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A cadela e o moribundo

Haleth

Sweet dreams
Já não tinha rumo porque não sabia onde o sol se punha. Para ele era sempre meio-dia, um meio-dia quente, abafado, que torrava a paciência e deixava as cinzas no emaranhado do cabelo.

O fluir da cidade já era indiferente para ele, como eram antigamente as trilhas das formigas que vez ou outra lhe picavam o pé. Mas agora estava velho, fraco, alérgico, quase anafilático. Remediava-se com gelo para não morrer com as ferroadas que a cidade lhe cravava.

Foi então que uma cadela surgiu em sua miséria. Ele não saberia dizer quando, pois ninguém dá valor ao tempo enquanto não é tragado pelas sombras. Lembrava apenas dos contornos do lugar: uma rua comum que o abrigava durante a siesta de seu eterno meio-dia. Na ocasião, sonhava com os pássaros de seu passado, quando uma bicicleta trombou nele. Abrindo os olhos, viu a cadela. Ela latia raivosamente para os fones de ouvido que guiavam as duas rodas.

Gostaria de dizer que "a partir daí começaram a conviver", mas seria mentira, porque ela era infiel. Assim como vinha, ia-se, sem porquês, sem prazos e sem promessas. Dedicava a ele uma parcela de seu tempo e então partia, silenciosa. Entretanto, ele não podia cobrar nada. Bem sabia que apesar de ser sua, aquela cadela não lhe pertencia.

Assim os carros passavam, as lixeiras se abriam, os vidros se fechavam, e ele soube que iria morrer. O sol fustigante já lhe havia escurecido a pele, os olhos e o futuro, transformado as roupas em peso e as feridas em chagas. A cadela estava com ele.

A propósito, desde que o gelo acabara, a cadela não mais partia. Teriam se tornado enfim, amigos? Pertenceriam um ao outro agora? Sentiria ela compaixão? Ou seria uma simples coincidência? Isso já pouco importava, ele estava morrendo. Suas feridas sangravam e não tinha mais gelo, estava à mercê de uma cadela infiel.

Foi quando, em seus últimos suspiros, viu a cadela levantar-se e se aproximar dele. Sentiu algo úmido deslizar sobre seu rosto repetidamente, e em suas mãos, e em seu peito. Então teve a certeza de que saía da vida levando ao menos um acerto, porque soube escolher muito bem o nome da cadela.

E assim morreu, com Saudade a lamber-lhe as feridas.
 
Esse me faz lembrar contos russos cheios de compaixão, impregnados de coisas vivas. Adoro ler as coisas que você escreve.
 
Fico especulando sobre a idade do narrador-protagonista e sua doença. A cadela causou o acidente com a bicicleta ou foi ela que deu um sermão sobre o perigo de usar o celular na direção de automóveis adaptado a bicicletas?

E quanto ao tempo de duração da história? Gelo é água congelada. Duh! O estoque do gelo não acabaria tão facilmente, a não ser que o cidadão não pague suas contas em dia. O INSS é mesmo uma mãe do povo, mãe joana, mãe de muitos miseráveis.

Ok, se o gelo derreteu numa mínima tarde, não houve muito tempo para a cadela ser infiel. Pensei num relacionamento duradouro, com muitas escapulidas e puladas de cerca, avançando semáforos. E, caso esse relacionamento liberal tenha durado uma única tarde... mas que morte desesperadora! O cara morre sozinho pensando numa cadela que só lambeu a cara dele porque estava com sede!

Essa daughter of a bitch não deveria se chamar Saudade, mas Desesperança!
 
Bacana Manu. Muito bom , e bonito, seu texto.
Achei fascinante esse sentimento de abandono; uma história que ocorre às escondidas do mundo; como uma criança que, numa brincadeira de esconder, acaba adormecendo sem perceber que não a estão procurando mais.

Abraços
 
Manu, vc arrasa, lindo lindo.
Entendi que era um relacionamento duradouro de quase três estações, e ela não partia por ser infiel, mas para se proteger da neve em algum lugar e logo que não precisou mais dessa proteção passou a ficar todo o tempo com ele. Ele a taxava de infiel por já ter sido muito abandonado e estar entregue e resignado a solidão. Mas no fim, não estava sozinho, ela era fiel e estava lá, tocando-o, acarinhando-o, tentando dizer que ele não precisava temer o final, que não estava sozinho.
 

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