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[L] John vai para o Inferno

Urso Sentado

Usuário
Olá. Meu nome é Johnathan K. Arnoldville e estou escrevendo da Da Nang infernal. Atualmente tenho 785 anos e já cumpri 752 anos dos cerca de dez mil anos que estou pagando pelos meus pecados. Escrevo isto como um diário e como um confessionário que pretendo enviar lá para cima, para a Terra mortal. Espero que um dia isto chegue ao mundo mortal lá na Terra, mas não quero que isto vire uma nova Bíblia ou um Mais um Novo Testamento. Quero que isto apenas seja um "Manual de como ficar menos Aqui" ou algo assim. Algo muito pretencionista (já que posso perder isto daqui a alguns segundos), mas só de pensar que isto um dia chegará em mãos mortais me anima. Espero que Deus seja mais distraído do que imagino.

O Inferno é algo completamente diferente do Inferno que os padres pregam lá em cima. É pior. Estou há 752 anos nesta merda de guerra que nunca vai acabar, segundo o tenente Jefferson (Deus o tenha), e que logo, estarei caminhando novamente com meu Pai. Não é nada fácil, já que qualquer mancada que damos aqui "ganhamos" anos a mais na nossa pena. É algo realmente assustador: Se eu praguejo em nome do Senhor, recebo duas semanas à mais na "pena", se mato uma mulher eu recebo 15 anos a mais de pena, se mato uma criança, ganho mais 50. Matar um homem em campo é a unica coisa que podemos fazer aqui, já que este não dá tanto tempo à nossa vida aqui, apenas alguns meses. Aliás, não existe mais a palavra morte por aqui. É só como chamamos os homens feridos o suficiente para não voltarem nos próximos seis ou sete meses. Já estamos mortos! O fato é que, se recebemos um tiro mortal na cabeça, por exemplo, simplesmente não morremos. Sentimos dor pra cacete. E essa dor só sara depois de alguns meses na enfermaria aqui do quartel. É uma dor lascerante, combinado aos vermes e fungos que este lugar nojento sempre tem. Tomei uma bala de AK-47 na têmpora há alguns dias atrás e até agora não consigo escutar nada do lado direito, e o médico disse que isso vai demorar pra sarar, pois estou com febre amarela também. A dor é imensa, e escrever é a unica coisa que me faz superar um pouco esta dor. E nem sei como estou conseguindo escrever tanto, já que geralmente meus lapis explodem ou o papel pega fogo. Não somos permitidos à ter prazeres aqui. Sempre que pensamos que vamos ter um pouco de frescor no Inferno, ele logo é extraído de nós e ficamos mais nervosos por isso. Deus é sádico, mas Satanás consegue ser mais ainda. Outro dia eu queria comer uma nativa, mas ela tinha uma armadilha lá dentro e meu pênis foi decepado. Não me arrependo dos 15 anos a mais na pena. E se vê-la de novo por aí, a "matarei" mais uma vez. Perdi meu pinto no Inferno por causa dela, cacete.

De qualquer forma, o que farei aqui é um relato mais ou menos preciso da minha vida terrena até os dias de hoje, mostrando os caminhos que levam até Deus e como ele me mandou pra cá. É irônico. Não vamos direto para o Céu se formos boas pessoas. Sempre cometemos um pecado ou dois na vida e temos que pagar por eles aqui no Inferno. O que torna as pessoas boas é o tempo passado aqui, e não lá em cima. Lá é só um "teste" para ver se somos decentes o suficiente para andar ao lado do Pai em menos tempo. As penas neste lugar são exageradamente grandes. Conheci um "china" que está aqui há dois mil e setecentos anos por ter matado oitenta e cinco crianças num genocídio próximo da China, pelo exército mongol. O cara está desde o Império Mongol aqui por ter matado crianças! Ele me disse que está pagando dezoito mil anos, segundo seus cálculos. Me pergunto o que fiz para merecer dez mil. Aliás eu até sei, já que Deus me deu os registros da minha vida e pude constar que fui um péssimo homem lá em cima.

Se um dia vocês mortais lerem isto, por favor, não cometam mais pecados. Vocês não vão gostar daqui.

[continua]
 
Re: John vai para o Inferno

I: Resumo da minha vida e como fui um grande pecador

Fui um cara muito mau. Cometi crimes contra as pessoas e fiz coisas que muita gente pegaria a pena de morte ou perpétua, mas ao invés disso o juiz resolveu me mandar para o Vietnã, para ser executado lá mais rapidamente por um comunista. A lei terrena é injusta, notei isso depois que vim pra cá. Os crimes que cometi lá foram muitos, o que, todos somados, me deram dez mil, duzentos e quarenta e dois anos, dez meses, vinte e dois dias e sete horas "queimando" no Inferno. Lá na terra eu pegaria uns oitenta ou a pena de morte. A morte, lá, é mais um privilégio do que uma punição.

Viver naquele mundo não é nada fácil, cara. Somos sujeitos à todos os tipos de crimes e "pecados" (sempre coloco "pecado" em aspas por discordar do que é "pecado" segundo Deus, o que O deixou muito puto quando argumentei contra Ele). Segundo um cara que li uma vez, não é a gente que nasce mau. É a sociedade que nos deixa maus. E é exatamente isso em que acredito. Tanto aqui como lá somos cercados por filhos da puta egoístas e safados. Todos pensamos só na porra do nosso umbigo e quase ignoramos os direitos e sentimentos dos outros. Eu sei muito bem disso por que aqui no Inferno é proibido ter laços afetivos com os outros. Se eu me aproximo demais de alguem, este alguem desaparece e não aparece nunca mais, ou é capturado pelos "chinas" e fica sofrendo num buraco até o fim de sua pena. Então aqui somos propensos à sermos completos covardes, egoístas e cuzões. Mas ser egoísta aqui é pecado, então, pra evitarmos um aumento da pena temos que ser solidarios até certo ponto, senão podemos perder quem estamos tentando ajudar. É foda.

Nasci em Knoxville, Tennessee. Cresci em meados dos anos 40 e 50, numa charneca com meu pai, já que minha mãe morreu quando era bem pequeno (dizem que ela foi assassinada pelo meu próprio pai, mas ja ouvi falar que ela uma prostituta e morreu de alguma doença venérea), e fui criado praticamente pelo meu pai. Mas as ruas me ensinaram mais do que ele. Como meu pai nunca estava em casa, ou, quando estava, estava bêbado demais pra conversar, eu vivia na rua, brincando com meus "amigos"... Até uns doze anos eu me considerava um garoto normal, sem maldade ou malícia, quase um idiota, pois era bastante ingênuo.

Uma vez um rapaz um pouco mais velho que eu me chamou para irmos no banheiro, por que, segundo ele, eu precisava mijar. Quando abaixei a calça para começar, senti que ele esfregava o pinto na minha bunda, e, num acesso de raiva ou medo, me virei e soquei as bolinhas dele, saindo correndo logo em seguida. Foi a única e a ultima vez que alguem me assediou. Desde então era eu quem assediava as pessoas.

Durante minha meninice, cometi poucos "pecados", como roubar doces dos menores e jogar pedras nas vidraças dos vizinhos, ou nas pessoas mesmo. Só do meu nascimento até meus treze, quatorze anos, já tinha uns trinta anos de "penitência" no Inferno, segundo os registros.

Depois dos quatorze é que comecei a "aumentar" minha pena. Foi nessa idade que me ensinaram a fumar (cada cigarro subtrai um dia da sua vida, e aumenta dois na pena), a roubar (roubo pequeno: seis meses a mais; roubo à mão armada: um ano a mais; roubo grande, como um assalto à bancos ou seguido de morte: três anos, mais a pena por cada morte) e a fumar maconha (isso não da pena nenhuma, mas se eu fico doidão a ponto de cometer "pecados", isso acrescenta uns anos a mais). Roubava os outros para comprar roupas, comida e maconha, mas até os dezenove não matei ninguém, pois era contra meus "princípios". Nunca tive uma educação religiosa ou moral; meu pai era veterano de guerra e vivia falando como matava os japas ou como perdeu os joelhos numa ilha do Pacífico. Meu pai tinha 1,23m de altura, pois as canelas foram arrancadas por um metralhador japonês, mas ele consegue a proeza de andar sobre os joelhos, colocando uns sapatos neles. É algo realmente engraçado, mas ele fica putíssimo quando comentamos ou fazemos piadas sobre. Ele bebia demais, e quando bebia ficava agressivo e incompreensível, praticamente outra pessoa. Seu nome era Jeorge, aliás. Não falava muita coisa sobre o passado dele, ou como meus avôs eram, ele não falava nada sobre nada, raramente falava de mamãe ou sobre algo que ele não gostaria de se lembrar. Pelo que notava, ele também teve um passado ruim. Mas nunca o encontrei aqui no Inferno, ele provavelmente está vivendo o dia em que perdeu as pernas eternamente, ou algo assim.

Quando chegava da escola (ou da rua, pois raramente ia estudar), meu pai não estava ou estava dormindo, trêbado. Então raramente conversávamos, e quando isso acontecia, era para discutir ou brigar, pois ele era um babaca, e eu também. Uma vez cheguei em casa cheirando à maconha, e meu pai começou a berrar coisas como "você precisa lutar pelo seu país pra entender por que não pode torrar sua grana com drogas ou cigarros" e outras frases-feitas sobre patriotismo, moral e honra. E foi numa dessas brigas que resolvi sair de casa, para nunca mais voltar (abandonar alguem necessitado: dez anos na pena).

Nunca amei meu país e nunca tive motivos para isso. Morava num barraco no meio do nada, cercado de gangues, retardados patriotas e moleques viciados, garotas fúteis ou românticas e caras nos dando panfletos sobre "Ser tudo o que desejássemos ser"... e foi num desses caras que me interessei por armas. Um deles me arrumou um revólver por duzendos paus e com ele eu sustentava minha vida.

Dos dezessete aos vinte e três anos vivi como um verdadeiro desgraçado. Só sabia roubar, vender drogas e destruir pessoas. Foi nessa época, pelo que li no registro, que ganhei três mil dos dez mil anos que estou pagando aqui. A lista de crimes, "pecados" e outras cretinices é imensa demais para listar, mas resumidamente vivia roubando carros para sustentar meu vício, e com o que sobrava eu vendia para ter mais grana. Meu amigo Victor me ensinou tudo que aprendi e me protegeu de tudo, era mais velho e tinha uns duzentos quilos, barba grande e bagunçada, como seus cabelos. Usava óculos e costumava ser um daqueles nerds que apanhavam na escola, mas quando abandonou ela resolveu vender armas e drogas para os mesmos caras que o perturbavam.

-Dar armas à idiotas como eles para se matarem entre si é o melhor meio de sustento que encontrei na minha vida - Dizia ele.

Certo dia ele me ensinou como funcionava uma pistola semi-automática e a troquei pelo meu velho revolver do exército, dando mais cem pratas ao Vic. Era uma Colt 1911, a mesma que futuramente usaria no Vietnã, e com ela aprendi a atirar como gente.

Certo dia de "trabalho", vi um belo Chevi Nova 65 estacionado numa viela, era uma daquelas vielas ermas que dava numa vila sem saída. Era um fim de tarde abafado e notei os vidros abertos. Me aproximei devagar, com a arma em punho, e notei que havia alguem lá dentro. Avancei mais rapido apontando a arma para a pessoa. Ela já estava morta, era uma ruivinha nos seus dezessete, dezenove anos. Ou estava quase morta, notei que ela suava, e a seringa no braço... cutuquei ela com a arma e ela não se moveu, então rapidamente a puxei para fora e comecei a dar a partida no carro. Segundos depois, já dando ré, um negro enorme pulou em mim e me arrancou para fora. Começamos a brigar e nem notamos que o Chevy Nova entrou na avenida, batendo em uma van, que bateu em um ônibus, que capotou mais à frente. Rolamos até a saída da viela e consegui pegar minha arma de volta. Tive que descarregar o pente no creoulo para pará-lo. Corri de volta para a avenida e vi a cena de destruição que o carro causou: havia sangue pra todo lado e pessoas correndo para lá e para cá, com a van em chamas e um rapaz de uns 17 anos saltando feito louco para se apagar. Alguém me puxou quando ia dobrar a esquina oposta ao acidente e me derrubou contra um poste, batendo de cabeça. Só acordei na delegacia.

Eu tava acabado. A sova do negro e a cabeçada no poste de metal me deixaram num estado de torpor. Ou era alguma coisa que me deram para aliviar a dor. Mas nem o suposto remédio me fez acabar com as dores dos tabefes que ia levando do policial, o O'Reilly, que me batia como uma vagabunda no cio. Me informava, entre tapas e socos, que tinha matado 42 pessoas, sete mulheres e vinte e duas crianças.
 
Re: John vai para o Inferno

II: Renée, o julgamento, a prisão e a punição

Os dias na cadeia passaram de uma maneira devagar e estranha. Meus companheiros de cela tentavam me apoiar, mas eles - e toda a prisão, sabiam o motivo d'eu estar lá. Apanhava quase todos os dias e falavam que eu ia morrer antes de chegar na penitenciária, mas consegui sobreviver. Um dos meus companheiros (que posso chamar até de amigo), o Dan, cuidava de meus ferimentos e falava sobre Deus e Jesus e Maria. Foi lá que aprendi o que é Céu, Inferno e Apocalipse. Até o Dan ficava puto quando eu retrucava que Deus não existia, e que o Inferno era aonde nasci e é para onde voltaria, quando saísse daquele lugar.

-Irmão, você está aqui por que pecou e por que precisa pagar... - vivia me dizendo.

-Cara, eu não fiz nada de errado. O Chevy daquele creoulo que desceu a rua e matou todo mundo!

-John, sabe o que acontece? Você não matou o negro com a arma que não estava com as suas digitais, não matou a viciada, não matou as crianças e todo mundo que estava naquele ônibus escolar. Você só estava lá, não é? - berrava Luiz, que dormia na parte de cima da beliche - Você só teve o fantástico azar de estar lá na hora errada. Desista, cara! Você pode falar que se arrependeu de ser um criminoso e tentar perpétua, o que é impossível, já que metade do mundo sabe quem é você e que vai tentar te matar antes de pagar dois meses na solitária!

-Velho - retruquei - eu não me arrependo de nada por que eu não matei toda aquela gente! Eu só atirei no negro e a viciada era a mulher dele! O cara saiu do carro para buscar alguma coisa, um saco preto ou um pouco de adrenalina, sei lá, pra se livrar da namorada! Eu ia roubar o carro, ia jogar a doidona num rio, e vende-lo por uns quatrocentos dólares!

-Cara, se você mentir tão bem quanto mentiu agora, vai pegar semi-aberto fácil! - Luiz se divertia, enquanto Dan ficava calado, observando-me.

