Minha pergunta era a respeito desse negócio de "cu da minhoca", quer dizer como alguém se acha no direito de chamar uma doutrina alheia com uma expressão tão baixa, só por não concordar com ela?! Mas, indo ao assunto...
Vancê é um gentleman, Limpe, eu cá sou escrotaço, então releve se o ofendi.
A doutrina das indulgências não é, de forma alguma, algo irracional para os cristãos. O fundamento das indulgências é a distinção entre a culpa e a pena causadas por um pecado cometido. Acho que não é necessário me alongar nisso já que o Meneldur o explicou muito bem. A respeito dessa "gratia creta" eu ignoro. Imagino que se refira a
gratia creata de Santo Agostinho. Se de fato for isso, o que tem haver uma coisa com a outra? Quando Santo Agostinho falou sobre
gratia creata referia-se à disposição de fazer o bem que Deus instila no homem e que o ajuda a superar as inclinações ao mal que existem em si. Logo, a Graça é ao mesmo tempo livre ato de Deus, um socorro gratuito da parte de Deus, e o efeito desse ato, que, dá a força necessária para fazer o bem onde antes não existia, e como tudo que surge de onde nada havia previamente por ato divino diz-se
creata (criada). Não há nada que se refira as indulgências nisso, ou que sejam coisas... Eu, hein...
Há sim uma relação. A questão está tanto no que a graça é quanto no fato dela ser criada ou incriada. A graça não é apenas um livre ato de Deus como é o restabelecimento gradual da semelhança divina, da imagem de Deus no nous (intelecto espiritual, cerne da personalidade, coração) do homem. O mais atroz efeito da Queda é exatamente o obscurecimento 'natural' do nous, sua predisposição às afeiições terrenas e às paixões violentas, e o gradual esquecimento das coisas celestiais, de Deus, da imagem divina. Portanto, é doutrina ortodoxa o pecado ancestral, que nada mais é que esse efeito de obscurecimento do nous e de perda imortalidade e estado edênico, concedidos ao homem por Deus. Não se trata da noção agostiniana de 'pecado original' que é sim, herética e uma deturpação da Tradição da Igreja, da doutrina da perda da imagem divina. Não existe pecado original, não há nenhum pecado nem no ato sexual, mesmo não-procriativo, nem uma 'culpa' herdada, há simplesmente os efeitos da Queda.
Vejamos o 'criada'. Ignorante como era da distinção dos Padres capadócios (são Gregório Nazianzo, São Basílio Magno e São Gregório de Nissa), entre essência e energia divinas. Soubesse Agostinho da 'gratia increata', a doutrina veramente tradicional da Igreja, não teria formulado tão ousada e herética doutrina. A graça não é criada, é incriada, no sentido de que não 'provém' de Deus como qualquer criatura, como eu e você, o sol e as estrelas, ou mesmo os anjos, mas é tão divina como o Verbo, tão Deus como o Espírito Santo e tão ininteligível e excelsa quanto o é a infinitude do Pai. A graça é incriada porque não é simples ato, como Deus não é um Ato Puro, mas uma essência que complementando sua essência supra-essencial, é dotado de energias que são divinas, coeternas, são atos, ou melhor, forças que atuam nos homens e no mundo, constantemente, são a Luz incriada que brilhou diante dos Apóstolos lhes permitindo enxergar, com seu nous obscurecido, puderam contemplar o Cristo em sua glória. O que a glória de Deus senão a energia incriada? Como são incriadas as energias de São Dionísio Areopagita, seus prodoi, as processões ou emanações do poder atuante e divino de Deus que firma e estabelece os diversos graus das diversas hierarquias de existência, das mais materiais às mais celestiais. Para o Areopagita toda a criação só o é enquanto movida, vivificadas pelas processões particularizadas sem divisão do mesmo poder divino. O mesmo se dá com os logoi de São Máximo, o Confessor, os estruturantes de todo os cosmo, as razões transcendentais que estabelecem o ser de todas as coisas, sua constituição, sua fixidez e devir, sua constância e perendiade. Os logoi são a direta imagem do Logos no mundo criado. Tal tradição de distinção entre substância (ousia) e energeia é reafirmada por toda a Tradição dos padres, culiminando no grande Pilar da Ortodoxia, São Gregório Palamas, que nas suas 'Tríadas pela defesa dos santos hesicastas' afirma não apenas que os atos divinos em favor do homem, a graça, são energias incriadas como elas permeiam toda a criação e que o método hesicasta de oração nada mais é que uma escola da humildade e do sofrimento, no sentido de abrir o coração à iluminação e purificação pelas divinas. Doutrina ortodoxa ratificada pelo IX Concílio Ecumênico (século XIV), onde as teses de seu oponente, Barlaão, repletas de pura metafísica de tradição agostiniana foram condenadas.
Como se dá tal entendimento da teologia mística ortodoxa à luz dos Santos Padres, pode ser conferido brevemente aqui:
http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/pais_da_igreja/s_gregorio_palamas_e_os_padres_da_igreja.html#O Significado da Época dos Padres.
