Sempre que um novo filme da série (não, não é “saga”)
Crepúsculo entra em cartaz, as fãs da subescritora Stephenie Meyer protestam contra as críticas negativas afirmando que “bastaria ler o livro” para compreender melhor a riqueza dos filmes. Não que o argumento “não gostou do filme porque não leu o livro” seja exclusividade das crepusculetes, mas é inevitável constatar a frequência com que esta “defesa” é usada pelas inconformadas garotas. Ora, o que elas parecem não entender é que Cinema e Literatura são artes distintas que exigem estrutura, linguagem e tratamento próprios – e qualquer filme que tente se ater excessivamente ao material original estará fadado ao fracasso, gerando uma narrativa sem ritmo, prolixa e provavelmente confusa.
A boa adaptação é aquela que respeita o livro que a inspirou sem tratá-lo como um material sagrado, intocável. E qualquer obra baseada em outra pré-existente que só funcione se já tivermos conferido a original é, por definição, um fracasso artístico.
Tomemos, como exemplo de um bom trabalho de adaptação,
Os Homens que Não Amavam as Mulheres:em meu texto sobre o filme, comentei que não havia sentido vontade alguma de ler a trilogia de Stieg Larsson após conferir o longa sueco por ela inspirado, mas que isto mudara após assistir à versão de David Fincher – e, de fato, nos últimos dois dias devorei a primeira parte da trilogia. Não é um grande livro e Larsson, como escritor, tropeça em alguns elementos estruturais e, principalmente, em seus diálogos que oscilam entre o óbvio e o expositivo, mas é uma narrativa envolvente e beneficiada pela excelente concepção da personagem Lisbeth Salander. No entanto, o que me chamou particularmente a atenção e que pretendo discutir aqui é o excepcional trabalho de adaptação feito por Steve Zaillian, que cumpre exatamente a função que descrevi acima: respeita o texto de Larsson e suas ideias, mas não hesita em fazer algumas alterações radicais ao transpô-lo para o Cinema.
Analisemos, num primeiro momento, a estrutura básica do livro (
e, claro, sugiro que quem não leu o livro ou viu o filme interrompa aqui a leitura, pois comentarei detalhes da trama):
1) Prólogo – Henrik Vanger recebe o quadro e liga para alguém.
2) Somos apresentados ao herói, Mikael, que enfrenta problemas legais em função de uma matéria que escreveu.
3) Somos apresentados a Lisbeth Salander e descobrimos que é introspectiva, mas brilhante investigadora.
4) Mikael é contratado por Henrik e o mistério de Harriet é apresentado.
5) Mikael inicia suas investigações e conhecemos os suspeitos da família Vanger. Ele se envolve com Cecilia Vanger. Passa dois meses na cadeia.
6) Lisbeth enfrenta e resolve seus problemas com o novo tutor. Também descobrimos que sua mãe está em um asilo.
7) Mikael descobre a ligação bíblica por trás dos crimes e os Vanger passam a fazer parte da revista Millennium.
8) Lisbeth é contratada para ajudá-lo e os dois personagens principais finalmente se encontram.
9) A investigação avança e Lisbeth e Mikael se envolvem.
10) Mikael sofre um atentado e descobre o gato morto diante da casa.
11) Depois de ver as fotos da turista e de Gunnar, Mikael avança em suas conclusões.
12) Os assassinatos são resolvidos.
13) Mikael e Lisbeth usam Anita Vangler para chegarem à Harriet. Mikael vai para a Austrália e a mãe de Lisbeth morre.
14) Mikael traz Harriet de volta e esta assume o controle das empresas Vanger.
15) Lisbeth oferece vasto material sobre Wenneström para Mikael, que se recolhe por meses em sua cabana para escrever. Lisbeth o acompanha.
16) Um informante é descoberto dentro da revista Millennium. Com um dos sócios, Mikael planeja uma estratégia para enganar Wenneström.
17) Uma edição especial da revista é publicada ao lado de um livro. A imprensa repercute as denúncias. Wennerström foge.
18) Lisbeth rouba boa parte da fortuna de Wenneström.
19) Lisbeth se descobre apaixonada por Mikael e decide se declarar.
20) Mikael e Erika são vistos por Lisbeth, que se afasta.
Analisando rapidamente estes principais pontos estruturais da trama, é fácil perceber que Steve Zaillian foi bastante fiel ao texto de Larsson, do prólogo ao desfecho. No entanto, como um bom roteirista, não hesitou em descartar personagens importantes no livro, condensar outros e alterar até mesmo revelações cruciais a fim de criar uma narrativa mais fluida e ritmada:
1) A mãe de Lisbeth é descartada. Em vez disso, Zaillian usa o ex-tutor da moça para exercer a função de humanizá-la e demonstrar que é capaz de afeto e calor humano, ganhando tempo também ao não ter que explicar para o espectador as circunstâncias do relacionamento de Lisbeth com dois personagens diferentes.
2) O envolvimento com Cecilia Vanger é descartado. Além de completamente desnecessário (ele é obviamente incluído no livro apenas para criar um conflito entre a descoberta da foto, que parece implicar Cecilia, e o carinho que Mikael sente por esta), este envolvimento representaria o
terceiro de Mikael no filme – e se ao longo de 400 e tantas páginas isto não incomoda, ver o herói transando com três mulheres diferentes em menos de duas horas seria, no mínimo, uma distração descartável.