Quando Pereira ia me visitar, dizia que poderia conseguir uma pena menor se alegasse a culpa e pedisse perdão à todos os parentes e amigos das vitimas, me oferecesse para trabalhar para o governo e chorasse na hora do tribunal. Mas eu só chorava quando Renée vinha me ver, de vez em quando.

Aliás, não comentei sobre ela ainda. Ela foi minha ultima namorada antes de morrer. Foi ela que tentou me tirar daquela vida e me colocar em outra. Foi ela que me viu completamente sozinho, fodido e sujo quando eu mais precisava caminhar. Renée foi a única mulher que realmente amei, e nunca mais toquei nela quando me prenderam. Eu chorava por não conseguir enconstar em nada a não ser seus pequenos dedos. Sabe quando caíamos do balanço e mamãe vinha nos pegar para passar merthiolate? Renée foi aquela mulher que passava o merthiolate e e soprava a feridinha... Ela era branca, de cabelos morenos, sempre curtinhos, um pouco mais baixa que eu e tinha os olhos mais lindos que tive a oportunidade de ver naquele mundo. A conheci quando tinha uns quinze ou dezesseis anos, um pouco antes de sair da escola. Ela veio de outra cidade na Califórnia e só notei que ela se sentou atrás de mim quando parei de olhar para a porta, daonde entrou. Foi atração física à primeira vista, pois depois que a conheci de verdade é que a amei.

Andávamos juntos quase todos os dias, quando a mãe dela não ia buscá-la ou quando não precisava levar o irmão para a escola, que ficava meio longe de tudo. Ela morava umas quinze quadras de casa, e a levava sempre que a mãe dela não aparecia ou quando ela estava de bom humor. A sra. Cunha era uma boa pessoa, mesmo me achando um completo inútil e me lembrando disso todos os dias para Renée. Ambas foram criadas na cidade de Jacksonville, e Renée era muito assediada pelos meninos da escola, como sua mãe foi, e por esse motivo (e mais alguns que Renée nunca falou) viajaram pela América até chegarem em Knoxville. Supostamente seria mais um lugar onde eles apenas passariam, para irem para outro lugar temporariamente, mas ficaram lá até minha morte. Infelizmente não sei aonde nenhum dos três estão. Mas acho que Renée, seu irmão e sua mãe já foram para o Céu. Nunca soube do pai dela, mas ele aparecia de vez em quando para visitá-los.

Renée foi a única que nunca tive ódio, pena ou desejos selvagens. Ela era a moreninha que me visitava todos os dias e me dizia para arrumar logo "aquele emprego" legal no shopping, que eu sempre falava que queria ter, ou se o gerente da locadora de carros tinha me ligado. Nunca contei a ela que roubava, mas não era necessário, ela sabia desde que me viu pela primeira vez. Também deveria saber que eu nunca procurava outro emprego. Aquilo que fazia me sustentava e certamente sabia que eu só sairia daquele "emprego" quando viesse para cá.

-Acorda, John. Você sabe que não vai mais ver ela - Pereira era minha voz da razão - e ela me pediu para te entregar isso - Me passou uma carta num envelope todo branco, o que já me deixou nervoso.

-Deve ser a última que receberei aqui. Depois irei pro julgamento. Valeu.

Guardei o envelope e voltei pra minha cela. Não estava muito animado em abrir a carta, mas como era da Renée, abri-o com cuidado e vi que não havia desenhos, fotos ou outras coisas que vinham quando ela escrevia. Inicialmente imaginei que ela deveria estar com pressa ou sabia que depois iria parar noutro estado. Mas era a ultima carta mesmo.

"John; (saquei de vez que ela queria me deixar)

Antes de qualquer coisa, eu queria te pedir desculpas pela demora da resposta... bem... ah... isso é tão difícil (está usando a outra mão para que, vadia?)... mas durante esse tempo de "espera" (duas semanas) eu andei refletindo aqui (não sabia que refletir significava o mesmo que esquecer do corno na cadeia)... pensei muito mesmo... e, como eu não quero chegar a conclusões precipitadas eu decidi que... Ah, John... puxa... você me fez sentir não mais só (os outros caras não preenchiam tudo aquilo?), mesmo estando longe (cacete, eu to preso a menos de dois meses!), você sempre esteve lá para mim... e me senti feliz em poder "te ajudar" (a ir preso, a perder a virgindade ou a largar os estudos?), de uma maneira ou de outra (é, a primeira vez a gente nunca esquece mesmo, nem você)... Bem, eu sei que deve estar sendo difícil para você ler toda essa enrolação (que nada, a privada é um bom assento)... mas muito mais pra mim (nem quero pensar aonde você ta sentada)... eu (você?)... queria te pedir um tempo pra eu poder refletir melhor (me esquecer de vez) e com mais cuidado sobre o que estou sentido (está doendo por que ele deve ter sífilis)... sabe, estou muito confusa... muito mesmo... você nem faz idéia de como está minha cabeça... Eu estou sofrendo muito com isso tudo (eu to levando de boa, ja sei com o que vou limpar minha bunda depois)... você nem faz idéia de como está minha cabeça (a minha está suada, dolorida e com duas coisas pontudas estranhas saindo da testa)... Eu estou sofrendo muito com isso tudo... apesar do lado bom (ninguem quer mostrar pro mundo que morou com um condenado, essa eu entendi), eu também estou sentindo o lado ruim disso tudo (lado ruim? Espere até eu te pegar)... olha, a distância é muito foda... muito mesmo.

Porra... eu odeio esse tipo de coisa... ODEIO (juro que eu não pensei em uma ironia engraçada pra por aqui)! Mas... eu sinto necessidade desse "tempo" (espero que tenha sentido essa necessitade pelo resto de sua maldita vida)... e gostaria que você me entendesse (na sua situação, eu escreveria algo como "Te troquei pelo zelador, vá a merda")... tá, eu sei que não da para entender... mas, por favor, apenas tente (JURO que tentei, JURO)! Olha, ainda estou super afim de continuar (eu não, quero que a carta termine logo pois ja terminei de cagar), quer dizer, começar a desenhar a nossa história, o Apocalypsis (perdeu, este livro não vai ter "agradecimentos" ou uma dedicatória com seu nome)... se bem que não é hora de falar nisso... (sim, voltemos quando você dizia que me amava de joelhos, dizia que gostava de quando massageava seus pés ou quando você simplesmente me deletou de sua vida) não... não foi nada que você disse (claro, eu matei quarenta e duas pessoas, por que eu diria que fiz isso pra você?) para eu tomar essa decisão tão brusca (óbvia)... Olha, John... não quero que você me ligue (por favor, me ligue)... até mesmo porque eu não ia conseguir falar pelo telefone (nem ao telefone consegue dar um tempo pro Ricardão?)...

Porra... você não sabe como me doeu ler a sua ultima carta (minha letra é horrível)... eu estava até sem coragem para abri-la (por isso mandou essa, sua vingadora pistoleira?)... estou me sentindo um monstro (e olha que precisei matar dezenas de pessoas pra merecer este título, eh?)... depois de tudo que eu te falei... é lógico... ainda não esqueci todo aquele sentimento... bom... mas é apenas um tempo que estou pedindo (quer ter certeza se ele é melhor na cama do que eu)... não sei se você concorda com esse negócio de tempo... imagino que não (minha querida, eu estou há quase um milênio no Inferno, acredite, eu sei)... mas se você gosta mesmo de mim, você vai pelo menos tentar me dar essa chance (se um dia eu te ver por aqui, eu tentarei)...

Eu... estou numa situação muito delicada (use camisinha)... mas eu vou ficar bem... e quero que você fique também (fiquei, graças à você ganhei 73 anos de Inferno roubando presentes e flores)... que continue frequentando sua Igreja (eu brincava que iria criar a Congregação do Triângulo Oval Retângulo)... trabalhando... ah... fique bem! Por favor...

Sou assim mesmo... nunca conseguirei mudar... gosto de me sentir do mundo de vez em sempre (prostituição: 100 anos à mais aqui)... mas... você pode me escrever... falar do Apocalypsis (putz, quero mesmo conseguir mandar isso para a Terra)... quero desenhá-lo (tem um camarada na Terra que quero que procurem: Luiz Carlos Ferrarezzi, ele desenhará o graph novel)... mas... deixe seus sentimentos subentendidos nas entrelinhas (negativo, senhorita. Eles viraram um livro e o mundo todo irá ver como você ferrou com minha vida, me deixou na merda da auto-depreciação e me fez matar por você)... ou se preferir não dizer nada... tudo bem... sempre vou ter um sentimento (rancor? ódio? remorso? Já sei: Arrependimento) especial por você... E se um dia acontecer de nos encontrarmos... ótimo (ótimo mesmo)! Mas, agora não... preciso ficar só (ainda bem que não fazem essas coisas em público, sempre quis fazer contigo e você tinha vergonha)... Por favor... tente... apenas tente, um pouco que seja, sei que é praticamente impossível, me compreender (não consegui mesmo)...

Você... ainda tem... e sempre terá um lugar no meu coração (e você sempre terá um lugar na minha listinha negra)...

Um beijo
Renata 'Renée' Cunha"


Me perdoem pelos parênteses na carta, mas sem eles a carta não teria graça alguma e não a colocaria aqui. Aliás a carta me acompanhou durante todos os 752 anos que estou aqui no Inferno. É a única correspondência que recebo até hoje (ela chega uma vez por mês, as vezes mais) e, infelizmente para Deus, eu dou muita risada quando vejo o envelopinho branco saindo da mala do carteiro. Chega um dia aqui em que começamos a nos divertir com a desgraça alheia e até com a nossa própria desgraça. Descobrimos que rir do sofrimento dos outros não adciona pena nenhuma, pois isso ja é, por si só, desumano.

Após ler esta carta eu mudei novamente. Desisti de mentir, aliviar, voltar para a "liberdade". Não quero mais voltar para aquela casa destroçada que consegui, com todas as coisas de Renée lá. Não quero ver a cara do desgraçado que está comendo ela, seja lá quem for. Não quero voltar àquele mundo cheio de vigaristas, retardados, punheteiros e viciados. Quero ficar nesta prisão até conseguir fugir dela, ter uma grana e me esconder numa ilha no Pacífico ou no Brasil. Um camarada da cadeia me falou que "liberdade é escravidão", não lembro o nome dele, mas seu apelido era Nova Era, lembro que fumava pra cacete e vivia lendo Niestche, pornografia e aqueles periódicos científicos, dentre todos os livros que ele tinha numa mala. Não sou "O niilista guardião da verdade" como ele me chavava, mas sempre curtia suas opiniões e frases clichês do tipo "Não existe verdade absoluta!" ou "Administrador de cú é rola". Ele dizia que foi preso por que o governo "prefiria que eu ensinasse o que sabia aos condenados e aos bêbados", e sempre acreditava que não sairia mais de lá, por que "liberdade é escravidão". Carinha legal ele era.

Depois da carta, o tempo passou um pouco mais rápido.

Depois de passar umas semanas na cadeia da delegacia, O'Reilly me levou pessoalmente para a corte. Só notei que fiz algo realmente aterrorizante quando vi o enorme numero de repórteres e pessoas fazendo perguntas e tentando me bater. Conseguiram me por na van e me levaram, por uns trinta minutos, para um fórum, em outra cidade. Novamente sendo atacado pela imprensa e pelos transeuntes, entrei na sala da corte onde meu advogado, o Pereira (um português que prometeu me "tirar" dessa) e outras pessoas já aguardavam.

Não sei como não fui vaiado. Acho que lá dentro a coisa rola de uma maneira diferente. Sentei na minha cadeira e não tiraram minhas algemas, eu parecia um gorila que foi capturado há uns dias e que foi se apresentar ao dono do zoológico: tinha correntes nas canelas e nos pulsos, e usava um macacão laranja com um número atrás. O juiz V. Hector chegou e me olhou de uma maneira que já havia previsto. Era o mesmo olhar que todos me davam quando eu tentava me defender das acusações. Mas "chutei o balde".

Após todos os "rituais" de começo de julgamento de um já-condenado, me chamaram pra depor. Peguei meu discurso com Pereira e li, em voz alta e clara para todos que podiam ouvir:

"Senhor juiz Hector, policiais, advogados, parentes e amigos das vítimas;

Eu, Johnattan K. Arnoldville confesso que sou culpado pela morte das 44 pessoas naquele dia 11 de setembro de 1962, envolvendo o senhor Daniel Ozmantias e Valérie Veit (o negro e a viciada). Confesso também que, ao longo de todos os meus vinte e três anos matei mais dezessete pessoas, todas listadas e entregues ao senhor juiz Hector, além de ter cometido incontáveis crimes contra a sociedade e a infra-estrutura da cidade de Knoxville. Neste momento, estou assumindo a culpa pelos doze estupros em que estou sendo investigado, pelos três assaltos à bancos listados mais detalhadamente na mesma lista que entreguei ao senhor juiz Hector, e pela morte de minha vida como ser humano. Aceito e não entrarei em recurso em nenhuma das punições que irei receber neste tribunal, pois dele nada é válido senão a punição e humilhação que irei sofrer daqui pra frente.

Acredito que o único julgamento que irei realmente reconhecer será o Julgamento Final. Quando Deus vier me buscar lerei a mesma carta que estou lendo nesta corte e direi, como estou dizendo para vocês do juri, que não me arrependi de qualquer coisa que fiz nesta vida (neste momento houve um grande tumulto na sala, acalmado segundos depois pelo juiz Hector, que me mandou continuar a ler em seguida). Se há algo de que me arrependo foi de ter me apaixonado e por ter renegado o nome do Senhor e de meu pai durante toda a minha vida. Se existe um Deus, quero vê-lo e dizer a ele tudo que Ele me fez sofrer por me colocar nesta vida. Quero pegá-lo pelo pescoço e faze-lo se arrepender pela Criação e por ter feito sofrer todas aquelas pessoas que morreram no dia 11 de setembro. Não nego que soltei o Chevy Nova no beco e que foi a causa da situação que causou aquele grande acidente. Mas não digo que fui culpado por isso. Insisto que foi o senhor Daniel que me arrancou do veículo quando este estava em movimento, caso contrário teria conseguido freá-lo em segurança. Nunca, em minha vida, quis matar mulheres, crianças e velhos. Todas as vezes que matei, foi para me defender, com excessão da vez que matei minha penultima namorada, pelo qual assumo a pena por isso. Jamais negarei que fui um criminoso e que só causei dor e sofrimento à humanidade, pois foi por causa dela que tive que ser um criminoso. Acredito que o sonho de nenhuma criança é ser um vilão quando crescer.

Sem mais nenhuma ressalva, gostaria de terminar esta confissão reafirmando que não me arrependo de ter vivido. E que agora não temo mais a morte ou o ser humano, pois tudo nesta vida não me espanta mais. Aceito a punição deste juri e pagarei minha divida com o mundo com meu sangue. Que Deus abençoe este país e que tenha piedade de todos nós."

Houve um grande silêncio após o ponto final. Algumas pessoas disseram "Amém" baixinho e houve duas ou três pessoas que tentaram aplaudir, mas foram silenciadas pelo martelo do senhor Hector.