No entanto, o que faz Agostinho dessa Tradição? Ignora, como ignorou os escritos dos Padres capadócios, e ignorou a distinção entre ousia e energeia, afirmando, ao contrário, sua união, a união de uma essência que, em Deus, se identifica com sua energias, ou seja, seu ato puro e simples de Ser. Eis aí fundadas a metafísica racionalista a que os ocidentais chamam de 'teologia', mas que não representa em NADA a Tradição dos Padres da Igreja, orientais e ocidentais.
Sobre a relação das energias incriadas com o assunto, tem tudo a ver, caro. Se a graça é incriada, toda a antropologia e espiritualidade são transformadas pelo simples fato de que a contínua santificação do homem não se trata jamais de uma simples justificação entendida no seu sentido jurídico e formal, mas uma verdadeira ressurreição ontológica, a habitação da Divindade no seu seio, a deificação do homem pela purificação, iluminação e divinização do homem, theosis. Muito diferente das estéreis controvérsias entre justificação pela fé somente ou pela fé + obras. O entendimento da salvação é completamente outro, assim como o é o de sua teologia sacramental, onde os sacramentos e seus efeitos não são o de outorga de certo 'estado' de graça ou de condenação, mas de uma graça e condenação que só existem em função do estado da alma diante da Luz. Os sacramentos se tornam não documentos e licenças para pecar ou remissão de penas temporais (temporalidade sendo uma distinção puramente racional, portanto, limitada e jamais uma base reta para que se possa compreender o incompreensível, a saber, o processo pelo o homem se torna Deus.
http://luzbizantina.blogspot.com.br/2013/06/ortodoxia-e-divinizacao-do-homem.html
Essa é a base das indulgências e de muitos fenômenos devocionais e espirituais análogos no Ocidente, um entendimento racionalista das estruturas de governo e do próprio entendimento e prática da teologia que deixa de ser um campo de prática das virtudes cristãs, da ascese purificadora e se torna exercício estéril e impio de formulação de doutrinas e metafísicas, de uma arrogância que pretende compreender a fé e Deus pela pura razão, e que reduz a salvação a uma aquisição de conhecimentos morais e metafísicos. E mata-se a ascese no mundo, abrindo o caminho às teorias racionalistas e iluministas do mundo moderno, pela rejeição da vida realmente mística ou sua relativização.
As indulgências são impensáveis na Ortodoxia, pelo simples fato de jamais concebermos a autoridade eclesiástica dos bispos e sacerdotes como vocês concebem, como dispensadores e ministros de sortilégios que atuam de forma mecânica e racional, mas como aquilo que nos legou a Tradição. A autoridade só existe em função do serviço e o serviço sacramental é visto como uma verdadeira terapia espiritual, um auxílio onde atua a própria Luz incriada, ao recriar o homem e purificá-los dos ataques dos demônios à imagem de Deus em si, lhe restabelecendo o Eden interior e expulsando a serpente de seu paraíso. Os bispos são doutores, e os padres são enfermeiros. Entender a hierarquia eclesiástica, conforme bem define o
Pe. John Românides, é uma impiedade, impiedade em que os ocidentais não deixaram de incorrer desde os primeiros erros e sanhas supremacistas.
Mais
aqui.
Da mesma forma quem não compreende que os sacramentos e toda a vida espiritual e litúrgica são uma verdadeira erapia para cura do homem velho, assolado pelas paixões tenebrosas e pelos seus inspiradores, os demônios, com o objetivo de lhes restabelecer a imagem divina perdida.
http://www.oodegr.com/english/psyxotherap/neurobiological_sickness_of_religion.htmIsso é uma inverdade. As autoridades não distribuem a bel-prazer as indulgências, há uma norma para isso: Constituição Apostólica
Indulgentiarum doctrina para mais informações:
http://www.vatican.va/holy_father/p..._apc_01011967_indulgentiarum-doctrina_po.html[/QUOTE]
Eu sei que não, mas elas continuam atreladas a práticas de devoção e a uma lógica ferrenha de troca, compra e venda. A única diferença de agora apra a Idade média é que não se troca mais dinheiro, mas práticas espirituais que são quase materialmente 'trocadas' por indulgências. A fé mística é trocada por um bocado de escolasticismo devocional, tu rezas pelo Papa e ganhas tal graça criada, vinda do depósito das graças, como belas 'licenças' de que dispõe Roma. E uma perversão da eclesiologia.
Você fala como se a mentalidade ocidental fosse saída diretamente da caixa de Pandora e devesse ser eliminada de imediato... Esse tipo de preconceito houvera por parte dos cristãos orientais para conosco, cristãos ocidentais, e julgando pelo que disseste, vejo que isso não mudou muito depois de mil anos de cisma...
