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[L][Melkor, o inimigo da luz] [Conrado]

Melkor- o inimigo da luz

Senhor de todas as coisas
[L][Melkor, o inimigo da luz] [Conrado] - Atualizado

Estou de volta =)

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Conrado sempre fora propício a grandes espasmos de reflexão, reflexão esta nunca comedida e sempre mantida com rédeas largas e folgadas, para que no vôo do pensamento a sua porção atemporal superasse o que havia nele de terreno, transcendesse a sua existência recheada da mais pífia pequenez e subisse!, porque era subindo que Conrado sentia-se crescer.

[Que se entenda aqui por pífia a adjetivação da ridícula humanidade presente no protagonista, todas as suas amarguras, invejas, egotismos e sentimentos tais quais muitos; e que fique claro que pequenez é a qualidade mais notória de Conrado e de todos os outros homens e mulheres também e será, durante boa parte da narrativa, a palavra chave de tudo que for dito, ainda que não se faça constantemente notável.]

Comecemos localizando-nos no espaço-e-tempo, o que não passa de uma grande bobagem, dado o fato de que toda a narrativa é uma conjectura acerca de um futuro que não cabe a nós, passageiros do grande navio flutuante que é o início do século XXI e o pertencer à geração pós-guerra fria, prever. Estamos (estaremos, correção, ou melhor, alguns de nós irão estar, o que se sabe é que Conrado está) no fim do Novo Século, o mundo todo transformado pelas maluquices que se inventou por todos os acolás.
Houveram as quatro primeiras revoluções industriais, quando se mudou a produção, a fonte de energia, a integração da população e a dimensão de toda a tecnologia (na passagem para a maquinofatura, no advento do petróleo, na revolução da telecomunicação e na nanotecnologia, respectivamente; ainda que eu queira evitar transformar a narrativa em uma aula de história do ensino médio). Tudo isso o leitor, sendo ele um leitor, já sabe; o que não se sabe é o que se refere à quinta e sexta revoluções.
A quinta revolução industrial não tardou muito, ela veio quando se esgotou o Petróleo e toda a conscientização ambiental - feita durante os saudosos dias do início do século - finalmente vingou, havendo a adoção do uso da energia do Tungstênio, obtido facilmente por um processo que a minha mente (presa às dificuldades intelectuais do meu século), apesar de conseguir vizualizar, não descreve.
Quanto à sexta, a que realmente nos importa, a coisa foi um pouco diferente. Estando as grandes potências petrolíferas falidas, pouco a pouco a conjuntura internacional foi amainando como se amaina o vento, alguma hora. Cessou o comércio de energia e as pressões externas sobre isso ou aquilo, e também cessaram os impasses acerca das bombas atômicas e projetos secretos de armas químicas, vinha galopando a pequenez de tudo aquilo frente à grandeza Wolfrâmica do Tungs! Ah, que bela é a perspectiva do século que vem! Ainda há muito o que se falar, mas confio na paciência alheia.

Voltando para o doce Conrado, saudoso Conrado! Sentado em seu sofá preto de couro, ele vê entrar seu pai amado, o rosto todo marcado pelas decepções e pelas patadas da vida, triste como se depenado, no olhar um brilho alucinado. Seus olhares se cruzam e ambos interrompem suas respirações, como se em entendimento recíproco. Conrado arrisca perguntar o que ele faz, tão cedo, no lar doce lar. Seu pai arqueia a sobrancelha, morde os lábios e se passa aquele segundo que sempre se demora mais que um segundo. E ele lhe diz: Filho, fui despedido.
Como Conrado não dissesse nada, seu pai sobe as escadas, derrotado, e fecha a porta de seu quarto com um gemido surdo. E a palavra retumba dentro dele, como se fosse a primeira vez que a ouvia. Despedido... De repente, ele se sente ofendido, porque se despediram de seu pai com um adeus muito da onça. Porque despedido, para ele, parece pior que demitido; é não se dar ao trabalho de demitir, despede-se!, pensou.
Jogou-se no sofá, abatido, imaginando-se despedido pela vida. Tudo que restava era uma indenização de tamanha pequenez, recomendações no seu curicullum vitae e o desejo de boa sorte em uma próxima experiência. Qual era a experiência após a vida? De quanto seria a sua indenização, proporcional ao tempo de vivido? Conrado não sabia, mas pouco a pouco despediu o seu próprio espírito e, enquanto adormecia, afastava-se dali, resoluto.