-O juri irá entrar em recesso e esta sessão voltará a se reunir amanhã às dez horas da manhã. Senhor Arnoldville, venha cá - Hector fez um sinal com a mão para me aproximar e me pediu para que aguardasse até a sala der uma esvaziada - Não irei dizer que sua carta me comoveu, mas com certeza mexeu comigo de uma forma. Sou católico e amo este país. Me diga, você aceitaria lutar por este país para pagar seu débito pela nação? Pense bem nisso e venha falar comigo antes do inicio da sessão, certo?

Pensei muito mesmo no que o senhor Hector me disse. Não consegui dormir naquela noite. Dan leu minha carta e chorou de alegria. Me presenteou com uma Bíblia que não aceitei (odeio livros grandes e sem muito sentido), e me disse que estava salvo perante o Senhor, o que gargalhei, já que sabia que iria para o Inferno, de qualquer maneira. Li uns trechos da Bíblia de Dan e cochilei por alguns minutos, quando O'Reilly me chamou.

-Venha cá - abriu a cela e, o que me espantou, não me deu o soco no estômago que costumava me dar toda vez que me aproximava dele.

Me levou até uma sala de interrogatório com um telefone em cima da mesa.

-Eu realmente acredito em você agora. Eu sei que não foi você que matou a viciada, já que a perícia confirmou a morte por overdose de cocaína. Sei que matou o negro e que tem "fama" por roubo de carros. Sei que assaltou os três bancos e que matou todas as pessoas naquela lista, já que os boletins de ocorrência batem com sua descrição. Mas sei também que não foi o responsável por ter desengatado o carro e deixado ele ir para a avenida. Eu gostaria de pedir desculpas por todas as vezes que te bati e que te humilhei. Sou um pai de família e tenho dois filhos - puxou sua carteira e me mostrou uma bela loirinha de uns quatorze ou quinze anos, e um rapaz de uns vinte e cinco - e uma linda mulher - me mostrou sua bela ruiva de uns trinta anos -. Fiquei irritado quando me dizia que não tinha matado ninguém naquele ônibus e na avenida. Mas sei que não era culpa sua desde o começo. Eu apenas não aceitava o fato de você não assumir suas culpas. O que disse hoje me fez pensar como a vida é bela e como sou feliz por estar aqui. Entendo que sua vida foi dura e que só teve a opção de se vingar por tudo que a vida fez com você...

Fez uma pausa para beber um gole de água, e, estranhamente, estava sem seus óculos ray-ban que sempre escondiam seus olhos de senhor de idade. O'Reilly tinha uns quarenta e tantos.

-Mas você fez algo honrado hoje. Você assumiu suas responsabilidades. E é dificil um homem ser honrado nestes dias. Mandamos milhares deles, incluindo meu filho, para o Vietnã morrer todos os dias, e você poderia ser mais um deles...

-O juiz Hector te pediu para que falasse comigo, não é? - interrompi, dando uma risadinha irônica.

-Não... o que ele te propôs, naquela hora, quando foste falar com ele?

-Que eu me alistasse. Quer que eu morra na selva.

O'Reilly me olhou de maneira surpresa.

-Eu acho que você pode escolher agora... você prefere ir ou quer pagar sua perpétua ou cadeira elétrica?

-Prefiro morrer - respondi secamente -... não importa como. Só quero sair daqui.

-Não fale isso, John - pela primeira vez me chamou pelo primeiro nome - você não merece morrer. Você só merece pagar por todos seus "pecados"...

-Eu quero morrer, senhor O'Reilly. Quero pagar por todos meus pecados e morrer. Eu mereco morrer e quero desaparecer da existência...

-Você quer fugir - incisou...

-Não... quero sumir. Se fugir, me encontram. Eu quero morrer e ir logo para o inferno...

-Você acredita no inferno?

-Acredito.

-Então acredita no Céu...

-Não. O Céu é aqui. O inferno também. Somos nós filhos de Adão e Eva e fugimos do Paraíso. Estamos procurando por ele e não achamos ainda. Mas eu acho que não está no Oriente Médio ou no meio de uma selva...

-Não faça esses julgamentos - interrompeu O'Reilly - você ainda não morreu para saber todas as verdades...

-Não existe verdade absoluta - retruquei.

-Existe, John... existe a Verdade Divina. Só o Senhor sabe todas elas...

Fiquei em silêncio. Olhei para o telefone e O'Reilly deu um sorrisinho.

-Estou te dando um "presente" pra compensar tudo que fiz. Pode ligar pra quem quiser.

Peguei o telefone e um número guardado no meu bolso. Só havia uma pessoa que queria conversar. Disquei e aguardei atender.

-Alô? - respondeu uma voz feminina e cansada.

-Oi... sou eu.

-Oi, John... - Renée estava meio surpresa.

-Eu... só queria saber com quem está saindo, agora...

-Ok... eu vou abrir o jogo. Estou namorando outro cara... mas não vou dizer quem, eu te conheço - e ela me conhecia mesmo, a desgraçada.

-Certo, era só isso que precisava saber. Não acredito que amei você. Só espero que seja feliz e que nunca mais me procure, tá bom?

-Eu sabia que não iria me compreender...

-...E nunca irei, Renée... vocês mulheres são inseguras, oportunistas e infiéis. Vou para o Vietnã amanhã e vou tentar sair de lá. E quando sair, é melhor que esteja bem longe do país. Ou vou te caçar. E, quando te encontrar, vou te estraçalhar. E ninguém vai encontrar seu corpo, pois irei engolir cada pedacinho...

O'Reilly pegou o telefone e o desligou. Me encarava de uma maneira fria.

-Você nunca vai mudar, né?

-Nunca, senhor. Por isso quero a morte.

Na manhã seguinte falei da minha decisão ao senhor Hector, e a sessão começou.

-Senhor Arnoldville. O senhor foi julgado culpado pelo juri aqui presente pelo assassinato de quarenta e duas pessoas no dia onze de setembro de 1967, além dos crimes cometidos anteriormente pelo qual você assumiu a culpa. Estou te condenando à quarenta e cinco anos de serviços ao exército dos Estados Unidos da América. Caso não queira se alistar, estarei lhe condenando à noventa e três anos de prisão, sem direito à condicional, em uma penitenciária de segurança máxima ainda à ser escolhida pelo governador do estado.

-Quero ir para a guerra e morrer - respondi imediatamente.

-Sendo assim, estou te condenando à quarenta e cinco anos de serviços ao exército dos Estados Unidos da América. Sua guarda agora pertence ao Exército e irá imediatamente para o Camp Bradley, na Califórnia. Que Deus abençoe sua alma e que volte um dia para este estado como um homem.

-Já sou um homem, meritíssimo. Apenas não sou completo.

-Um homem é uma pessoa que cumpre suas promessas, paga suas dívidas em dia e luta pela sua nação. Será considerado um homem perante Deus quando completar estes requisitos.

-Um homem é um cara com pinto, com todo o respeito, senhor. Seremos homens perante Deus quando formos justos, honrados e certos.

Houve um silêncio incômodo por alguns segundos.

-Esta corte está encerrada - bateu o martelo e se retirou.

No mesmo dia me colocaram num avião para a Califórnia.
 
Re: John vai para o Inferno

III - O exército e a caminho do Inferno

Vocês ja devem estar cansados de ver filmes mostrando como os recrutas sofrem nas mãos dos seus sargentos e do resto do mundo até ser dispensado. Imaginem agora como eu, um assassino condenado que escolheu o Exército à perpétua e que não tinha para onde fugir - o Exército é mais profissional e eficiente em encontrar fugitivos do que a polícia. Descobri isso da pior maneira possível. Todas as vezes que tentava pular o muro para beber uma cerveja ou encontrar garotas ia para a solitária por alguns dias. Aqui no Inferno é parecido, mas a solitária dura mais do que seis meses e é num buraco cavado no chão, onde é a latrina também. Vou resumir toda a parte de como peguei o avião para Camp Bragley e os meses de treinamento até ir para Da Nang. Meu sargento era um negro chamado Samuel Jefferson. As vezes gostava de ser chamado de Sam, mas geralmente o chamávamos de sargento mesmo.

Ele era bacana, quando não nos mandava limpar as privadas ou passar a noite no mato. Mesmo comigo ele era decente. Mesmo me chamando de condenado e me lembrando das criancinhas e mulheres mortas todos os dias, ele achava que eu seria um ótimo atirador de elite no Vietnã. Minha mira era excelente desde os dezesseis anos, e como já estava acostumado em atirar, matar e me esconder, tornei-me franco-atirador da Quadragésima-segunda Companhia de Infantaria do Exército Americano em poucos meses de treinamento. Ser atirador de elite era fácil demais. Eu tinha apenas que conservar meu rifle M21 limpo e não me mover por horas até meu alvo aparecer.

O sargento Sam começou a me respeitar depois da promoção para terceiro-tenente. Claro, era eu quem dava ordens a ele agora, mas nunca o fiz. Eu só o mandava ir beber comigo nos dias de licensa e a aceitar minhas apostas, mas ele nunca negou, também. Eramos amigos, e foi com ele que aprendi muita coisa sobre o valor da vida.

-Sabe do que você precisa, John? - o que mais gostava nele era a voz, firme, alta e segura - Precisa esquecer essa mulher de vez e encontrar outra. Talvez então saiba valorizar sua vida.

-Eu ainda não encontrei essa mulher, Sam... Quando encontrá-la, saiba que será o padrinho.

Rimos. Eu ria de verdade naquela época, tinha amigos e era respeitado pelas minhas habilidades com o rifle. Sam sempre me aconselhou sobre mulheres, filhos e coisas do tipo. Ele era casado há cerca de quinze anos e tinha sete filhos. Os três homens no exército, dois deles já estavam no Vietnã, e o outro iria logo, quando competlasse dezoito anos. A esposa era linda, apesar de ter seus trinta anos, e sempre aparecia nas fotos segurando um bebê. Sam era uma máquina de se reproduzir. Sam era o esterótipo do patriota negro que vivia dizendo que o Exército - em primeiro lugar - e o país sempre deu tudo o que seus antepassados precisavam e que os deixou felizes e confortados. Seu avô servia o rancho aos oficiais na Primeira Guerra Mundial, e seu pai pilotava P-51 Mustang's na Normandia, na Segunda Guerra. Ele se vangloriava que seu pai (Alexander Jefferson) foi um dos poucos negros que conseguiram pilotar caças na guerra, pelo batalhão Tuskagee, e que ele foi um ás com doze vitórias, algo que nunca confirmei, já que não haviam registros disso nos arquivos da aeronáutica. Mas não desacreditava na história. Negros sempre foram essenciais ao mundo e no Vietnã provaram de vez que não eram menos competentes que os brancos ou qualquer outra raça.

O treinamento no Camp Bragley foi algo que nunca irei me esquecer. Foi uma época divertida, já que treinava bastante com meu rifle, ajudava meus companheiros a mirarem direito e à não temerem a morte. Não vou dizer que estava arrependido ou que estava depressivo naqueles dias. Mas eu não tinha saída, estava "preso" no exército e deveria aproveitar que não estava existindo em uma cela no meio do nada ou tomando uma injeção letal. Ensinava aos meus rapazes que atirar para matar era uma opção, não uma obrigação, como diziam todos no quartel. Eu sempre matei para me defender, e reitero isso. Nunca matei por maldade (até aquela época) e, no Vietnã, dizia que iria matar se precisasse. Eu omitia o fato d'eu estar lá por que matei crianças, o que insisto que é mentira. Ensinava que a morte era algo que acontecia, e quem já passou por tais experiências e conseguiu sobreviver já sabia que a morte pode acontecer a qualquer momento. Não temer a morte é temer a vida, como diria Nova Era. Eu ensinava tudo o que sabia aos rapazes, e acho que isso adcionou uns anos à mais na minha pena, já que aliciei eles a serem assassinos, à cometerem crimes de guerra e outras atrocidades "pecaminosas".

Foi nessa época que conheci Suzanne. Era difícil dizer "eu te amo" a ela com a mesma facilidade que dizia a Renée, acho que minha sensibilidade ao amor foi completamente minado com ela. Mas Suzie me deixava animado e romântico naquela época. Eu sempre dizia aos rapazes que amar era uma peça fundamental para se criar um bom soldado. Se você amasse algo (uma pessoa, você mesmo, os parentes, seu país ou seu rifle), você teria forças para vencer qualquer coisa que aparecesse no seu caminho e que ameaçasse o que amasse. No exército só te ensinam a amar seu país. Ensinei a amar seus inimigos, pois assim você não seria capaz de cometer tantas maldades contra eles e seus familiares apenas por que eles tinham os mesmos sentimentos que qualquer um teria no campo, ou por que eram comunistas. Não que os comunistas e chinas fossem iguais a nós, a unica diferença era que eles nos odiavam por sermos americanos, sermos maiores que eles e termos cigarros bons, carros potentes e mulheres loiras e gostosas.

Naquela época eu visitava Suzie sempre que podia. Ela morava a uns vinte quilômetros do campo e era uma psicóloga dedicada. Ela foi mais minha conselheira do que amante, pois me ensinou a pensar direito e à evitar fazer coisas que me arrependeria depois. Eu argumentava que nunca havia me arrependido de nada (o que era hipócrita da minha parte), e ela rebatia dizendo que o arrependimento era algo tão inevitável que meus arrependimentos eram facilmente perdoáveis e esquecíveis. Ela nunca conseguiu me ensinar o que era "se arrepender", o que me trouxe ao Inferno mais rapidamente. Nunca imaginei que aquela loirinha de pele clara iria me deixar tão feliz. Não que eu era um cara feliz. Eu ainda me irritava com tudo e descontava isso nos rapazes, mas eles sempre aprendiam mais depressa quando eu estava bêbado ou emputecido. O fato é que, com Suzanne, eu aprendi a ter saudades e a querer ficar na América apenas para te-la mais por perto. O que me derrubou à estaca zero quando me mandaram para a guerra.

Alguns dias antes de ir, me arrumaram uma bela duma "surpresa". Meu pai veio me visitar no quartel. Os militares e os meus rapazes achavam que eu era azedo e cretino demais por não ter um pai a muito tempo por perto. O que era o contrário, pois graças a ele eu me tornei o que fui.

-Oi, John - o velho entrou na sala de visitas amparado por uma cadeira de rodas e uma mocinha da enfermaria.

-Olá, papai.

Ficamos quietos por alguns segundos demorados, mas logo o abracei e choramos feito moças. Ele estava bem mais velho, nos seus sessenta, setenta anos. Deixara a barba crescer e desistiu dos sapatinhos nos joelhos. Trocara-os pela cadeira de rodas e por um cobertor feito por mamãe, conservado desde aquela época. O que me trouxe duvidas quanto seu paradeiro.