3) A primeira transa de Lisbeth e Mikael é adiada. No livro, Lisbeth reflete e decide racionalmente ir para a cama com o jornalista. No entanto, ilustrar para o espectador a lógica interna da moça seria difícil sem um diálogo expositivo ou um
off (ambos recursos geralmente pedestres) e simplesmente colocá-la na cama com o companheiro soaria arbitrário. Ao mover a transa para logo depois do atentado a Mikael, Zaillian cria um fator motivador para o sexo, que surge mais natural (mesmo que, para isso, ele seja obrigado a mostrar Lisbeth costurando Mikael em vez de levá-lo para o hospital, o que é meio implausível. Dos males, porém, o menor.).
4) Gunnar e Harald são condensados. No livro, Harald é um ex-nazista decrépito e Gunnar se encontra morto há anos. Para ver as fotos tiradas por este durante o acidente em 1966, Mikael é obrigado a recorrer ao filho do sujeito, que busca as caixas e as entrega para o jornalista. Tudo isto consumiria tempo excessivo de tela (e resumir 400 e tantas páginas do livro em 160 de roteiro é uma tarefa considerável) e, assim, Mikael visita a casa de Harold, que se transforma no fotógrafo responsável pelos retratos que o sujeito busca. Com isso, somos apresentados ao ex-nazista e temos acesso às fotos em uma única cena. Solução econômica e elegante.
5) A subtrama envolvendo o jornalista infiltrado na Millennium é descartada. Já sabemos que Wennerström é inescrupuloso e que a revista encontra-se com problemas. Gastar um longo tempo de projeção com as discussões acerca do “espião” e das estratégias para enganá-lo seria puro desperdício.
6) O sócio de Erika e Mikael é descartado. Além de representar economia de tempo, esta decisão estreita a relação profissional entre o casal, o que é fundamental em uma narrativa que tem apenas duas horas e meia para estabelecer a dinâmica entre vários personagens.
7) Todos os incidentes envolvendo Mikael e os habitantes da cidadezinha na qual passa a morar são descartados: seu flerte distante com a dona do café Susanne, a matéria difamatória publicada no jornal local e a investigação do ex-pároco da vila. Mais uma vez, tudo isto consumiria tempo excessivo e nada acrescentaria à narrativa.
8) A conversa entre Mikael e Martin no porão é expandida. Isto é fundamental para que conheçamos as motivações do vilão (que no livro são explicadas em longas passagens dissertativas) e para ressaltar a tensão da cena.
9) As passagens de Mikael pela prisão e pela cabana, onde permanece meses escrevendo, são descartadas. Nem é preciso esforço para compreender por que Zaillian as considera descartáveis.
10) A resolução do mistério de Harriet é alterado: Anita agora está morta e Harriet, em vez de viver na Austrália, assumiu o lugar da prima – e é preciso aplaudir a coragem do roteirista ao fazer a alteração mais arriscada do projeto, que poderia provocar a ira dos fãs e enfraquecer o filme. O fato, porém, é que Zaillian mais uma vez está correto: incluir Anita representaria introduzir mais um personagem e mais uma etapa na investigação de Mikael. Eliminando-a, Zaillian se vê livre destes dois empecilhos e pode encerrar o mistério bem mais rapidamente: em vez de ir à Austrália, Mikael já encontra Harriet no lugar da prima, o que também elimina a necessidade de explicar que esta não se casou para que Harriet pudesse usar sua identidade e passaporte. Mais importante, porém, é que ao condensar as duas personagens e levar Mikael a visitar Anita no meio da projeção (algo que não acontece no livro), Zaillian evita apresentar Harriet apenas no final do filme, já que normalmente é deselegante, do ponto de vista narrativo, introduzir uma nova figura importante já no terceiro ato. Além disso, o roteirista leva o espectador a sentir a satisfação de perceber que a pista para o mistério principal do longa havia sido plantada bem antes e que já havíamos visto Harriet, o que elimina qualquer risco de sentirmos certa arbitrariedade na solução.
11) As repercussões da volta de Harriet dentro da família Vanger e das empresas do grupo são descartadas, já que o que nos interessa no filme é a história de Lisbeth e Mikael, não daquelas pessoas.
12) Um elemento importante do passado de Lisbeth é exposto no filme, embora seja apenas sugerido no livro. Isto é usado por Zaillian para estreitar os laços entre os dois, já que aqui não podemos contar com os monólogos internos de Lisbeth que expõem sua aproximação cada vez maior do jornalista. Além disso, ajuda a explicar um pouco melhor a pesonalidade da garota. Não era estritamente necessário, fazer isso, mas tampouco atrapalha.
Analisadas as principais alterações e o papel que desempenham na narrativa do filme, é importante repetir que, apesar delas, Zaillian se mantém bastante fiel ao centro do livro e à sua estrutura. Assim, é lamentável que não tenha sido indicado ao Oscar por seu trabalho, sendo substituído pelo medíocre roteiro de
Os Descendentes, mas ao menos está representado no igualmente eficiente
O Homem que Mudou o Jogo.
Resta agora torcer para que as crepusculetes entendam a diferença entre Cinema e Literatura. Ou melhor: para que descubram que Literatura existe.