Subitamente, arregalou os olhos e perguntou-se: Porque me demitiriam da vida? Porque eu seria despedido?

O mundo está se modernizando, não há espaço para todos, lhe diriam. E há as máquinas, elas podem fazer o que você não faz tão bem assim. Você não tem estudo o suficiente, péssimo. Azar o seu que não tem bons antecedentes, que seu curso de inglês expirou há tanto! Adeus, o seu lugar é de outro.
E, no outro lado do mundo, ou talvez na rua de trás, outra pessoa nasceria e entraria em seu lugar. Por um salário menor? Quais as condições de trabalho? Ela também seria despedida, no final das contas? A morte é uma grande máquina que move o braço de um lado para o outro, acenando para os que partem, porque têm que partir. Ah, se partem! E os raios, que se partam! Conrado só conseguia pensar em seu pai, prostrado, no seu quarto...

A prostração como alegorização da resignação máxima, e...

Conrado levantou-se, esfregou os olhos e correu escada acima para o seu quarto. Trancou a porta, ligou o som, fez um striptease apressado e entrou embaixo do chuveiro, pensando na vida. Pensava na água que descia pelo ralo, pensava na sinopse do dia que estava apenas começando e pensava também na prostração talvez imaginária de seu pai.
Foi à escola, e na escola nada fez senão pensar em si mesmo e perscrutar o seu innerself em busca de um mote a se glosar, algo a se discorrer. Achou-o. Pensou na intemperalidade (a qualidade de ser suscetível a itemperísmos, defino-o) da sua própria vida e em como o fracasso do próximo se torna os seu próprio fracasso após uma curta sucessão de pensamentos.
Siga o raciocínio: seu pai, nascido pobre e dotado de determinação, conquista o mundo para lhe dar (e ao seu irmão!). Esse “seu pai”, que mais parece, para ele, uma extensão de si mesmo, é derrotado no jogo da vida e cai no chão, numa poça de lama. Conrado se sente como se fosse ele próprio ali, mas não porque seja sangue-do-seu-sangue quem sofre, mas porque parece que ele próprio cometeu a falha e... E, ainda falta clareza no raciocínio!
Deixe-me tentar mais uma vez, sim? Conrado associa a desaventura de seu pai consigo mesmo, acreditando que o fracasso dele seja um agravante do seu próprio. “Olha, aquele é o filho do nosso ex-operário. Nós o despedimos, não foi? Acene para ele, que tal?”. Ah, se as coisas fossem como deveriam ser!, ele pensou. Não que houvesse um jeito certo de se ser, mas...
Almoçou na rua e pegou o metrô até o outro lado da cidade, onde teria ensaio de teatro com o seu grupo amador. Encenariam a peça “Pequeno Grande Reino”, peça escrita em meados do século XXI, cujo enredo não foge muito ao que hoje em dia se vê: um rei visionário que planeja a conquista do reino vizinho e de todos os outros, sua rainha feiticeira (que, em algumas críticas de estudiosos renomados, aparece como a própria encarnação do diabo), sua filha (a princesa Custódia, linda ninfa cândida e virtuosa, à lá século passado) e o príncipe, que se vê envolvido na família e suas inúmeras tramas.
Conrado interpretava o príncipe, e estava radiante.

CENA 5

PRINCIPE Não gosto de tua mãe, Custódia.
CUSTÓDIA Sei que não. E confesso: ela te tem ascos!
PRINCIPE Não que eu não lhe tenha afeto, querida, mas veja bem. Já a vi a conversar com a copeira, em sussuros de imensa cumplicidade, e bem sabes que teu avô faleceu há não muito tempo.
CUSTÓDIA Pense muito no que estás dizendo! Pense, mesmo! É uma horrível acusação!
PRINCIPE Sei que é, bem sei. E espero que tu saibas dividir o que há entre nós e o que há entre mim e a tua família. Ah, beija-me, Custódia!

Os dois se beijam

FIM DO ATO 1

O diretor aproximou-se, dândi, e apertou a sua mão, satisfeito. Conrado enrusbeceu. E perguntou:

- Como me saí?
- Bem.
- Eu quero melhorar
- Não, está indo muito bem, realmente – o diretor lhe disse, e completou, após olhar nos seus olhos – Mas estude, heim?
- Sim, ok.
- Bom. Preciso ainda conversar com o Padre Cícero e com a copeira. Nos vemos no próximo ensaio, “pequeno príncipe”?
- Sim... Nos vemos... Próxima sexta feira?
- Sem falta.