-Olha, eu quero te dizer, antes de mais nada, que me arrependo por todos aqueles anos que te tratei mal. Eu fui um péssimo pai e um péssimo homem. Desde que saiu de casa, eu resolvi mudar meus pensamentos...

-Não tem do que se desculpar, papai. Eu fui um péssimo filho, e ainda sou um péssimo homem. É por isso que estou indo para o Vietnã.

-Então... você vai mesmo, não é? Gostaria que não fosse, agora que nos encontramos. Tenho muita coisa pra te dizer... como sobre sua mãe...

Ele me contou sua versão da história sobre ela. Jeorge a conheceu nos seus vinte anos, num baile militar antes dele ir para a guerra. Naquela mesma noite dormiram juntos e ela engravidou de mim. Algumas semanas depois papai embarcou para o Pacífico e nunca mais a viu. Eles trocavam correspondências sempre e ele prometeu a ela que, quando voltasse de lá, iriam se casar e me criar como uma família. O que não aconteceu, já que nasci enquanto ele perdia as pernas e mamãe conheceu outro homem. Não me lembro dele, mas papai dizia que era um dos seus melhores amigos... Irônico como as coisas acontecem de geração em geração. Quando ele voltou, três anos depois do meu nascimento, mamãe se casou com este cara e me deixou com papai, pois ela já tinha outro filho e não queria que eu crescesse com ela ou com meu "irmãozinho". Papai ficou louco de raiva e matou o cara, e quase matou mamãe. Mas ela conseguiu fugir e nunca mais apareceu. Papai nunca foi pego pela polícia, pois nunca o acharam. Trocou seu nome para Jeorge (antes era George, a troca de letra foi para despistar os tiras) e foi morar do outro lado do país, no Tennessee. E essa era a sua história.

Fiquei uns segundos incomodos quieto, pensando no que acabara de ouvir, e papai não conseguia me olhar nos olhos, como sempre fazia quando brigavamos.

-Você está mentindo - Suzanne me ensinou que uma pessoa mente ou omite fatos quando não consegue olhar nos olhos enquanto fala.

-Droga... - papai perdeu de vez o olhar.

-Olha, pai, eu sei que você nunca vai me dizer de verdade o que fez ou o que aconteceu com mamãe, mas apenas quero saber se você sabe aonde ela está e se ela está bem.

-Ela está morando no Alabama, com seu marido e seu filho. Trocamos correspondências de vez em quando falando sobre você. Ela sabe que foi você quem cometeu aquela barbárie na Avenida Washington e...

-Opa, pera lá. Eu não matei toda aquela gente... - interrompi.

-Você sabe que matou, John. De uma maneira ou de outra. A televisão disse que você pegou perpétua. Mas os militares apareceram em casa um dia me dizendo que estava aqui e que queriam que eu viesse até aqui conversar contigo.

Desde então, comecei a odiar meu país. Nós brigamos, como sempre, e saí da sala de visitas sem dizer "adeus" ou "eu te amo, papai", e eu não o amava mesmo, e nem queria vê-lo mais, estava tudo bem até ele aparecer. Papai ainda insistiu que me amava e que estava arrependido pelo que fez comigo, mas nunca o perdoei por isso. Ele tinha seus problemas e deveria relevá-los por que seu filho não tinha culpa de nada. Mas ele sempre achava que, por minha culpa, ele tinha que me criar e ver a mãe do seu filho feliz com outro cara. Não é minha culpa se ele não sabe cuidar de quem engravida. Eu teria feito o mesmo na situação de mamãe. Mas certamente seria diferente se virasse pai. O que descobri quando Suzanne disse que estava grávida.

Foi uma notícia meio assombrosa, eu não estava pronto para ser pai, nem foi na hora certa, eu embarquei para o Vietnã uma semana depois que Suzanne fez seu primeiro ultra-som. Tudo indicava que era uma menininha, e já tinhamos dado um nome para ela: Mary-Anna Arnoldville, em homenagem à minha mãe, Lylian Mary-Anna Arnoldville. No começo eu fiquei um pouco preocupado e irritado por te-la engravidado agora, mas depois de um tempo comecei a gostar da idéia. Se eu voltasse para casa vivo, eu sairia com ela todos os dias para jogarmos bola ou leva-la para patinar ou dançar balé. E trabalharia feito um cachorro para pagar seus estudos, dar um carro para ela e mima-la de todas as formas possíveis e imagináveis. Eu seria um pai, não um criminoso vindo da guerra. Pena que morri.

Quando embarquei no navio para ir ao Vietnã, houve uma pequena comemoração num boteco próximo ao quartel. Estavam todos lá: Papai, Sam, Suzanne, os meus rapazes e... minha mãe. Foi algo que mexeu comigo, ela era alta e graciosa e estava relativamente linda, apesar dos seus sessenta anos. Lembro que estava bebendo com meus rapazes quando ela me tocou no ombro, e me virei para ver quem era. No mesmo instante saquei que era mamãe, eu lembrei de seus olhos azuis e seu sorriso materno. Nosa abraçamos e choramos feito duas crianças, e houve uma enorme comoção no boteco. Ficamos horas conversando sobre nós e sobre papai e sobre tudo. Ela me disse que realmente casou-se com um amigo de papai, um tal de Vincent e que ele foi morto por Jeorge. O que o velho omitiu foi que ele queria voltar com mamãe e me criar, mas ela jamais voltaria com ele. Ela fugiu para o Alabama e por lá casou-se novamente, com um pastor, o reverendo Raphael Ceasar, um senhor muito simpático e carismático. Não tive a oportunidade de vê-lo, ja que ele não apareceu na festa, talvez por temer meu pai. Ele me escreveu uma carta me dizendo que estava cuidando bem de mamãe e de meu meio-irmão, Paul Caesar Arnoldville. Disse que ele já estava nos seus vinte e cinco anos e que estava formado professor de história em Havard. Fiquei muito feliz por ele. Também me disse que soube do meu julgamento e que estaria rezando por mim para voltar são e salvo do Vietnã, e que estava convidado para vir morar com eles no Alabama, juntamente com Suzanne e sua netinha. Fiquei muito contente com o convite. Eu só precisava voltar para casa, e seria feliz para sempre...

Dei um beijo longo e caloroso em Suzanne antes de embarcar no navio. Eu tinha quase certeza que jamais a veria novamente, pois sabia que iria morrer na selva. Eu sou um soldado-criminoso-raso, o primeiro que seria lançado na linha de frente sem um fuzil. Era o que faziam com os criminosos que prefiriam ir para a guerra, fiquei sabendo disso quando coloquei o primeiro pé no Vietnã.

Sabe, não sei por que não gostava de viver. Sei que o mundo é ingrato, mesquinho, triste e pecaminoso. Sei que as pessoas são infelizes, egoístas e egocêntricas. Sei que tudo que vai, volta, e que tudo que tive, perdi. Perdi meus pais, meus amigos, Suzanne, Mary-Anna, Sam... Perdi tudo que tive na Terra. E agora sinto saudades de tudo que tive e que vivi lá. Sinto falta do amor, das risadas, de Suzanne. Sinto falta de não ter tido a oportunidade de ter conseguido sobreviver na guerra e voltar para casa, cuidar de Suzanne, mamãe, Mary-Anne... Sinto falta de coisas que não fiz. Eu queria voar em um avião por aí, sobrevoando colinas, montanhas, o Grand Canyon... Queria ter tido sexo com seis orientais em uma cama de luxo no Marriot, gostaria de ter bebido mais, me drogado mais e tudo mais. Eu raramente sorria na Terra. Eu raramente achava algo bom ou prazeroso. Eu era um imbecil. O lado bom do Inferno é que noto que não soube viver direito na Terra. E certamente nunca irei para o Céu, já que, desde que cheguei aqui, ganhei uns quinhentos anos a mais de pena. Deus me disse que gostaria de beber comigo um dia, mas na casa Dele. Temo nunca conseguir chegar lá. E duvido que Ele tenha Hainekken.

As vezes considerava me matar...

Achava que viver era entediante, óbvio e sem graça demais.

Se eu vivesse até uns 60 (o que duvidava), sei que seria velho, fraco, impotente e provavelmente inutil... (mais do que ja era).

Até la, teria feito dinheiro, casado, tido filhos.... mas não vejo nada de bom nisso, sinceramente.

Sabia que minha vida era entediante por que eu fiz ser assim.

Sabia que tudo era óbvio pois jamais aconteceria algo realmente novo aqui. Sempre guerras, fomes, crises, etc... a humanidade não mudou muito em 2000 anos. Sempre fomos ambiciosos, estúpidos e destruidores. Só me animaria se alguem de outra dimensão aparecesse e começasse a destruir a Terra, o que duvido que aconteça.

Sabia que era sem graça, pois tudo o que me dava prazer acaba logo, como amar, ter um carro, casa, pular de para-quedas, etc...

Sabe... é quase seis da manhã aqui no Inferno, nesta merda de lugar, sem armas, sem nada para trocar por um cigarro, com insônia e fadado ao fracasso eterno. Uma grande ofensiva perto do Lago vai começar em duas semanas, mas estou ferido e inválido por cerca de mais dois meses, e nem tenho nada para trocar por munição ou um rifle novo... Mas para quê? Não tenho sentido pra lutar... sei que sou velho, fraco, impotente e provavelmente inutil... (mais do que ja sou).

Me bateu uma depressão forte agora. Meus cigarros estão incomodando as pessoas, não quero encher a cara e tenho uma entrevista com o sargento em seis horas. Vou aparecer la parecendo um zumbi por não ter conseguido dormir, e certamente serei rebaixado, pois notarão que sou um inutil.

Sinceramente? Eu me mataria agora se tivesse uma arma na mão. Morrer me deixaria em paz por anos. Mas não morremos aqui, só sentimos dores por anos até sara-las, que aliás, sempre doem. Nem a dor conseguimos curar, o Inferno é um porre.
 
Re: John vai para o Inferno

IV - Uma pequena "anotação especial"

Hoje foi a primeira vez que eu e Vic ficamos sozinhos na enfermaria. Lembram-se do Vic? Aquele amigo que me ensinou a atirar? Ele veio para o Vietnã comigo. Ele se alistou na mesma época que eu, e nos encontramos no Vietnã quando desembarquei. Morreu antes que eu, quando uma granada caiu em cima dele.

-Só falta nós dois agora. Espero que ninguem mais venha, cara. Este lugar fede mais quando tem mais gente.

Vic foi ferido na barriga há cerca de dois anos atrás. Sua barriga explodiu quando uma granada caiu em cima dele, pela vigésima nona vez, e está até hoje aqui, se recuperando disso.

-Sabe - indaguei -, como será que o Diabo se parece?

-Ele deve vestir Prada.

Gargalhamos. Minha boca doeu (há cerca de dois anos que não ria), e Vic cospiu um pouco de sangue, após tossir feito louco.

-Mas, sério - recomecei -, será que ele é um de nós?

-Não sei, cara. Ele deve ser um gênio por ser quem ele é, então deve estar bem escondido em algum lugar bem longe daqui...

-Será?

-Ele deve estar debaixo da terra, num centro de comando super-protegido, cercado de seus generais, demônios, súcubus e bebida.

-Então... será que conseguimos chegar lá?

-Impossível. Um cara me contou uma vez que algumas pessoas "tentaram" encontrar o Diabo. Nunca mais apareceram.

-Devem ter sido "transferidos" (chamamos de "transferido" aqueles que fazem algo ruim demais ou se apegam demais à alguem e desaparecem para nunca mais voltarem).

-Possívelmente, cara. Tem um cigarro? -Vic ainda fumava mesmo depois de 782 anos aqui. Era incrível como ele conseguia plantar o tabaco, contrabandear papel tipo "seda", fazer cigarros, fumá-los, se esconder de todo mundo que fuma e está louco para dar um bom trago, escondê-los e ainda por cima não ter câncer. Ele tem uma puta duma sorte desgraçada.

-Você não conseguiria tocá-lo, se tivesse um, amigo - quando eu tento fumar, eles explodem, são molhados, pegam fogo por completo ou alguem rouba-os de mim. Eu sou azarado pra cacete.

-É... - rebateu.

-Sabe, será que, se encontrássemos, pegássemos e destruíssemos o Desgraçado, este lugar seria chamado de Inferno?

Essa idéia está fixa na minha cabeça desde que pus os pés aqui.

-Cara, que conversa idiota, todo o mundo sabe que não conseguiríamos pegá-lo - Vic fechou os olhos para dormir, mas não deixei.

-Mas não podemos nem tentar?

-Você está falando sério? -me olhou com aquele olhar cínico. Ele não tem muito senso de humor quando falamos algo sobre o Diabo, Deus ou de vikings, ele adorava a cultura viking e quem falasse mal deles, "morria".

-Estou -respondi imediatamente.

-Ah, cara... -balançou a cabeça, e tentou dormir de novo.

-Com quem o Diabo se pareceria?

-Com você provavelmente não. Ele não teria essa idéia tão escrota - disse, já se virando para o outro lado da maca.

-Acho que nem se pareceria contigo... será?

Vic se virou, imediatamente e me encarou, esporrando:

-Vá se foder. Eu não sou mau o suficiente para ser ele. Se eu fosse ele, eu teria te "matado" agora por me sugerir algo tão sem sentido. Estarei aqui por menos tempo que você e provavelmente vou encontrar Deus antes que você, pedirei para Ele em pessoa para me dizer quem é o Diabo. Se um dia eu conseguir mandar uma carta para você lá de cima, vou dizer quem é e você tenta pegá-lo. Combinado? Agora me deixe dormir, cacete. Fique escrevendo sua "Bíblia" aí e cale a boca - virou-se novamente, dando as costas para mim, e não falou mais nada até a manhã seguinte.

Obedeci. Estou escrevendo isso agora. Foi a primeira vez que pensei em como pegar esse Filho-da-Puta. Vou anotar aqui tudo que pensar em como fazê-lo. E, podem ter certeza, amigos. Se um dia lerem isso, podem ter certeza que consegui.
 
Re: John vai para o Inferno

V - O inferno e a primeira derrota

Primeiro dia após chegar ao Vietnã.

Foi algo esquisito, e particularmente assustador. Chegamos bem cedinho, por volta das cinco da manhã. Meu batalhão e eu chegamos via mar, desembarcando em uma pequena vila de pescadores. Fomos saudados pelas nativas: Lindas jovens em trajes "havaianos", distribuindo uns colares feitos de flores e conchas, nos chamavam de "heróis", mas acho que elas foram obrigadas a dizer isso. O chefe da aldeia nos recebeu, soldado por soldado, e nos dava calorosos apertos de mãos. Dizia "Thank you very much" (muito obrigado, em inglês), tropeçando em algumas pronúncias. Ao seu lado, um capitão jovem e barbado apenas nos observava, levando o chefe da aldeia para cada soldado, cada homem que saia do barco.

Aquele lugar foi um dos pontos mais aterrorizantes que estive. Ouvia os insetos tentando entrar em meu ouvido, o mar estalando o casco de nossa pequena embarcação e o tímido vento da manhã avisando que o dia seria dos quentes.

