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[L] [Kementari] [A Tempestade de Colitas]

Kementari

É só marca do fogão!
[Kementari] [A Tempestade de Colitas]

A Tempestade de Colitas.

Capitulo 1 – A criança chorona.

O ar estava negro e as enormes janelas sem vidro eram assustadoras, pois delas parecia vir o som dos trovões que rasgavam o céu que agora chorava cinza a sua tempestade castanha. As paredes de pau-a-pique não suportariam por muito mais tempo aquele vento estranho e forasteiro, que atormentava há dias a região. Uma região seca e magra, que de tanto secar fez-se a tormenta reverter.
O chão de barro agora era lama, e havia pontos no agreste que ela chegava até o meio da canela, sujando as mulheres e afogando em tristezas e lágrimas as crianças morenas.
O teto havia sido parcialmente levado, e agora umas poucas palhas restavam por sobre a casa.
O colchão jazia encharcado e triste no chão, e não havia sido ainda levado por conta de uma criança que se encolhia por debaixo de uma folha de palmeira seca, trazida do leste em tempos melhores, e por sobre o colchão ignorante.
A criança era magra, como tudo num raio de umas trinta e cinco milhas, mas que agora engordava com a água. Ela estava apenas com uma blusa rasgada pela caatinga, e pela primeira vez apreciara o cavalheirismo mentiroso e detestável do Frio. E ela chorava, mas não chorava lágrimas, e mesmo se chorasse, a chuva mutante salgada confundiria as lágrimas com maldade, e elas não saberiam para onde ir. Tudo na menina parecia morto, à exceção dos seus cabelos, que agora eram mais lustrosos e negros do que nunca, e desmentiam essa possibilidade. O Fato conta que os cabelos são os fios que a Morte deixou de trançar em seu manto de lamúrias, e pensando dessa forma, a cena é de uma tristeza incontestável. *

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“Foi há uns quatro dias. Eu acordei para ir trabalhar na cidade. Quando eu saí de casa e olhei para o céu, lá estava aquela coberta negra. E todos nós comemoramos. A chuva era uma bênção em tempos tão difíceis. Fui trabalhar com a certeza de que nesse mês, a produção iria deslanchar. Muitos não viam uma garoa desde que eram moleques, e para todos era novidade. Mas a chuva não parou, e em dois dias, se transformou em uma tormenta bíblica, e o chão virou água, e as casas tombaram, e no terceiro dia veio o vento cortante e frio, e tudo era bizarro e surreal. E os homens gabirus ficaram agonizando em suas casas, sem saber o que era, de onde veio, o que faria. E lamentavam tudo que havia de haver não havia”. – Depoimento de Toinho Macêdo para A Gazeta Nordestina.
Antônio Leite Macêdo Filho: Intelectual Paulista que se mudou para o Agreste em sua mocidade, fugindo do Mundo e da Globalização.

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Os raios continuavam iluminando a noite escura, como grandes luzeiros que piscavam, e os ventos traziam pequenas partículas de terras místicas e distantes, e enchiam de cores a paisagem Marrom. Seria um tanto bonito de se admirar, de não fosse tão trágico. E tão mórbido.

Não havia ninguém. Podia-se andar milhas e milhas, mas não se encontrava um único homem dentro das casas que ainda pestanejavam, ou perto das que sucumbiram. E a criança, que havia cansado de chorar e tremer, agora fazia essa procura.
Ela andava com passos curtos, e a sua camisa tremia no ar, como uma bandeirola. Assim também fazia a sua comprida cabeleira, que apesar de suja e gasta pela tempestade, continuava com uma incrível luz azul, que luzia quando os fios balançavam no vento.
Ela estava com os braços entrelaçados no corpo, como se abraçasse a ela mesma, e essa era sua única possibilidade de obter algum conforto. Mas aquela criança conheceria apenas a Fome e o Frio, e o Calor e outras Desgraças.

Ela agora andava em uma planície sem nenhuma irregularidade visível. Porém muito pouco era visível, e ela mal conseguia enxergar o que havia a um ou dois metros a sua frente, pois tudo estava emaranhado em luzes, areia, vento e chuva. Chuva preta, que caía inexplicavelmente levada por uma força mística no sentido contrário ao sentido do vento. Mas era assim que se procedia, e a menina caminhava na fronteira do vento e a chuva. E sobre a areia. E dentro da areia.
Seus olhos não mais enxergavam, devido à poeira, e suas mãos esqueléticas não alcançavam o rosto, por falta de forças, esperanças e vontades. E a criança caminhava no escuro, sem tatear.

