crítica do Kléber Mendonça Filho:
Guia do Mochileiro das Galáxias
SO AWFULLY BRITISH
Por Kleber Mendonça Filho
É uma experiência positivamente estranha assistir a O Guia do Mochileiro das Galáxias (The Hitchhiker´s Guide to the Galaxy, 2005, Ing/EUA), adaptação para o cinema de uma série radiofônica da BBC (1978), por sua vez adaptada do livro best seller de mesmo nome de Douglas Adams, escritor inglês morto prematuramente aos 49 anos, em 2001, e a quem o filme é dedicado. Foi também uma série de TV (também BBC) nos anos 80. Com tom claramente retrô e dotado de uma excentricidade existencial "extremely British", essa obra encontrará uma saudável minoria de fãs que o adotarão com carinho, mas poderá deixar a grande maioria se perguntando "o que diabo é isso??"
Essencialmente uma viagem toda inglesa co-bancada por americanos, O Guia do Mochileiro das Galaxias projeta-se como uma dessas fantasias delirantes que têm como matéria prima o próprio ser humano, as peculiaridades e a mediocridade da vida social, os nossos dramas existenciais. Uma seqüência brilhante do filme com uma enorme baleia cachalote ilustra muito bem isso, exemplificando a quantidade de boas idéias que nos são arremessadas desde a abertura, um extenso número musical com golfinhos.
Fica muito claro que o tom geral de delírio do filme nos remete a toda uma escola inglesa de humor, fantasia e sarcasmo para com a humanidade. O trabalho dos ingleses Monty Python e animações de Terry Gilliam - de A Vida de Bryan e O Sentido da Vida - ou as histórias infantis de Roald Dahl, como A Fantástica Fábrica de Chocolate, tem grandes afinidades com tudo isso aqui, especialmente ao anexar fantasia delirante a um senso de total normalidade cotidiana.
O herói chama-se Arthur Dent (Martin Freeman), um inglês classe média que passa o filme inteiro de pijama. É acordado um dia por tratores que irão demolir sua casa para a construção de um viaduto. Ele é salvo da situação por um amigo, Ford Prefect (Mos Def, de O Lenhador), na verdade um escritor alienígena de guias de viagem (para mochileiros da galáxia) que acredita ser uma toalha de banho a grande arma para todos os males e perigos.
Ford informa a Arthur que, em 12 minutos, o planeta Terra será destruído por uma equipe de demolição espacial que chegou para a construção de uma via expressa intergaláctica, e que ela precisa passar por ali. Essa seqüência, que seria a versão engraçada de Independence Day, ou de filmes como A Guerra dos Mundos, é um primor de realização e efeitos especiais.
Os responsáveis pela demolição da Terra são os Vogons, raça obesa, altamente burocratizada e dotados de uma arma capaz de levar suas vítimas à mais profunda catatonia: eles são poetas, da pior qualidade, e a mediocridade paralisante dos seus escritos só pode ser igualada à feiúra facial deles mesmos. O sarcasmo britânico de Douglas mantém o texto vivo, mostrando que no planeta dos Vogons, cada boa idéia é castigada com um tapa na cara.
As aventuras de Arthur e Ford, no entanto, são pontuadas por boas idéias e a estados alterados de ser e estar (filme nos informa que, no espaço, muita coisa é possível). É o tipo do filme onde, repentinamente, o elenco vira bonequinhos de crochê, ou John Malkovich surge como o meio-líder de uma seita que venera a capacidade de pegar uma boa gripe.
Um dos fatores importantes da narrativa é o coração partido de Arthur, deixado de lado por Trillian (Zooey Deschanel, de Quase Famosos), uma bela americana (concessão da produção para gerar maior interesse no mercado EUA) que preferiu ficar com um completo imbecil chamado Zaphod Beeblebrox (Sam Rockwell), não por acaso o presidente da galáxia.
Tudo isso corre surpreendentemente bem, embora o filme logo mostre que há uma fonte secundária (livro, rádio, TV) que ele tenta honrar a todo custo, nem sempre com sucesso. Depois dos primeiros 45 minutos, há uma queda de ritmo e humor, mas que ganha resgate pelo delírio constante do todo que inclui a capacidade de alguém poder consertar o mundo, pensar um pouco, e dizer "'tá bom do jeito que está".
Sabe-se que esse filme teria sido oferecido a Spike Jonze, diretor de Quero Ser John Malkovich e Adaptação, duas obras que contém o tipo de delírio aqui à mostra. Ele agradeceu o convite, e recomendou o projeto aos amigos Hammer & Tongs (Garth Jennings e Nick Goldsmith), uma dupla britânica de diretores de clipes sem experiência prévia em longas metragens. Fizeram o conhecido clipe de Coffee and TV, da banda Blur, Jennings assinou a direção e Goldsmith a produção desse filme.
PS: Por causa da quantidade de narração em off (originalmente gravado por Stephen Fry), optaram por oferecer a narração via José Wilker, em português, medida que me assustou inicialmente, mas que parece funcionar ao longo do filme. Demais atores, legendados.