Não haviam nuvens. Até umas cinco da tarde, o sol nos "recebeu" com um calor de desgraçados quarenta e dois graus. Mesmo antes de pisar em terra, estava suando como um porco, e comemorei na hora que nosso capitão disse que podíamos tirar nossas jaquetas e camisas para nos refrescarmos um pouco. O vento não nos ajudava. Ele apenas aparecia para derrubar nossos copos de água e para nos empurrar para o mar. Era como se ele não quisesse nossa presença, naquele lugar.

Desde que cheguei lá, minha mão tremia. Tremia quando fazia a saudação militar para meus superiores, tremia quando manejava meu rifle e tremia quando tentava fumar. Meus cigarros pareciam enormes cabos de aço que tentava, com uma mão, acendê-los e tragá-los. A fumaça do cigarro descia como areia, e nem que eu bebesse todo o rio Mississippi ficaria com a garganta molhada. Eu estava com medo?

Nosso capitão, Douglas Pliskin, era um experiente rapaz com uns três anos de Vietnã, um de Coréia e mais alguns meses na França, durante a Segunda Guerra. Ele me deixava muito tranquilo, e nervoso, quando assim desejasse. Ele fumava muito, e sempre tinha uma bandana na cabeça. Nunca o vi sorrir. Ele parecia que estava na época mais tensa de sua vida. Ou que estava lá desde que a guerra começou, pois sabia a localização de todo e qualquer charlie, quando faziamos incursões na mata, sabia destruir qualquer coisa que cruzasse o seu caminho, e as vezes até sabia o nome de suas vítimas. Parecia que nascera para estar naquele lugar, era seu lar.

Ele nos mostrou nossos quartos, aonde estava a comida (churrasco, arroz integral e algumas salsichas, quando conseguíamos) e como podíamos manter a cabeça fria quando quiséssemos. Havia uma choupana mais afastada onde chamávamos de "inferninho": Um bordel com uma família de moças jovens, que estavam ali apenas para nos animar. Todos que ia pra lá pegavam doenças. Sífilis, Seborréia, e até aids, se dessem azar de comer a "premiada".

Elas eram prisioneiras. Estavam obrigadas a estar lá. Eu jamais comeria uma selvagem que era obrigada a fazer sexo com a gente (ok, minto, eu as visitei umas cincou ou seis... certo, certo, nove vezes).

Pliskin não era daqueles que gostava de sexo ou de mulheres, ou de ninguém, ou de alguma coisa que não fosse matar, destruir ou desmembrar. Ele apenas entrava na mata conosco, nos colocava em algum lugar e voltava com um vietnamita semi-morto debaixo do braço, e nos falava como vencê-los.

-Está vendo isso aqui? É o nosso inimigo. Ele não anda armado, não tem munição, e só poderia me machucar com este facão - nos mostrou uma enorme peixeira ensanguentada, que notamos que era o sangue do braço de Pliskin.
-Ele quer matar vocês, quer me matar, quer matar qualquer um que não seja oriental e que não fale vietnamita. Ou seja: Se quer sobreviver aqui, aprenda vietnamita, seja comunista e puxe seus olhos com um band-aid.

Nunca ríamos das piadas dele. Parecia que ele não queria que ríssemos, ou chorássemos, ou expreçassem qualquer emoção, como ele.

Pliskin jogou o pobre infeliz no chão.

-Vamos, "camarada". Vem me matar - jogou o facão no chão, ao lado do vietnamita.

Muito forçosamente o china pegou sua arma, olhava desesperadamente para todos os lados - ele era um moleque de uns dezessete anos, estava com suas calças de algodão imundos, duas cintas amarradas no peito e um chapéuzinho feito de palha, daqueles que parecem pratos enormes - e segurava sua peixeira, tremendo mais do que eu.

-Vamos, charlie. Me ajude a ensinar esses "novatos".

Não aguentei mais aquilo.

-Mata este sádico logo, garoto - chutei o china em direção ao Pliskin, e ele, com seu facão, desferiu um golpe que rasgou a jaqueta do capitão, que desviou por alguns milimetros antes que suas vísceras fossem descobertas. Quase que em um milésimo de segundo, Pliskin pegou o coitado pelo braço, quebrou ele em uns dez pedaços e deu um tiro com a 9mm no estômago do já morto comunista. Em seguida, me encarou de uma forma que só meu pai fazia quando o deixava furioso. Tacou o china no chão e apontou a pistola em minha direção.

-Quer ser o próximo? - perguntou.

-Quero. Larga essa merda. - joguei meu M21 no chão, assim como minha pistola, minha faca e todo peso extra do meu corpo.

Pliskin fez o mesmo. Estava apenas com a pistola e uma faca presas em seu uniforme, e tirou a jaqueta já ensanguentada, arremessando-a no corpo do vietnamita, colocou suas armas carinhosamente no chão e ficou em guarda de luta. Pela sua postura, pensei que fizesse kung-fu ou qualquer coisa ninja. Não sei ao certo.

Os outros soldados ficaram em volta de nós. Éramos formados por sete homens, contando eu e o capitão. Os outros cinco eram novatos, com excessão de Pugliesi, um rapaz que já estava no Vietnã havia uns oito meses. Todos estavam surpresos por ver um cara que havia acabado de chegar, e já estava brigando com seu capitão. Pugliesi pegou um maço de cigarros, e calmamente disse:

-Tenho dois. Aposto que Pliskin derruba esse merda com dois socos, e um chute em seu queixo.

Começaram as apostas, todos deram dois cigarros nas mãos de Pugliesi, dizendo quem poderia vencer.

-Ok, rapazes - se aproximou de nós dois -, podem começar.

Pliskin olhou Pugliesi, que estava com um sorrisinho calmo. Descobri, depois, que Pugliesi era campeão de poker, e ganhava praticamente todas as apostas que fazia no Vietnã. Ele era um italo-americano de uns vinte e cinco anos, do tipo bonachão, olhos tranquilos e um sorriso sempre enigmatico. Seus cabelos estavam compridos, para os padrões militares, e andava com uma pochete com baralhos, moedas e cigarros. Era nosso "crupiê" e juiz em qualquer coisa.

Quando Pugliesi deu o sinal, não tive tempo para pensar. Pliskin me deu um jab de direita e uma direta de esquerda, estraçalhando meu nariz. O chute pegou meu queixo em cheio e o deixou no chão, junto com o resto do meu corpo. Acordei na enfermaria, com uma faixa enorme cobrindo meu nariz, meu pescoço adornado com um colar de flores e um bilhete deixado em cima do meu corpo, dizendo:

"Bem vindo ao Vietnã".
 
Re: John vai para o Inferno

VI - Vassili Zaitsev

Difícil escrever sobre ele. Ele era meu inimigo, um camarada, um franco-atirador como eu, e um cubano metido no Vietnã.

Vocês devem saber como Cuba ajudou os comunistas, socialistas e qualquer outro país que queria se libertar do domínio capitalista dos anos 70. Eles enviaram homens, armas e ideologias para o Vietnã. Este cara era um deles.

Vocês devem saber (e precisam saber) que Vassili Zaitsev foi o maior herói da União Soviética durante a Segunda Grande Guerra. Graças ao seu Mosin-Nagrand de 20mm, ele estraçalhava nazistas em Stalingrado como eu estraçalhava vietcongues na selva. Claro, eu jamais seria capaz de me comparar à este "herói". Ele obteve duzentas e quarenta e duas vitórias em seu score, a sua maioria oficiais alemães. Ele ajudou os russos à vencer a Alemanha durante a guerra, e, segundo reza a lenda, ele ensinou este cubano.

Seu nome é desconhecido. Ele se auto-intitulava Vassili Zaitsev, e é assim que o chamarei à partir de agora. Nunca, em toda a minha vida, encontrei um atirador mais cruel, metódico e dedicado em minha vida. Ele usava uma Dragunov, o rifle mais invejado no Vietnã, depois da AK-47, devido sua precisão e cadência de tiro, e sua fama de ser "cínicamente mortal".

Vassili matava qualquer coisa que tinha o azar de cruzar seu caminho. Sua "assinatura" era facilmente perceptível. Um tiro no ombro, outro na cabeça. Era engraçado e triste quando viamos um oficial ou amigo esfatelado no chão, numa manhã que conseguíamos dormir, com seus dois tiros, precisamente encaixados, cravados no cadáver.

-Foi o Vassili - comentavam.

Pugliesi fora uma de suas vítimas. Estava calmamente em sua barraca jogando poker com mais dois soldados. Como de costume, estava se rejubilando por ter tirado todos os cigarros dos infelizes, emprestando-lhes alguns para continuarem o jogo, mesmo sabendo que iria recuperá-los de novo. Naquela tarde entediada, Pugliesi estava distribuindo as cartas e virando o turn, quando Vassili acertou seu primeiro tiro no ombro. Os dois rapazes sairam correndo e se esconderam aonde podiam se esconder, e Pugliesi berrava, desesperademente, por um médico.

-Meus cigarros! Meu dinheiro! Minhas malditas cartas! Porra! Me tirem daqui!

O acampamento virou uma zona. Corriam de lá pra cá tomando posições, atirando para qualquer lado e berrando ordens e negativas. Todos gritavam nomes pejorativos ao "camarada Vassili", como o chamavam, as vezes.

-Alguem pega o Pugliesi! - ordenou Pliskin, debaixo de um jipe, segurando sua M-16 com mira telescópica e fumando um cigarro.

Imediatamente Sorriso correu em direção ao Pugliesi. Sorriso era nosso médico negro. O branco era o Whisky, mas este estava em outro lugar, ajudando uns nativos à se esconder.

Eu estava me barbeando quando tudo isso aconteceu. Imediatamente, após ouvir um disparo (que reconheci sendo de um Dragunov), peguei minha M-21 e mirava-o na fresta do "banheiro" (uma tenda para cagar e se barbear), procurando Vassili. Tocava, ao fundo, uma musiquinha clássica aterrorizante para o momento. O rádio explodiu, quando Vassili decidiu parar com o barulho. O campo ficou quieto rapidamente, e todos os soldados estavam à postos, procurando o desgraçado do cubano.

Sorriso pegou Pugliesi, este segurando seu ferimento com uma das mãos, e a outra segurando suas duas cartas, choramingando coisas como "minha mão" ou "maldito"... Sorriso o escondeu dentro da tenda, fechou a "porta" quando outro tiro atravessou a barraca. Imediatamente após isso quase todos correram em direção ao que achavam que vinha o tiro. Havia uma "recompensa" de duas semanas de "licença" para quem matasse Vassili, e um mês nos EUA se o pegassem vivo. Mirei minha M-21 entre duas pedras, próximas à mata, onde vi Vassili. Atirei e errei. Eu estava de pé e minha mira fica horrível tremendo. Me escondi, sentando na privada de madeira, que fedia excepcionalmente forte naquela hora. Recarreguei, e esperei.

Pliskin chamou Vic (ele estava no mesmo acampamento que eu, por uma coincidência que só escritores de ficção conseguem criar), Psycho (um loirinho de olho claro), e Marky (não lembro muito dele, ele era baixinho e muito mal-humorado) para acompanha-lo até a mata. Psycho berrou "Nem fodendo!" e se jogou atrás de umas caixas, e Marky saiu detrás da barraca onde estavam Pug e Sorriso, correndo feito doido com sua M2 (metralhadora pesada, exclusiva para atiradores fortes e rápidos, com tendências psicóticas) nas costas e um lança-granadas M-79 em mãos. Não teve tempo para chegar até Pliskin. Um tiro em seu ombro o derrubou na mesma hora. Pliskin, após ver Mark cair, mirou com sua M-16 e atirou entre as pedras, como eu fiz, e deve ter errado. O segundo tiro de Vassili em Marky confirmou isso. Vic não apareceu.

Deitei-me no chão, abri a cortina do banheiro e mirei novamente. Vi o rifle de Vassili e não tive tempo para raciocinar, meu ombro fora atingido.

Xinguei a mãe do cubano com praticamente todo meu vocabulário de palavrões. E uma explosão de morteiro detonou no meio do campo, arruinando de vez nossa "caça ao cubano".

Ao todo, morreram Pugliesi (pasmem: o tiro que perfurou a barraca matou Pug, acertando sua cabeça em cheio), Marky, e mais dois rapazes, com a explosão. Pliskin se feriu quando quebrou um dedo, o mindinho, quando se escondeu debaixo do jipe, e eu, com um rombo no ombro esquerdo, fui parar (novamente) na enfermaria.

Pug foi enterrado com suas duas cartas que estava segurando, quando foi baleado. Um par de Áses. O turn (três cartas que o carteador coloca na mesa, antes de começarem as apostas, em uma modalidade de poker chamado Texas Hold'em) eram dois àses e um seis de copas. Tudo colocado carinhosamente em seu peito, juntamente com seus cigarros, suas moedas e notas de dólar e uma garrafa de cerveja, que adorava beber durante o carteado. Marky levou suas cartas, a foto de sua namorada e seu M-79, com o qual tinha uma precisão maior que a minha com o rifle. Os outros dois rapazes (Vincent e Joules) mortos na explosão foram enterrados com suas cartas e fotos da família. Joules perdeu sua carteira, mas a encontrei depois, no meu armário. Eu adorava ela, Joules, foi mal.

Chorei muito naquele dia. De raiva. Perdi dois amigos, Pliskin não morreu e o cubano possivelmente comemorou suas duas vitórias bebendo vodka barata e colocando moedas em seu "altar" do verdadeiro Vassili Zaitsev (ele certamente deveria ter um). Fiquei um mês num hospital em Saigon reaprendendo a mover o ombro e a atirar, já que neguei a licença para os EUA e disse que queria voltar à guerra. Fiz um inimigo que prometi não voltar para a casa até trazer sua cabeça comigo.

E esse era Vassili. Nunca matei-o, nunca o venci e nunca mais o vi, até o dia em que fui para o verdadeiro Inferno. Filho da puta, esse cara.
 
Re: John vai para o Inferno

VII - Paz?

Era a Guerra do Vietnã.

Três meses depois de estar lá, me acostumei. As tremedeiras pararam, as crises de choro, ódio, remorso ou paciência também. Patrulhava a região com o capitão Pliskin (ele nunca morria, ou se machucava), Sorriso [à colocar seu nome aqui, alguem lembra?], J. "Psycho" Joules (irmão do falecido Joules), Vic, Paul "Whisky", Clint "Blitzkrieg" Menezes, Andy "Scalfax" Fortti (nome de seu cavalo favorito, no Texas) e o "Iron" (ele ganhou este apelido quando apareceu na sala de alistamento com uma camiseta de uma banda nova naquela época chamada Iron Maiden, seu nome era Victor também, então o chamávamos de Iron para ninguem se confundir na hora de "grandes tensões"). Todos tinham sua especialidade. Todos sabiam usar a arma certa, na hora certa, em qualquer lugar.

Sorriso era o mais calado. Só ria (óbviamente...). Ele era um rapaz alegre e sonhador. Sonhava sair de lá vivo da guerra. Era enfermeiro na Nova Orleãs e sabia fazer curativos, bandagens e qualquer outra especialidade médica no menor tempo que nosso grupo conseguia contar. Ele era rápido em nos curar, e, junto com o Whisky, formavam nossa "retaguarda médica", quando precisávamos.

Psycho era um menino calado, também. Tinha seus vinte anos quando se enfiou no ônibus para o quartel. Tinha muitos problemas quanto à sua existência, a existência dos outros e da existência da guerra. Ele questionava todo e qualquer coisa que falávamos, por isso foi um dos primeiros a ser morto pelos charlies. Ele usava seu M-16, um maço de cigarros meio solto no capacete e um lança-granadas acoplado no rifle. Sua precisão era tão util que as vezes o deixávamos sozinho na mata para acertar seu obûs em veículos. Foi numa dessas que veio para o Inferno.

Vic era o Vic. Ele ainda era gordo, barbudo e fedia. Mas era o Vic. Deixávamos ele com o rádio e com as granadas, e as vezes com a M-79. Quando tínhamos problemas, era Vic quem chamava os F-4 Phantom para o ataque de napalm, mesmo antes de pedirmos isso, e, quando estava com o rádio danificado, usava uma granada. Sempre escondiamos elas, pois todas - repito, todas elas não explodiam no lugar nem na hora certa. Dizíamos que ele era nosso "amuleto da sorte", pois, quando seu rádio quebrava, era sinal para irmos embora para o acampamento. Sempre deu certo.

Whisky era nosso outro médico. Mas também sabia usar a M-79 como ninguém. Depois de Marky, foi Whisky quem começou a explodir grupos de inimigos com suas granadas. Ele salvou nosso rabo diversas vezes apenas dizendo "Olha o que eu tenho": Mirava, atirava e acertava. E pronto.
Ele tinha mania de filosofar com Psycho, e sempre saíam na porrada. Por isso deixávamos Psycho na dianteira e Whisky na retaguarda, com a M-79 em mãos. Também era engenheiro formado em alguma universidade que não me lembro, mas sabia consertar qualquer coisa. Outro dia consertou um Patton (tanque padrão americano) de um agrupamento dos blindados e "ganhou" tantos cigarros, comida e água que agora dispensávamos as porcarias que nos mandavam. Com excessão do bolo de Suzie - desgraçados!

Blitz era nosso "soldado padrão". Ele sabia usar qualquer coisa. Se dessemos pedras para ele, ele conseguia colocá-las nas esteiras dos blindados. Se ele estava com uma AK-47 e uma garrafa de cerveja nas mãos, ele atirava com a AK e bebia com a outra. Era impressionante sua capacidade de aptidão para o exército. Tanto que ele era o segundo em comando, quando Pliskin sumia.

Scalfax era nosso franco-atirador, juntamente comigo. Ele era conhecido também como "o arqueiro" por parecer um elfo saído das florestas mágicas e pronto para acertar uma seta na cabeça de alguém. Ou melhor, no peito, ou nas pernas. Sua arma, a M-21 - ele preferia usar sem o scope, era toda talhada com desenhos e fitas coloridas. Era como se a arma dele era seu "arco mágico" ou coisa parecida. De qualquer forma, aquela arma parecia ser mesmo "mágica". Mesmo sem sua mira telescópica, ele acertava seus tiros com quase a mesma precisão que a minha. Pena que ele não mirava para matar, ao contrário de mim ou de qualquer um no grupo. Ele veio do Arizona criado para cuidar de cavalos ou qualquer outro animal, não para lutar a guerra. Ele era meio hippie, mas não implicávamos com ele por causa disso. Todo mundo (com excessão de Pliskin) era meio hippie. Todos (com exceção de Pliskin e Scalfax) competíamos por cada tiro que dávamos - tínhamos um "score" desenhado nos capacetes contando cada vietnamita morto. Apostávamos quem matava mais charlies, quem transava mais com as nativas, quem achava mais "tocas" (aquelas cavernas feitas pelos chinas, muito populares entre as fileiras Infernais, também) e quem bebia mais em menos tempo. Scalfax não tinha mais pontos que eu, na tabela de mortos; maioria de suas vítimas não morria, de fato.

O Iron era nosso "metaleiro". Ele apareceu em 1975 no nosso acampamento, e era fã de uma bandinha que nunca ouvi falar. Ele não comentava muito da banda favorita dele, ele estava lá para "terminar o serviço" com os chinas. Ele chegou quando os Estados Unidos estavam se retirando do Vietnã. Sempre achávamos que ele era um espião. Sabia demais de um monte de coisas, e era nosso intérprete. Ele andava com sua M-16, granadas, duas facas e uma capa. A capa era para se esconder quando precisava. Era feita de folhas secas, parecida com a que eu usava quando vou "à serviço" como sniper. Achávamos que ele a usava para se esconder quando resolvesse "mudar de lado". Só confiamos nele quando ele se jogou em cima de uma granada que Vic deixou cair, e ele se atirou em cima dela para não nos explodir. Foi o único condecorado em nosso "bando". Desgraçado!

E esse era nosso pelotão. Fomos feitos uns para os outros, e apenas não nos amávamos, por que eramos homens perdidos na selva, tentando sair de lá, e nosso capitão não sabia direito se o amor existia, ele apenas dizia que odiava amar, e que não permitia "amor" em seu pelotão:

-Não amo vocês... Calem a boca - era lacônico como sempre.

-Mas, capitão - provocava Vic. O amor é a chave para qualquer relacionamento...

-Mandei calar a boca, Vic! Olhe lá pra frente.

Vimos. Um tanque, sete vietcongues a pé, um na torre de metralhadora do tanque; vinham à mais ou menos um quilômetro e meio de distância. Nos separamos e nos metemos na mata.

O grupo deles vinha tranquilamente, como se não soubessem de nada de que uma guerra estava acontecendo - estavam conversando sobre qualquer coisa distraidamente. Pliskin jogou umas minas atrás de algumas pedras na estrada, e se escondeu perto de Blitz; Blitz pegou a L.A.W. (lança foguetes), deitou-se e ficou à postos, detrás de uma árvore, quase imperceptível para quem vinha num fim de tarde à seu encontro; Eu e Scal ficamos à uns trinta metros dos nossos rapazes, detrás de moitas, escolhendo, desde longe, quem acertar; Whisky e Sorriso estavam atrás de nós. Sorriso com sua M-16, e Whisky com uma AK, escondidos como podiam; Psy e Vic estavam na ponta da formação, esperando os chinas chegarem próximos, a ponto de lançarem seus obuses; o Iron estava perto de mim, com uma granada em cada mão, com os pinos já soltos.

-Me cubram - ele sempre dizia isso e desaparecia.

Os charlies chegavam cada vez mais próximos. Toda nossa formação levou uns dois minutos para ficar pronta. Pliskin sussurrava ordens básicas com as mãos, e Blitz imediatamente atirou com sua L.A.W.: O tanque fora tirado de combate, sem antes atirar seu único obûs bem atrás de mim e de Scal: Sorriso visitou o Céu naquela tarde.

Eu e Scal começamos a atirar, acertando dois vietcongues - o meu jazia morto. O dele foi atingido no joelho, e caiu. Whisky correu para ajudar Sorriso. Iron desapareceu. Vic e Psy atiraram com seus lançadores-de-granadas. Vic errou, acertando bem atrás de todo mundo, e soltou um palavrão:

-FFFFFFFFFFFFFFFFFfuck(esse soou bem assim, não pude deixar de esquecer do modo particular de como Vic praguejava em outros idiomas)!

Psy acertou novamente o tanque, eliminando, assim, seu metralhador, já moribundo. Pliskin saiu da formação (!), pegou sua AK-47 e começou a fuzilar quem estava em sua mira. Com isso, três VC's (vietcongues) morreram, dois deles pisando nas minas do capitão. Scal e eu recarregamos e encerramos o serviço - acertei o meu na região do coração, e Scal acertou o ombro do último que estava em condições de lutar.

O vietcongue que fora atingido no joelho tentou, mas Pliskin tirou a pistola dele de suas mãos com um chute, e estrangulou o coitado com um "mata-leão", quebrando seu pescoço.

Silêncio por alguns segundos...

Mais silêncio, olhares perturbadores, um assovio distraído vindo de um pássaro no meio da selva, o vento que voltou a trabalhar, o som das armas sendo travadas, recarregadas e prontas novamente para mais um dia de serviço, o fogo que era cospido do blindado, dos choramingos de nossas vítimas ainda vivas, e de Vic resmungando que seu lançador de granadas estava mal-ajustado.

-Esta merda não está funcionando, Whisky! - berrou.

-Como não!? - Whisky ficava particularmente nervoso quando diziam que algo que ele consertara não funcionava direito. Correu até Vic, arrancou o lançador de granadas das suas mãos e começou a observá-lo com "olho de joalheiro", analisando cada centímetro da arma.

-Sabe? Estou começando a gostar disso. Nunca conseguimos fazer algo tão bom em toda nossa vida - comentei.

-Desde quando matar pessoas é bom, seu assassino? - disse Psy; todos sabiam de mim.

-Vá se foder - disse, pausadamente.

-Calem-se - Pliskin -. Vejam se todos estão mortos, e veja se o Sorriso está bem.

-Ele está bem sim. Está no Céu - informou Scal, em lágrimas.

Ouvimos uma explosão de granada, há uns quarenta metros da mata. Pliskin e Blitz (já com a L.A.W. recarregada) se viraram e apontaram suas armas à direita da estrada. Era o Iron, coberto pela capa, que saiu com uma faca ensanguentada na mão, uma granada na outra e com um olhar de ódio.

-Nunca mais me façam isso! Sobrou um, que fugiu pra mata! Cacete! Não conseguem mais fazer as coisas direito? - eram oito charlie's, não sete.

Demos risada. Éramos uma família, e sem o Sorriso, eramos agora sete, também.

Não falávamos de "paz" no Vietnã, nem em lugar nenhum na Terra. Éramos um bando de moleques que pensavam que a "paz" iria resolver qualquer coisa, quando não consegue nada. Se não fosse a "paz", não estaríamos no Vietnã, não estariamos neste inferno, no Inferno, nem em lugar nenhum. Seríamos imortais, felizes e saltitantes. Sabe o que penso sobre a "paz"? Ela é um enigma.
Não conseguimos descobrir direito o que é paz. Falamos tanto nela mas não conseguimos fazê-la. É como sexo. Adoramos transar, mas odiamos mulheres. Somos tão hipócritas que não sabemos por que pedimos "paz" fazendo protestos e quebrando propriedade pública. Não sei por que tatuei seu símbolo no braço. Talvez por causa de Renée. Ela me mandou, certo dia no Vietnã, um desenho da "paz".

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Olhem bem para este símbolo, caros leitores. O que ele representa para vocês? Pensem bem. Coloquei em meu braço o mesmo desenho que esta maldita me mandou, juntamente com a palavra "ódio" escrita dentro deste símbolo. Eu odiava a "paz" dos homens e odiava Renée por ter me mandado esta merda como uma mensagem de que, mais uma vez, eu estava fazendo a coisa errada.

Pensem:

Se a paz realmente não existe, esta tatuagem estaria ardendo todos os dias, aqui no Inferno?
 
VIII *Anotação Especial*: Um pouco de Inferno

Saudações. Aqui é o Vic, o Grande. Estou escrevendo o que o John está mandando eu escrever... ok, estou apenas escrevendo o que ele pede. Ele está berrando coisas aqui sobre mandar. Ele me informou que é o tenente (pff) e a ordem é relatar a situação. Sim, senhor!

Vamos fazer um relatório sobre como o Inferno é. Será um manual de sobrevivência deste lugar. Quando vierem, mortais, leiam o manual antes de serem levados pela "Senhora Morte" para cá. Se não lerem, paciência, nos procure para mais informações em Da Nang, Acampamento Imundo número seis, barraco cinco. Ou na poça de lama no meio do matagal próximo ao "Acampamento Cinco". Ou em qualquer lugar que dificilmente encontrarão no Vietnã. Meio próximo do Laos. Ok, o John mandou parar por aqui. Já é informação demais.

O John perdeu o braço ontem e estamos escondidos neste buraco feito por morteiros para escrevermos. O John está dizendo que seu braço foi arrancado por um cara com uma katana. Eu desacredito, já que o corte não foi tão bonito assim, uma katana não faria tudo isso num braço só. Ok, John. Vamos ao que interessa.

"No Inferno não há nada que gostamos, desejamos ou amávamos no mundo dos vivos. É o Inferno (obrigado, Capitão Óbvio)!"

Para o John, não há carros potentes, não há loiras deliciosas nem cerveja gelada. O cigarro é escasso, e fumar um é aumentar sua pena em dois dias aqui, te dar câncer no pulmão (ele ta cospindo muito sangue, atualmente) e fez cair a maioria dos seus dentes, sem falar do hálito (ele não sabe que escrevi isso). Ele também reclama da falta de privacidade para qualquer coisa, como cagar ou bater punheta (desde que ele perdeu seu pênis, seu prazer consiste em cagar, fumar, escrever e ver pornografia). Agora que perdeu o braço, John reclama que Deus tirou seu dom de escrever para dá-lo mais inspiração depois, quando seu braço voltar (isso, pelos nossos calculos, vai demorar dez anos). Estou incumbido de escrever tudo que ele ta mandando eu escrever, e prometi a ele que não mudaria uma linha sequer. Ele deixou que eu fizesse meu relato, como troca. Foi mal, Johnny, os parênteses você pode apagar, depois.

Para mim, o Inferno não tem nada. Nada.

Perdi meus tabuleiros de RPG, meus dados, minhas anotações de livros e aventuras à mestrar. Perdi meu valioso "Livro dos Monstros, o Manual de Sobrevivência contra Zumbis (este foi feito com a ajuda do John e umas idéias vindas do Iron e do Whisky), meus pais, meu irmão Phillip (ele estava na Europa quando fui para o Vietnã terrestre), o Kojiro (meu cachorro assassino) e as cervejas, Coca-cola (nunca vimos uma aqui), canetas, lápis (o John me emprestou esse, e não vou devolver) e a vida, óbviamente (John está berrando aqui, ja volto).

Certo. Seu braço estava sangrando. Problema resolvido.

Ele me falou que está sentindo saudades. Injetei um pouco da minha morfina nele para acalmá-lo e fazê-lo esquecer das saudades. "Quando sentimos saudades (espere, John está choramingando, e não entendo nada do que ele está falando), podemos sumir. Não quero sumir agora, cacete. Eu preciso terminar esse livro. Eu tenho que terminar esse livro, eu tenho que..." (ele dormiu, agora).

Amanheceu, o John acordou, e o que sobrou de seu braço está limpo. Ele mandou eu buscar a outra metade do braço dele. Já voltamos.

(Quatro meses depois da ultima anotação)

Olá, achamos o braço do John, mas jogamos fora por que apodreceu. John não deixou que vendêssemos ele para conseguir cigarros. Ele me falou que não quer ver seu braço como "troféu" ou algo assim. Espere, ele vai brigar comigo de novo.

Pronto. Ele dormiu. Me pediu para escrever um pouco sobre os "tipos" (prefiro chamar de "facções") que encontramos no Inferno. Avisamos que não devem ler isso caso não queiram saber daqui, essas informações são apenas para demonstrar o quão difícil é a vida no Inferno, e para deixa-los com medo de virem para cá. Vocês sabem que virão, então evitem aumentar sua pena "por aí". Estão avisados.

(John não me deixou colocar os "tipos" agora, vou esperar ele dormir de novo para começar)

O Inferno se parece demais com a Terra. Temos árvores, sol, nuvens, vento, mares, e possivelmente, outros continentes inteiros. A comunicação de nosso lugar com outros lugares é inexistente. Tentativas de sair da "região Guerra do Vietnã" são passíveis de "punições" e aumentos de pena. "Sair" não é uma escolha.

Sabe-se, (segundo o John), que o Inferno é um lugar. Estamos nele agora, aliás. (John vai me bater, já volto)

Sabe-se que o Inferno tem todas as condições necessárias para um ser humano sobreviver. Há comida e água. Mas ambos só são meios para existirmos aqui. O fator mais importante, para nós dois, para sairmos daqui é sobreviver. Caso quisermos comer e beber, temos que ir buscar em outros lugares que, em geral, não estão perto de nós. Um rio, por exemplo, que tem água "bebível", fica exatamente dentro de um campo vietnamita. Comemos o que podemos encontrar aqui. Caso comemos algo estragado, sofremos os mesmos problemas que sofriamos na Terra. E geralmente tudo está estragado. Logo, nossa vontade de comer é anulada, nos deixando "vivos" no Inferno por mais tempo sem precisar colocar nada na boca. O mesmo ocorre com a água...

(Cinco anos depois)

Aqui é o John, estou escrevendo com a mão esquerda. Não permitirei mais Vic escrever aqui. Acho que perdi um "amigo".
 
IX- Dez

Meu braço voltou.

Ele reapareceu ontem, quando acordei na enfermaria. Vic e eu já somos amigos de novo, mas ele ainda está proibido de tocar nestes papéis.

Consegui uma agenda telefônica com um china por aqui, e reescrevi tudo que tinha anotado nesses ultimos anos. Fiquei uns sete meses tentando escrever direito, já que parece que descobriram que estou escrevendo.

Quando o china me perguntou o motivo pelo qual queria uma agenda, disse que era para escrever. Quase cagou de tanto rir.

Faz mais de dez anos que estou escrevendo isso. Mas não sei quanto tempo faz que comecei a pensar em escrever... Todas as vezes que pegava em um papel e caneta eles me machucavam...

Na Terra, eu tentava escrever alguma coisa romântica ou sincera, e a caneta chegava a estourar, ou o carteiro entregava o papel todo amassado, de volta para mim. Sempre tive problemas com a escrita. Tentava desenhar, mas todos achavam meus desenhos bobos. Acho que eram mesmo (eu costumava desenhar carros, demônios pilotando carros e coisas estranhas na carteira da classe)... Uma vez estavamos na classe fazendo um trabalho de alguma coisa que já esqueci, e apareceu uma equipe de filmagem. Começaram a mostrar as crianças desenhando ou escrevendo, e comecei a desenhar, distraidamente, o rosto do diretor que estava falando para o que o jovem camera-man deveria focar. Estava ficando tão bom, e tão legal, que as outras crianças começaram a rir, e o diretor percebeu. Me pegou pelo braço e berrou comigo lá fora, e comecei a chorar, de susto, medo, sei lá.

Voltei para a classe choramingando, e continuei o desenho quando ele foi embora. Adcionei chifres e uns dentinhos de vampiro em sua boca. Ficou mais engraçado do que legal.

Por que estou lembrando disso?

De qualquer forma, minha vontade de escreveu ficou "presa" em mim desde criança. Queria fugir para as mãos de alguem mais talentoso e mais forte. Pena que a peguei de volta.

Escrever, amigos, é a forma mais gostosa de se expressar. Tenho a liberdade de colocar nestas folhas meio sujas tudo o que penso dos desgraçados que se envolveram comigo, todas as mulheres que sacaneei e todas as cervejas que bebi, se assim o desejar. Estou livre para escrever quem fui e quem eu não fui. Posso escrever como meus amigos se pareciam para mim, e deixa-los legais ou malvados. É foda escrever, mas [borrão de caneta, prestes a estourar]

Entendi, saco. Acho que Deus quis dizer que não posso escrever como quero. Como queira (insira uma obscenidade à sua divindade terrena mais próxima).

Certo, estou usando um lápis agora. É o único toquinho que me resta, então vou logo para este capítulo.

De volta ao campo, no Vietnã.

Cerca de oito meses depois que saí de casa, nasceu Mary. Ela era linda! Pesava exatos 4,8kg e era minúscula! Pelo que via nas fotos que Suzie me passava, ela poderia caber na minha mochila do exército, junto com todos seus ursinhos de pelúcia. Tinha cabelinhos pretos como os do papai, e os olhos mais lindos que Deus criou em toda a Criação. Aqueles castanhos eram de mamãe. Aquele sorriso era... não sei.

Ela era a fotinha colada dentro do meu capacete, e qualquer china, comuna, americano ou cubano não conseguia tirá-lo de mim. Era a vontade que guiava meus pensamentos de volta para casa. Era minha filha! Suzie contava todos os detalhes técnicos dela quase toda a semana pelas suas cartas, fotos e tudo mais. Teve um dia que ela colocou seu pezinho em um tinteiro e manchou a folha da carta que escrevia. Teve outro dia que fez os mesmos com as mãozinhas [a ponta do lápis quebrou]

Ok, Pai Eterno, vou escrever como queres e parei de "corujar" Mary-Anne.

Suzanne e todo mundo mandavam-me cartas sempre, todas as semanas. Mamãe, Suzie, e até Renée (como dito, anteriormente) escreviam de tudo. Renée virara uma hippie suja. Me contou que terminara com aquele infeliz que nunca soube quem era e agora estava viajando pela América, mendingando (ou, devo dizer melhor, "negociando sua entrada") para ir de cidade em cidade e cantar babaquices do Jefferson Airplane ou de uma tal de Janis Joplin. Me mandava as letras e até fitas com algumas singles. Aquelas fitas rendiam uma boa grana para comprar erva. Aliás, Renée me falou como era interessante "expandir seus horizontes" através da "magia". Resolvi tentar um pouco da "viagem de avião pelo mundo sentado em uma colina" que ela sempre me falava.

Num dos dias que Pliskin havia "sumido" novamente, juntei quem gostaria de ir para o pico "Johnny's Ranch" (não era em minha homenagem, era a outro Johnny, um careca, que era o que mais nos conseguia "coisas mágicas"), uma colina próxima ao campo onde me falaram que os soldados se juntavam para se chapar e encher a cara. Todos os rapazes foram, com excessão de Blitz, que tinha que esperar pelo capitão para inventar uma desculpa qualquer sobre o por quê termos ido "desarmar umas minas terrestres na mata", e do Vic, que sempre odiava fazer qualquer tipo de "trilha", mesmo sendo "trihas mágicas", não lembro ao certo o por quê deles não terem ido. E fomos.

Chegamos ao topo sem dificuldades, apenas escorregando em algumas pedras molhadas e difíceis de subir. Quando aparecemos num conjunto de pedras estratégicamente posicionadas, parecendo um lugar realmente propicio para pararmos, fazermos uma fogueira e cantar musicas de escoteiros, e paramos por lá.

O primeiro desafio foi a fogueira:

-Ok, precisamos de folhas secas, gravetos e uma lupa - Whisky já estava "limpando" o chão rochoso para fazermos fogo.

-Desculpe, champs. Mas o sol já foi. São quatro da tarde e você nunca vai fazer fogo assim - indagou Airon, que surpreendentemente topou em ir.

-Não, Whisky, pegua seu esmeril - Scal estava colocando sua mochila no chão.

-Puta, cara, eu deixei ele com o Vic, e ele não veio.

-Boa, fera - resmunguei, sentando na ponta da colina para ver o que tinha embaixo.

-Ahh, cara! Por que você deixa as coisas com o gordinho quando ele nunca vem?

E a discussão continuava. Aquele lugar era realmente bonito. Valia as duas, três horas de caminhada que dávamos. O nevoeiro cobria tudo abaixo da gente, e no céu despontavam algumas estrelas, que diziam que não estávamos mais em casa.

-Pronto - Scal, juntamente com Psy, juntaram as folhas secas e alguns galhos que estavam em volta da clareira - Levanta a bunda daí e passe aquele seu canivete maroto!

-Tá... - eu tava sem vontade de dizer alguma coisa lá.

Quando estava jogando o canivete nas mãos de Scal, uma rajada de vento soprou. O canivete quicou nas mãos do Andy e caiu no chão. Eu olhei para cima e vi nuvens. Nuvens explosivas. Elas estavam em um formato bem bizarro de explosões, ou fogos de artifício colorido... expliquei a cena para o Scal:

-... Ah, espera aí. São as folhas das palmeiras.

Todo o grupo gargalhou. Nos sentamos e começamos a conversar baixinho, para não atrair a atenção dos mosquitos, chinas, americanos, ou de toda a guerra que estava lá em baixo.

-Lembram daquela vez que jogamos Dungeons & Dragon's e o John berrou "LEEEEEROY JEEEENKINS!", correu para o calabouço e fomos destroçados pelos orcs?

-E quando o Arthur deu aquele tapa nele?

-Cara, se aproveitam de mim só por que to chapadão. Putz, eu quero andar, preciso de ar. Vamo, Vic? Ah, espera, ele não ta aqui... Psy?

-Ta, eu vou.

Nem preciso dizer nada, não é? Era a quinta cerveja, a quinta ou a sexta "copada" de rum (esse, bebido toda pela manhã, de uma vez), sem falar das mágicas, cigarros, calabouços, dragões que soltavam fumaça roxa e bolinhas que quicavam e explodiam... Eu tava realmente mal. Mas, aqui onde estou agora, me deixa com saudades daqueles dias. Eram bons, e nem notei.

Psy me levou para um pouco mais adiante na trilha, acho que uns trinta metros, e apaguei.

Acordei com um pouco de bílis roendo a garganta, e continuei vomitando todo aquele dia 31 de dezembro. Lembrei agora, era fim de ano! Havia uma trégua, de vez em quando, com todo mundo, e decidimos comemorar mais um ano de sobrevivência de tudo! Nossa, agora lembrei que o Blitz estava de licença, por menções heróicas e foi receber uma medalha ou algo assim em Tóquio. O Vic não foi por que conseguiu ir para a praia com umas vietnamitas e mais alguns amigos e voltara só no dia seguinte, o que acordei depois da bebedeira. Foi ele, aliás, que me acordou.

-A noite foi foda em, campeão - me oferceu uma xícara de um liquido amarelado.

-Cara, não me zoa só por que to assim, quem mijou nisso aqui?

-Não é urina. É um remédio pra te deixar melhor.

Não acreditei e bebi. Mas a ressaca passou, um pouquinho.

-Nossa, ele já acordou? Posso mijar nele agora? - um soldado aleatório, de passagem na tenda.

A tenda toda estava vomitada. Meu catre estava nojento. O chão estava vomitado, com alguns jornais sujos cobrindo minha nojeira toda.

Li nos jornais vomitados uma matéria sobre a guerra. Ele me lembrou que eu ainda estava nela. Não em um dia de bebedeira com amigos em casa. A realidade vomitada ainda me fez rir um pouquinho, tossindo mais bílis no chão.

-Cacete. Preciso de uma cerveja. Que horas começa a contagem regressiva?

-O ano novo já passou. Feliz ano novo, aliás - Whisky entrou, com uma câmera (ele sempre aparecia com uma câmera na hora certa e no momento errado), bateu uma foto de um John bêbado, sujo, e alegre.

E pensar que fiz tudo aquilo por que estava querendo encher a cara como um louco para esquecer Renée, e acabei me divertindo no processo. Whisky ainda revelou a foto e a mandou para um jornal. "You 'Thu' be free", o periódico favorito dos soldados rasos, hippies-em-armas e alguns outros jovens no Vietnã. E no Inferno. Ele acompanha e registra todos os momentos cínicos, aterrorizantes e completamente dispensáveis em tempos de guerra.

-Ah, merda, cara. Faz o que você quiser com minha foto, você é um pirata.

[Continua]
 
X - Eu vi Deus, vestido de mulher, de papai, sem calcinha...

Era um dia de um verão entediante qualquer. Estava entediado por que estava no meio das férias escolares, sem dinheiro, sem ninguém por perto para me perturbar ou animar. Estava "quase" sozinho.

Papai brigava ao telefone com alguém, e eu não queria estar lá.

Peguei meu mini-game e fui brincar na rua. Estava sentado na frente de casa, distraído, matando alienígenas em outro mundo.

-Ei. Oi, você ta jogando o que?

Ela se sentou do meu lado. Era Liv.

Ela estava com uma saia indiana e uns chinelinhos de dedo simples. Uma regata amarela e uma tiarinha sem graça. Tinha óculos pequenos, porém deixava seus olhos grandes e bem cintilantes. Tinha um sorrisinho timido debaixo dos aparelhos rosinhas. Estava sem calcinha, também.

Como notei aquilo com meus dezesseis anos? Ela tinha uns dezesseis também, sei lá. Mas ficava olhando mais para lá do que para meu mini-game ou para a vida. Ela falava e falava de como acabara de chegar da Flórida ou de sei lá de onde e estava adorando a vizinhança.

Deixei ela jogar, enquanto me divertia vendo outra coisa. Acho que foi a primeira vez que vi algo parecido na minha vida. Depois daquela tarde "entediada", pesquisei mais numa banca na esquina, dois dias depois.

-Sai fora, moleque do caralho. Você ainda precisa sair da punheta do seu pai pra ler isso aqui!

Não havia entendido aquilo na hora. Acho que só ri da piadinha dele com uns dezoito, dezenove... Mas enfim...

Pela primeira vez havia visto algo nas garotas que me atraíra a curiosidade. Com meus dezessete, dei meu primeiro beijo, em uma menininha gordinha, quando ela me deixou de carro em casa. Tentei vasculhar mais aquele corpo, mas ela delicadamente tirou as mãos de seus fartos seios. Fiquei muito embaraçado, mas não parei de beijar.

Aos dezoito, tive minha primeira experiência sexual de fato, foi com Renée. Ambos não sabiam o que fazer, então não vou perder meu precioso tempo de dez mil anos descrevendo a cena tragicômica.