Eis que em meio à tormenta surgiu a calmaria, e o vento não mais ventava em seu rosto, e a menina abriu os olhos, mas imediatamente tornou a fecha-los, pois a poeira estava em sua face suja, e irritava-os. Ela finalmente levou as mãos aos olhos e conseguiu limpa-los, na medida do possível.
Ao abrir os olhos, ela não enxergou imediatamente, nunca soube ela por que. Mas o fato é que de princípio ela enxergou preto, e depois veio um grande clarão, que após alguns instantes se apagou, e a calmaria se explicou.

A criança havia entrado no Armazém, misteriosamente. Estava nas fronteiras da cidade. Caminhara tanto. (...)
E ao olhar para o balcão, estavam muitos lá. E estava o Coronel, e o Dono da Mercearia e do Armazém, e suas filhas, bem como Toinho Macêdo e seus filhos e sua mulher. Ao olhar mais para o lado, viu também o Boticário ao lado do Doutor, que por sua vez estava do lado da Parteira, que estava do lado do Jeca Tatu. E o Jeca Tatu não estava perto de ninguém.
E a criança ainda transtornada olhou para fora do portão arrombado, e o que pôde ver foi o caos original. Teria dali ressurgido o Planeta? Talvez. (...)

Retornou o olhar para dentro, temendo enlouquecer, se é que já não o havia acontecido.
Todos olhavam para ela com uma expressão de horror, espanto, tristeza e confusão. E todos os olhares eram iguais, e igualaram o da criança.
Ninguém falou nada. E a criança não sentiu vontade de falar. E não havia o que falar.

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Nada era mais de ninguém, e a menina adentrou o armazém, observando tudo pelos cantos dos olhos, sem desvia-lo. Todos estavam muito sujos menos o Dono do Armazém, que esteve ali o tempo todo.
E ela ficou observando imóvel o Boticário, que ao seu ver lhe parecia o mais triste. E a criança se entristeceu por um momento com o seu olhar. E ele estava com os óculos sujos e redondos de lama, e as sobrancelhas arqueadas, numa expressão mórbida. Seus lábios estavam amarelados pela paisagem, combinando com seu jaleco rasgado e com os tubos coloridos que jaziam incrivelmente em seu bolso.
E a criança se esqueceu da realidade observando o Boticário com seus cabelos curtos. E se esqueceu de entristecer. E se entristeceu por se esquecer de entristecer. E observando a tristeza de todos entristeceu. Eles que estavam certos.

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E ela se sentou, tristonha.


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*”No terceiro nicho do altar-mor, ao lado do Evangelho, é que estava a notícia. A lápide saltou em pedaços ao primeiro golpe da picareta, e uma cabeleira viva, cor de cobre intensa, se espalhou para fora da cripta. O mestre-de-obras quis retira-la inteira, com a ajuda dos seus operários, e quanto mais a puxavam, mais comprida e abundante parecia, até que saíram os últimos fios, ainda presos ao crânio de uma menina. No nicho ficaram apenas uns ossinhos miúdos e dispersos, e na pedra carcomida pelo salitre só se lia um nome, sem sobrenome: Sierva María de Todos los Ángeles. Estendida no chão, a cabeleira esplêndida media vinte e dois metros e onze centímetros.”- Cartagena de Índias. [/i]
 
Kementari...lindo. Poético. Mais poético do que real. Bem, quem precisa do real agora que temos frestas de esperança?

Isso quase me motivou o suficiente para postarminha coleção de crônicas do Sertão da Paraíba. Minha mãe nasceu lá, e morando em Recife eu acabo visitando muito o lugar. A coisa é feia, mas não tão feia assim. Gozado é que temum capítulo só para a chuva também...

Toinho Macêdo é o baixista do Quinteto Violado. Grande compositor, letrista e instrumentista.
 
Valew gente!! :obiggraz:


Inho, posta sim! Feio não deve estar, uma vez que você já provou pra gente que escreve pra lá de bem!! :wink:
 

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