Ele foi-se, mas Conrado continuou ali como se sua presença persistisse.

Pequeno príncipe...

Sorriu, contente com a alcunha. Pequeno príncipe... Era quase como se o seu papel, de não tanta importância para a peça e nenhum valor para a literatura mundial, tivesse sido embrulhado com um papel bonito. Sentia-se tão importante! A adjetivação do seu personagem, ainda que fosse pequeno, fora extremamente charmosa. Quem diria, ele, Conrado, um pequeno-príncipe!

Mas ninguém entenderia o que lhe deixava tão feliz. Não que ele se importasse.


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Continua...
 
Última edição:
Eu comecei a leitura só por curiosidade, não esperava chegar até o final (eu e as noites mal dormidas) mas ele mostrou-se deveras interessante, tive de terminá-lo! Muito legal essas peculiaridades do seu (ou nosso) futuro... na visão da maioria dos autores de ficção todo o futuro se resume a uma balbúrdia pessimista, a la libertinagem, cataclismo atômico, desafeto humano como parte da evolução do ser; Aldous Huxley que o diga... ah, assim como seu personagem, o Conrado, eu também me perco em devaneios, perdoe-me.
Até!
 
Última edição:
Hm... Obrigado mesmo pelo tempo gasto na leitura. Fico feliz quando as pessoas lêem meu texto.

Eu, pessoalmente, sou pessimista sobre o futuro, não que ache que o mundo vá acabar ou se transformar num cenário como os de Isaac Asimov, etc. Mas tenho muito medo do que há por vir. Mas nesse texto resolvi ser um pouco mais positivo. Não positivo, mas criar uma imagem mais suave de futuro, sem tantas mudanças chocantes.

Hm... Perder-se em devaneios é maravilhoso, não se desculpe, Marendûr!
 
SEGUNDA PARTE





Conrado, satisfeito com o seu dia, pegou o metrô lotado para voltar para casa. Sentou-se na janela e logo acomodou-se ao seu lado uma senhora de mãos calejadas e olhos cansados, caídos; e ficou a olhá-la, perplexo... Ela segurava sacolas de supermercado com seus bracinhos fracos e mantinha a bolsa no colo, numa desconfiança senil. Quis conversar com ela, mas acabou que pensou demais e não teve coragem. Ficou um pouco receoso, envergonhado. Deixou para lá. E mais um gesto entrou para o mundo do Não-Se-Fez.
Entediado pelos caminhos de minhoca que a locomotiva fazia, desenhou na sua cabeça toda a vida da velha e também, depois, decidiu seu trágico futuro. Algo assim:

Felicina (era seu nome, imaginava) havia nascido na Itália, mas desde que ainda era um brotinho havia sido trazida para a terra brasil e estabelecera raízes ali mesmo, no Brás, tradicional colônia italiana desde a antiga época dos imigrantes. Estudara em escolas renomadas, apesar de vir de uma família humilde; sua mãe, a Dona Anunciata, vivia repetindo que “não peguei um avião Mach5 da minha saudosa Itália até aqui para labutar como uma negra e minha filha não poder estudar como se estuda na nossa terra!”.
Assim que seus peitos começaram a crescer e marcar os seus vestidos, começou-se nas ruas sujas do Brás a promover-se uma verdadeira campanha para casá-la, porque sua beleza era de fato notória e não havia um italianinho safado que não virasse o pescoço para vê-la passar. Casou-se jovem com um tal de Giuseppe e tiveram três filhos e...

Conrado fez uma pausa e olhou atentamente para ela, a procura de vestígios arqueológicos que pudessem revelar seu passado. Atentou-se às rugas de tristeza:

E, infelizmente, Giuseppe, foi chamado à Guerra da Venezuela e acabou sendo morto por um oficial Chinês chamado Hon Chi Mon IV. Como se não bastasse, seus dois filhos varões também sucumbiram durante a guerra, mas atingidos por estilhaços da própria Granada Atômica. Pobre Felicina, balançada pelos mais terríveis ventos do destino!
O que lhe restou foi aplacar sua dor cuidando de sua única filha, Julia, dando a ela todo dinheiro que recebera de herança do falecido marido (pobre Giuseppe, pobre Giuseppe!) e todo amor que seu coração destruído ainda podia dar. O tempo passou, a vida passou e Julia casou-se também, mas com um certo professor Fred, e tiveram um filho somente, chamado Lucas.

