Essa questão do 'corpo' de Eru acabou surgindo naturalmente
nessa discussão; que na realidade envolvia a (falta de) literalidade do que é relatado no Ainulindalë, especialmente na questão da temporalidade: há uma descrição temporal dos eventos, enquanto é dito que o espaço e tempo existe apenas em Eä.
Essa discussão pode remeter a mitologia grega, onde Cronos, o Tempo, nasce de Urano e Gaia, após alguns fatos (como o nascimento de Urano, que era filho de Gaia). Nós da atualidade, podemos apreciar a história como mera fantasia, coerente dentro de si mesma, ou como uma visão de certa forma incoerente dos gregos a respeito de fatos que não compreendiam.
Em Tolkien, podemos interpretar o Ainulindalë dessas duas formas: como um fato do legendário coerente em si mesmo (assim como é fato dentro do legendário que Fëanor criou as silmarilli, ou que os ainur moldaram o mundo), ou uma visão ingênua que os elfos realmente levavam a sério.
Porém, há uma terceira opção: que tratam-se de uma visão poética, e não exatamente ingênua, de fatos que os elfos não compreendiam - o que tem sido dito até aqui. Isto é, os elfos, não podendo conhecer e racionalizar fatos além do Tempo, optaram por uma linguagem mítica e poética para descrever limitadamente esses fatos.
Quem realizou isso foi Ferécides de Siros, figura ligada aos filósofos jônicos (Tales, Anaximandro, Anaximenes), quando a filosofia começava a se afirmar - é visto, muitas vezes, como uma ponte entre o misticismo e a filosofia, pois, a partir de uma teogonia (como a de Hesíodo) introduz idéias filosóficas. Ele coloca, por exemplo, Chronos (o Tempo - esse Chronos não é o titã e ganha um H) como um deus primordial, que juntamente com Ctônia e Zás (matéria e "princípio motor"), existiram sempre e nunca nasceram. Os órficos também fazem algo semelhante, colocando Adrastéia (a Necessidade) e Chronos como as divindades primordiais. Sendo relatos (semi-)filosóficos, não tinham tanta popularidade se comparado a Hesíodo por exemplo.
Talvez o Ainulindalë seja desse tipo, afinal, ele mesmo traz que o início dos tempos é em Eä enquanto descreve temporalmente os fatos, ou que Eru tem mão enquanto os ainur só assumiram corpos em Eä - ele ousa descrever poeticamente aquilo que, dentro do próprio escrito, pode ser visto como licença poética. Na série HoME, o autor de Ainulindalë é apenas um: Rúmil de Tirion, o que beneficia essa visão, pois há espaço para um conteúdo mais filosófico ou mais racional, o que não aconteceria se fosse um escrito formado pelo imaginário coletivo de um povo. Além disso, os elfos de Tirion estavam muito longe de indivíduos "primitivos", poderiam criar visões mais racionais de mundo (mesmo porque tinham influência dos criadores do mundo que estavam ali do lado), embora não necessariamente filosófica. Teria sido Rúmil, através de relatos (diretos ou indiretos) dos ainur que fizera um retrato poético do que fora o Ainulindalë, dentro das limitações de sua mente que não concebe o não-espaço e o não-tempo.