Não são preconceitos. Quem nos ameaçou, chantageou, perseguiu, torturou e chacinou aos montes não foram ortodoxos mas, pelo menos antes do comunismo, foram nossas 'irmãos na fé'. A Cruzada Bandida de 1204, as insídias uniatas dos séculos finais do Império Bizantino, as perseguições aos ortodoxos em países ocidentais, o holocausto sérvio, enfim... a lista é longa. Existe muito rancor contra Roma ainda, mas melhor que rancor é não existe entusiasmo com ecumenismo e há muita sobriedade, felizmente, nos diálogos teológicos. A
De onde tiraste essa ideia estúpida de que nós, no Ocidente, concebemos o Céu e o Inferno como lugares?! O Catecismo da Igreja Católica (n°s 1024 e 1033) explicita muito bem o Céu e o Inferno como estados. É bem verdade que há correntes teológicas que os colocam como lugares, mas isto após a Ressurreição final. Céu e Inferno são antes de tudo estados.
A doutrina romanista pode afirmá-lo mas não é assim que a consciência medieval e moderna nos transmitiu. E isso,caro, não muda o terror psicológico e a 'cultura do medo do inferno' que os pregadores romanistas popularizaram. O Ocidente nasceu às voltas com essa psicose.
Ridículo! Só por que usamos o termo "economia" ao invés de "energia" quer dizer que ignoramos? Aff... O significado é o mesmo: atividade. Daí dizer que se conhece a Deus por suas energias, ou, economias, ou seja, por meio de suas obras.
Isso só demonstra o grau de desconhecimento. Energias divinas não são a economia de vocês ou as 'obras' de Deus. As energias incriadas são de um 'grau' tão excelso que o entendimento romano da glória de Deus sequer pode conceber, até pela ignorância espiritual da 'função' dessas mesmas energias como cerne da recuperação divina no homem. As energias não são meras atividades exteriores, mas um verdadeiro movimento interior e íntimo, embora não-essencial, da divindade.
Relativize essas diferenças e você jamais compreenderá a Ortodoxia e sua tradição teológica, espiritual, monástica.
Aproveito para afirmar que a Igreja Ocidental (Igreja Católica Apostólica Romana) não ignora nem esqueceu com desdém a teologia oriental como foi afirmado levianamente pelo Paganus. Não raro encontro escritos dos Santos Padres Gregos como segunda leitura quando rezo o Ofício das Leituras, e o Santo Padre Papa João Paulo II escreveu um belíssimo documento a respeito das tradições orientais:
Orientale Lumen. Eu, particularmente, sou um admirador das tradições orientais, quero um dia participar de uma missa em rito bizantino, deve ser muito legal!
Isso é verdade, Limpe, mas é recente. Data do II Concílio Vaticano. No entanto permanece o uniatismo. Não é uma contradição a simples exist~encia e ainda mais atividade dos uniatas? E permanece o abismo entre a teologia ocidental e a ortodoa. Veja que disse ortodoxa e não oriental, porque de ambas se nutre a Tradição ortodoxa. O que a Ortodoxia condena não é o Ocidente, mas o Ocidente pós-Agostinho e os erros por ele engendrados.
O que não impede que certos contatos, desde que sóbrios e racionais, livres de paixões e entusiasmos da parte do maligno, não venham a envenenar os diálogos.
Ademais, cá estou feliz de saber que você cultiva a pia recitação do Ofício Divino da tradição ocidental, uma belíssima, canônica e litúrgica forma de devoção, minha preferida dentre todas e que eu mesmo cultivei quando era católico romano.
E que antropologia e eclesiologia viciadas são essas de que fala?
Papismo.
Além do mais, numerosas heresias surgiram nas Igrejas orientais, das quais algumas foram avassaladoras, como por exemplo o Nestorianismo, começado por Nestório, que foi (pasmen!) Patriarca de Constantinopla.Deveria eu também culpar a mentalidade oriental, com sua "autêntica theosis", por tais heresias e dizer que não presta?
O que não tem nada a ver com o assunto. Constantinopla não é mais impecável ou infalível que Roma nem é maior que qualquer diocese em algum canto obscuro da Grécia. Essas comparações não vão te servir muito onde sempre se teve ojeriza a qualquer forma de centralização de tipo papista.
E os sacramentos são canais da Graça para se alcançar a união íntima com Deus (deificação, para os orientais), não tem nada a ver com 'sistemas'.
Concordo plenamente. Concorda a escolástica?
Concordo plenamente! Bravo!
Quero encerrar esse post dizendo que só venho a confirmar minha impressão de tê-lo visto como um católico fiel e inteligente, um dos poucos de que se poderia esperar a regeneração espiritual do Ocidente decaído. Tenho fé em você e respeito pelo cristianismo ocidental, ainda que a ele se oponha teologicamente. Só que, como disse, sou bem escroto na forma de me expressar, ás vezes, e isso pode passar uma imagem deturpada de mim mesmo. Sempre um prazer falar contigo!
Um presente de cortesia, de uma cismático

: