cenário, tornando a leitura cansativa. Você, ao contrário, mal se utilizou do cenário, contando a história pura (quase destilada). Eu gostei MUITO disso.
Vou procurar outros textos seus aqui no fórum.
 

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