Conrado suspirou e percebeu que havia chegado ao tempo presente da história dela. Bastava observá-la com atenção:

No momento, vivia sentindo-se um estorvo na casa de sua filha, seu neto – apesar de muito amá-la – não lhe dava atenção e seu genro mal fingia suportá-la (ela e suas manias, a Dona Felicina, hohoho!). Às vezes eles saíam de casa para almoçar com amigos e deixavam para ela um prato, onde despejavam dois saquinhos de batata Ruffles, e uma garrafa de Coca Cola sem gás. E ela almoçava, sozinha, pensando na sua vingança.

Agora, e quanto ao futuro? Como descobrí-lo? Conrado usou-se do bom senso:

Dona Felicina acabará sendo perseguida sob acusação de assassinato, porque sua filha será encontrada crucificada no jardim e sumirão seu genro e seu neto, e passará o resto de seus dias morando numa ilha no Pacífico tomando sol e água de côco transgênico. Morrerá de câncer de pele, porque seu hidratante facial – que é testado em gorilas – contém proteínas altamente canceríginas que são ativadas pela ingestão de frutos do mar (iguaria dessa ilha, recomendada nos melhores guias virtuais da neo-internet). Pobre Dona Felicina.

Conrado riu-se, levantou-se e saiu do metrô, com vontade de despedir-se de Felicina, mas não com a coragem necessária. Subiu as escadas do metrô, deparou-se com o sol poente e andou até a sua casa, pensando na vida. O problema era exatamente esse, pensar demais, Conrado com mania de instrospecção. Voltou a pensar na prostração de seu pai, ajoelhado ao pé da cama, afagando suas lágrimas de derrota num travesseiro amarrotado. No chão, fazendo as vezes de tapete, as contas que chegam alucinadas pelo correio e vem para agredir a economia familiar.
E, no ventilador que gira, confuso, no teto, seu pai vê a possibilidade de fuga. Pega sua gravata estampada com ursos pandas (animais dos tempos antigos, já agora extintos) e se enforca magistralmente, na cena final do ato da sua vida. As cortinas se fecham...

... Conrado aperta o passo

A vida, a grande máquina de dizer adeus, balançando seus braços gordos e molengas, continua a pender de um lado para o outro, incessantemente, como um metrônomo desembestado. Em se olhando para ela, e somente assim, vem o ato de ser despedido – que requer a consciência de que se parte, apesar de não requerer a sua aceitação.

... Começa a chuva fina, como a saudosa garoa paulista

Conrado chega na frente da sua própria casa e a observa, tétrico. Olha as janelas, observa quais carros estão na garagem, vê como têm crescido as plantas do jardim e, enfim, cria coragem para entrar. Prepara-se para o pior e promete para si mesmo suportar o miasma inebriante e até mesmo o dejavú de ver seu pai balangando no ventilador; e, no final das contas, morrer no ventilador constitui uma certa espécie de vantagem, porque se espalha todo o cheiro de morte que caso contrário ficaria estagnado no ambiente. Extremamente cômodo. Mórbido, mas extremamente cômodo.
Pulando a parte em que o protagonista fica no entro ou não entro, cheguemos ao ponto que ele toma a única decisão que ele tomaria e gira a maçaneta, sua mão trêmula e o cenho todo franzido, na expectativa de deparar-se com a cena mais ridiculamente inesquecível de sua vida. Abre a porta.
Lá dentro, deitado na cama, em posição fetal, vestindo um pijama verde velho feito roupa de mendigo, seu pai assiste à televisão (tela de tungstênio, muitas polegadas, canais emitidos pelos ultra-satélites...), quietinho. É um episódio de um programa qualquer, sobre o mundo animal, cuja chamada é:

Entenda como será a vida dos animais que serão levados para marte, nessas férias, pelo trêm espacial Genkis Khan. Em foco: o acasalamento de zebras nas condições naturais do planeta vermelho.

- Boa noite, pai
- Já vai dormir, filho?
- Sim, vou. Como foi o dia?
- Normal

Seu pai vira para o outro lado e logo está perdido dentro da amplitude do próprio ronco. Conrado dá de ombros e vai para o seu quarto, onde cai com tudo em cima de sua cama e agradece aos céus por seu travesseiro branco e macio. Está cansado. O mundo tão pequeno e ele, menor ainda! Sente uma leve disparidade entre poder transpõr distâncias gigantescas e fazer o mundo ficar do tamanho do seu bairro e, ainda assim, não transpôr os caminhos que existem dentro dele mesmo. Todo o progresso e a comodidade do mundo moderno não lhe apetece nem doma sua imaginação, diz-se.
 
Boceja e, com um comando verbal, apaga as luzes e liga a televisão (que, a partir deste momento, chamarei de tungsvisão, uma vez que é assim que se chama no futuro), sonolento. Decide assistir ao jornal da madrugada, para estar a par das mais recentes tragédias. E dá sorte, pois acabou de começar.

- Boa madrugada! Aqui quem fala é Elizabeth
- E Hector
- E começa agora o Jornal Corujão, o jornal que não deixa você na mão

(suspiros)

- Crianças sequestradas na grande capital, polícia ainda sem suspeitos.
- Furacão passa pela Índia, líderes locais preocupados com a grande população.
- Descobertos novos tesouros alienígenas em Júpiter, cientistas alegam que...

Suas palpebras, cansadas, deslizam.



SEGUNDO

O acordar na cidade de São Paulo, naquela época, era glorioso. O sol laranja se espreguiçava para dentro do quarto de Conrado e lambia lentamente os seus ombros, que o lençol já não cobria, pouco a pouco despertando-o. Assim que deu-se por acordado, mergulhou no perder-se do edredon esfandongado e abraçou o seu travesseiro, bocejando. Então, ao mesmo tempo em que limpava a remela nos seus olhos fundos, se esticava todo.
Virou, de súbito, para o rádio relógio atômico, um pequeno dispositivo a projetar as horas na parede (ajustado automaticamente de acordo com o World Clock III, o relógio neovirtual inglês que havia se tornado referência de horário oficial mundial, após ser meticulosamente programado), e checou o horário: dez da manhã, num lindo sábado. E toda aquela promessa do não ter nada para fazer.
Saiu do seu quarto e foi até a porta da sua casa. Abriu-a e desceu devagar os degraus de mármore, sentando-se na calçada. Percebeu que o carro de sua mãe estava na garagem, ela provavelmente voltara tarde do trabalho durante a noite; nem percebera. Pegou o jornal, aqueceu-se mais um pouco no sol e voltou para dentro de casa.
Jogou-se no sofá de couro, finalmente derrotado. Seus amigos viajando, as aulas que demoravam para começar, seu tungscomputador no conserto... Nada apetecia o gosto de Conrado, que era cheio de desejos e idéias estranhas. Queria era estar num filme e poder fazer o que quiser, correr naquele instante mesmo, pegar uma mala no armário, enfiar as roupas que menos se amassam, pegar alguns remédios e fugir dali... Sabe-se lá para onde, mas fugir.
Assim que transpusesse a porta – sabia – teria toda a gama de possibilidades que o sábado caseiro lhe drenava, e as queria! Na verdade, estar na rua com algum dinheiro e duas ou três mudas de roupa era ter praticamente todas as possibilidades. Conrado tentava evitar aquela idéia extravagante, mas acabava soprepondo-a à sua realidade e, inevitavelmente, transparecia a óbvia sensação de que ainda havia muito na vida que ele desconhecia.
Imaginava-se viajando, na beira duma estrada, numa paisagem rural. Dos dois lados do caminho elevavam-se pequenos morros verdes com bovinos pastando, desvinculados de toda a realidade das coisas. Os carros passavam flutuando, levantando uma poeira gostosa que rodopiava e rodopiava gostoso. Ah, a terra seca do outono tardio!
Lá em cima, presos nos postes austeros de tungstênio, passavam os fios de eletricidade e informações, negros, servindo de poleiro para alguns corvos de olhar suspeito. E Conrado admirando-os como se admira de modo imbecil a cobra peçonhenta que se aproxima.
Deitado, no sofá, do que estava se privando? E quanto às experiências com as quais sonhava? O que fazer com a idéia do caminhar descalço na beira daquela estrada etérea, pegar carona num caminhão sujo, dormir no relento...? O que fazer com a imagem fixa dos corvos onipresentes, introspectivos?
As respostas eram sempre evidentes. A privação era excelsa, as experiências ficavam para trás e as idéias... as idéias era só esquecê-las que um dia desapareceriam; só sobrava mesmo a imagem dos corvos, grasnando e focalizando aqueles olhos de jabuticaba no nosso indefeso protagonista, numa precipitação dum ataque traiçoeiro.
Abriu o jornal, não tão curioso, mas disposto a afastar-se dos seus pensamentos matinais, os quais tanto lhe importunavam. Uma reportagem em especial chamou sua atenção:


DENÚNCIA: MAUS TRATOS NAS MINAS DE TUNGSTÊNIO

A empresa Tungs S.A. foi acusada, nesta última sexta feira, pelas agências internacionais de Bem-Estar Social e Direitos Humanos. A denúncia foi feita em cima das péssimas condições de trabalho dos mineradores, que são às vezes submetidos à jornadas sobrehumanas e cujos direitos trabalhistas lhes são, na maioria da vezes, negados. “Nós fazemos o que é possível”, disse o diretor de relações humanas da empresa, à redação. “Todos nós precisamos de Tungstênio, é necessário que alguém faça o esforço”.
A promotoria afirma que são “pífias” as instalações de mineração da empresa em questão e que os robôs-topeira usados na mineração (também conhecidos como demônios miosótis, pela população) precisam de inúmeros reparos, que ainda não tinham sido feitos até o fechamento desta edição. Leia mais na página tal, bla bla bla. Compre Coca-Cola.


Conrado ficou algum tempo, depois de fechar o jornal, pensando no que lera. Nenhuma novidade, mas, ainda assim, seria fácil identificar-se com os pobres trabalhadores ou acender-se a chama humanitária que havia dentro dele que despertasse seu interesse. Entretanto, Conrado estava era pensando nos robôs-topeira, os demônios miosótis. Lembrava-se deles, nas aulas de atualidades, na sua antiga escola. Trouxe de volta a imagem já construída que formulara...
Provavelmente, eram robôs do tamanho de um carro, em formato de topeira. As garras afiadas fazias as vezes de perfurador enquanto todos os aparelhos de reconhecimento de solo, os hardwares de inteligência artificial e toda a tralha tecnológica ficavam nos seus dois olhos. O motor e toda a força bruta ficavam no restante do corpo, como era de se esperar.
As primeiras levas de robôs foram todas padronizadas, acabando por dar espaço para o surgimento da alcunha de demônios miosótis. Miosótis, porque eram pintados dum azul prateado lindo, feito gelo, e tinham o focinho e as patas dum amarelo como o do ouro. Demônios, pois destruíam tudo o que fosse passível de desconstrução. Amedrontadores, mas substitutos perfeitos para os operários incompetentes e reclamões; era uma pena que se precisasse de um ou dois para operá-los.
Construíu a cena: Uma caverna enorme com robôs-topeira espalhados pelos cantos, ensandecidos, destruindo as paredes e localizando fragmentos de wolfrâmio para, mais tarde, extrair-se o tungstênio tão cobiçado. E os demônios trabalham durante todos os segundos do dia, sem exceção, uma vez que os operários revezam em turnos meticulosamente programados. Extração mineral com cem por cento de eficiência, podia-se dizer.
Há, por todos os cantos, goteiras de água azulada, água de caverna. As gotas caem sem serem ouvidas, porque há toda aquela gritaria das máquinas e o barulho infernal das garras encontrando-se com as paredes pétreas. É só quando o campo magnético da terra dá um espasmo, desativando os robôs por alguns segundos, que se aprecia o silêncio e o pingar das gotas. Alegria de operário dura pouco, diz-se nas minas.


E a alegria de Conrado era pensar. Pôs-se a lembrar-se da sexta revolução industrial, quando foram criados os demônios miosótis e todas as grandes invenções do futuro. A quinta revolução fora marcada pela substituição dos combustíveis e por mudanças muitas de comportamento, mas a sexta foi que trouxe o que caracterizará o cotidiano de Conrado, a começar pela injeção de não-excreção.
A injeção de não-excreção, que foi chamada de Humanizer, pelos cientistas coreanos, foi muito famosa no início do século XXII. Para entendê-la, é necessário que se entenda a conjuntura daquela época: houve uma corrente de pensamento muito bem sucedida, chamada Neo-Humanismo, que pregou a superioridade racial da humanidade e a sua importância evidente no funcionamento do universo. Baseado nessas teorias, houve a idéia de que os humanos não deviam excretar, fosse o que fosse, porque tal era característico dos animais.
 

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