Aos dezenove, conheci uma mulher simpática, diretora da escola vizinha da minha, que me chamou para ouvir umas músicas e discutir qualquer coisa. Ela tinha uns 34, 35, e foi minha professora de muita coisa.

-Vê, John? Você não é tão ruim assim. Você gosta de Mozart! - ela me deixava embaraçado, num sei por que.

-Ah, senhora Krapabel... eu preciso ir, tá?

Nos beijamos e dormi com ela.

E dormimos no dia seguinte, também. Por toda a semana, passava na casa dela e ouvíamos muita musica, comiamos um montão de porcarias e fazíamos algo entre amor e sexo. Ela sabia me deixar fácil, e eu também.

Dois meses depois, mais ou menos, ela me deu uma idéia maluca.

-Sabe, posso comprar isso para você. Estavamos em uma loja de departamentos, passando por uma vitrine de roupas chiques. Estava apontando para um terno muito bonito.

-Desculpe, ma'am (a chamava assim), mas não quero. Não mesmo, tá?

-Por que, John? Eu compro presentes para meu filho, ainda (risos). Por que não posso comprar para meu amante?

-Ah... é que... - eu era (?) uma anta.

Ela nunca me deu nada de valioso ou material, apenas "amava-nos". Fazíamos sexo despreocupados de horários, trabalhos, responsabilidades ou camisinhas... Era algo bizarramente bom. Eu adorava aquilo e ela também. A diferença de idade me mostrou como as mulheres de verdade eram mulheres mesmo. Elas bebiam, comiam, provocavam com o que tinham disponível e depois nos atracávamos num sofá como pessoas numa espécie de êxtase carnal, pecaminoso e delicioso! Eu amava aquilo tudo. Dizia que a amava, mas nem eu sabia o que era "amor" direito. Então só nos encontrávamos em seu apartamento no centro e aproveitávamos a bela noite que nos protegia.

Meu pai nunca me perguntou por onde eu dormia ou ficava. Só dizia, quando chegava em casa:

-Trouxe o cigarro que pedi?

E lá ia buscar seu Marlboro.

Como era delicioso apaixonar-se, cair numa cama grande e estar nela por horas, até dias... seja dormindo, transando, falando besteiras ou filosofando sobre Deus e a Terra e o Inferno. Como ingênuos e felizes eramos!

(mais uma vez a caneta explodiu)

Ela (a diretora) me disse que seria minha amante sempre, quando eu quisesse. Fui um tolo por não querer continuar ao lado dela. Imagino o que perdi quando ela me disse, quando informei que iria embora sem dar o habitual "até amanhã".

-Sabe, John. Deus é isso - estávamos nús, abraçando-a por trás, só abraçando, observando nada além de cortinas e luas e estrelas - Deus é tudo isso aqui. Este momento, este lugar, esta noite.

Puta que pariu. Como fiz tanta merda na vida? Se soubesse que o Inferno era igual a Terra, teria pecado mais?

(a carga da caneta estourou, sujando todo o papel)

Seria isso um sinal? Teria Deus confirmando o que disse, ou o Diabo discordando? O que foi isso?

Enfim... escrever tudo isso está me deixando com mais vontade de escrever. É meu vício, minha virtude, a excessão que concederam à mim. Meu pecado e meu registro. Direi aqui tudo que minha consciência pedir.

(mais um sinal, a janela da enfermaria trincou)

Vic acabou de sair. Me disse que teve umas idéias malucas em como conseguir pegar o Diabo. Escreverei sobre depois.
 
XI - E então vi um "deus", criado e imaginado por Pliskin

Eis que chegou o dia de minha verdadeira jornada.

Pliskin apareceu na minha frente.

-Hora de ir. Você vai vencer seu maior medo, inimigo, desaforo e vai morrer se não conseguir.

Pegou-me pelo colarinho. Não queria ir. Não aquele homem!

Chegamos no meio de uma mata fechada, jogados de para-quedas, saltamos de um B-52 que estava sozinho, sem compania de caças, helicópteros ou qualquer coisa, nem estrelas.

Foi um salto aterrorizante. Pliskin me empurrou e se grudou em mim e saltamos por uns quatro quilômetros de gritos, desmaios, choramingos.

-Cacete! O que você tá fazendo, seu desgraçado!? Me ponha de volta no chão, no avião, em qualquer lugar! - desmaiei.

Acordei com um "balde de agua" vindo do cantil do meu capitão. Ele queria me matar!

-Não fale nada, estamos no meio da mata dos charlies. Pegue seu rifle, e jogue o resto fora.

O que ele queria!?

-Vai logo. Uma tempestade de napalm vai nos carbonizar em seis horas se não sairmos daqui.

Ele não estava bem. Estava com seu uniforme "padrão" (uma camisa de flanela preta e suja, um cinto cheio de bolsos e granadas e pistolas), segurando um rifle que nunca vira antes e com o rosto todo pintado. Eu também. Ele me pintou com cores de um lobo selvagem que caça qualquer coisa à noite.

-Cara, me explica o que você ta fazendo primeiro?! Qual seu problema, seu débil-mental? - eu berrava.

-Se não calar a boca, corto sua língua.

E cortou mesmo. E prometera cortar meu pescoço se não parasse com o barulho.

Andamos por duas horas, chegando em uma vila abandonada. Até aparecer seus moradores. Fantasmas vestidos de animais selvagens, usando boinas, chinelos de palha, calças esfarrapadas e uma ou duas armas. Alguns tinham olhos puxados, também.

-Esse é o John. Ele é mais um de nós, agora. Não pode dizer nada por que não pode. Bem vindo, caçador.

Ele pirou. Eu pirara. Estava em outro lugar onde todos haviam enlouquecido!

Andamos por mais umas duas horas até chegarmos noutro acampamento. Este estava em plena movimentação. Homens e homens carregando armas russas, americanas, chinesas... Mulheres colocando munição em pentes vazios, montando algumas bombas que não decifrara, com tanta delicadeza e paciência como montadores de navios em garrafas de vidro. Fiquei parado por uns quarenta e cinco minutos com um pano na boca para parar o sangramento. Estava tonto, mas observando toda aquela movimentação arrepilante.

-Este é o inferno - Pliskin se sentou ao meu lado, acendendo um cigarro de palha.

Balancei a cabeça, como se disesse "não, não é, seu maníaco".

-Este são os demônios, e eu sou o diabo - continuou.

Dei risada.

-Você não acredita, mesmo depois de ter arrancado você do mundo dos mortos e te colocado no mundo dos vivos?

Balancei a cabeça negativa e lentamente, delirando com alguma coisa que estava encharcada no lenço.

-Então morra. Você não merece estar aqui - levantou e saiu caminhando.

Desmaiei. Acordei. Desmaiei novamente. Não me lembro das sequências, nem de quantas horas se passaram. Acordei com uma enorme explosão. Estava tudo em chamas, e fui carregado por alguem ou alguma coisa até um rio.

Acordei com a brisa da manhã. Abri os olhos e vi Pliskin me encarando, e segurando um jornal velho e vomitado.

-Lembra disso?

Era o "jornal vomitado" do ano novo.

-Esse é seu passaporte para o céu. Cuide dele - meteu-o no meu bolso da jaqueta - Pegue isso, também.

Me deu um rifle estranho, cinco projéteis de 7,65mm e um objeto composto de massa e pregos, e um controle remoto.

-Esse é seu ultimo amigo. Chame-o do que quiser. Essas, são suas filhas. Dê um nome a cada uma, também. Isso, é C4. Os pregos são abelhas presas, prontas para avançarem no primeiro que virem. Coloque a C4 em alguem, quando puder, e deixe-o correr até seu alvo. Exploda-o com isso, quando sentir que irá acabar com seu inimigo.

Apaguei novamente com tamanha insanidade. Sonhei estar vendo a ruivinha drogada dentro do Chevy Nova, levantando-se e se aproximando de mim, nua. Estava com os cabelos se movimentando como uma Medusa e seus olhos cintilantes e pretos estavam me chamando para ela.

-John? - ela sussurrava, mas sua boca não se movia - John?

Vi o negro abraçando aquela ruivinha e me encarando de forma visceral. Estava com uma seringa de adrenalina, pronto para injetar no coração dela. Mas não o fazia. Não movia-se nem dizia nada, apenas me encarava, como uma múmia ou algo que não soube identificar à tempo...

Vi Renée. Estava transando com uns loiros, cabeludos, fedorentos. Estavam todos rindo de mim. Comemorando o fato dela estar com eles, e não comigo, eu acho.

Vi algo parecido com aqueles xamãs da região do Arizona segurando uma garrafinha branca com desenhos dos Simpsons, Flinstones, Jetsons, Thompson's. Ele me encarava de maneira misteriosa e segurando a garrafa como algo que deveria tocar. Estava tentado a pegar aquela garrafa, e, ao fundo dele, via um enorme deserto. Nuvens em forma de cavaleiros negros batalhavam contra um sol que teimava tocar o horizonte. Um trovão horripilante me empurrou para a garrafinha, e lembro-me apenas do índio amarra-la em minha cintura. Deu-me um peteleco no ombro, para ir em direção ao sol, e sussurrou, sériamente:

-Caso esteja com medo, pergunte à morte o que ela pode te propor.

Acordei. Vi Pliskin novamente, encarando-me dentro de um barraco que parecia mais um alpendre, de tão claustrofóbico que era.

-O que ele te disse?

Quem?

-Você bebeu do líquido?

Da garrafinha?

-A morte está lá fora, querendo conversar.

Me puxou e me empurrou para fora. Não sei se sonhara aquilo: Estavamos todos fora do alpendre, agora. A selva se fechava sobre nós como uma barreira verde indestrutível. Uma mulher, gorda e risonha estava segurando uma pedra enorme.

-Diga a ela como proceder - disse Pliskin.

Ela começou a dar risada. Pegou um cantil que estava preso no meu cinto e derramou a água sobre a pedra. Esta pedra ficou da cor do sangue, e ofereceu a pedra a mim.

-Este és el sangre de tu pecado - seu espanhol era péssimo.

Bati minha cabeça contra a pedra, quase que instintivamente, para desmaiar. Acordei sob tapas de O'Reilly, me questionando:

-Você não se arrepende dos seus crimes, criminoso?

Seus óculos escuros estavam se movendo. Chegaram próximos de meu rosto como duas serpentes querendo comer meus globos oculares. Uma delas passou a lingua em meu olho direito, queimando-o, e chiando:

-Você vê aquilo que queres ver - ela tinha a voz de uma menininha que conheci há muito tempo atrás, com meus 20, no campo. Não lembro seu nome, mas ela sempre tinha uma lís blanc, ou uma violeta lilás presa aos longos cabelos castanhos. Suas mãos eram fofas e suas bochechas, tristes. Passou as mãos em meu rosto e sussurrou:

- Venha para meu mundo... Olho por olho, e todos seremos cegos, John. Venha para meu mundo...

Acordei, aos berros. Pliskin me encarava, novamente, com um corpo carbonizado ao seu lado. Quando parei de berrar, secou o suor do meu rosto e pegou o corpo, dando-o a mim.

-Ele é quem destruiu sua família. Matou sua mãe, sua filha, e estuprou sua mulher. Foi ele quem saiu do inferno e veio dizer "olá, camarada". Ele foi julgado pelos deuses, e agora estou incumbido em entrega-lo à você. Faça o que bem entender com ele.

Aquela coisa toda estava me deixando com raiva.

Levantei-me, peguei aquele corpo e joguei-o carinhosamente ao meu lado. Pliskin deu uma risadinha cínica.

-Então é isso que faz com seus inimigos? Você os perdoa pelos seus atos?

-Ele não matou ninguém. Uma bomba caiu dos céus e acabou com este fulano. Você mandou que matassem ele, em seis horas. Você me trouxe aqui, no meio destes lunáticos drogados, e foi você quem me desafiou à matar quem deveria matar para poder voltar para casa.

-Nunca disse que iria voltar para casa. Não há mais "casa", John.

Minha lingua estava doendo muito, o corte de Pliskin não conseguiu joga-la para fora.

-Tire-me daqui. Ou sairei à força.

Riu como um safado. Pegou um cigarro e me ofereceu outro. Não aceitei.

-Vê, John. Você força tudo que tem pelo caminho. Já forçou seu caminho pela realidade, pela cadeia, pelo julgamento terreno, pela guerra. Podes forçar tanta coisa que podes forçar a realidade, agora.

Bom Deus, eu precisava sair de lá.

-Certo. Estou às suas ordens, meu capitão.

Pliskin me olhou com certa curiosidade. Seus olhos pareciam as de uma criança quando diziam a ele para sentar-se:

-Há um homem que quero que mate, antes de cumprir sua missão na Terra. Seu nome é Johnattan Arnoldville. Conhece esse homem, soldado "assassino"? - me encarava com a face virada, enfatizando o olho direito à frente do esquerdo, como uma raposa encarando sua pequena presa.

-Sim, senhor.

-Sabe que ele tem uma família, amigos, propriedades?

-Sim, senhor!

-E mesmo assim o mataria?

-Sim, senhor! A missão deste assassino é acabar com Johnnathan Arnoldville, senhor!

-Ótimo -pegou uma bandeja prateada, dessas que servem doces num asilo - Eis suas ferramentas.

Me deu uma bandeja com minhas armas "novas". Peguei a massinha com pregos.

-Consegue liquida-lo só com isso?

-Senhor, sim senhor!

-Ótimo. Vá em frente, ele está logo ali, no matagal. Vá caçá-lo.

Caminhei até a mata e joguei a massinha em direção à Pliskin. Ativei o dispositivo no controle-remoto e corri. Corri demais. Caí numa clareira e só acordei quando tomei um tiro no ombro. Desmaiei e só acordei bem longe de tudo aquilo.
 
XII - Apresentando Deus (representado por Samuel Jefferson)

-Olá, John.

Acordei. Ainda estava deitado na relva, dentro de uma clareira onde os pássaros cantavam sons estranhos, melódicos e pretenciosos.

-John?

Era o sargendo Jefferson.

-Sam? - indaguei.

Não era o sargento Jefferson.

Eu não estava mais aguentando aquilo tudo. Me levantei, limpei minhas calças sujas de folhas e...

Minhas calças estavam intactas. Não havia um fio de cabelo nela. Meu uniforme militar estava completo: Uma camiseta de flanela branca, minha calça verde-camuflada, meus coturnos encerados. Passei minha mão sobre o ombro - nada. Minha cabeça não fora atingida. Vassili errou?

-John, levante-se.

Eu ja estava em pé.

-Não quer conversar?

-Não com o senhor. Não é você, Sam.

-Sou, sim. Sou o Senhor.

Puta que pariu. Era Deus.

Em um momento parei e observei Deus. Era o Sam, com uniforme e tudo.

-Você não acredita em mim ainda, não é?

Não questionei. Ele poderia provar.

-Me desculpe, Senhor. Mas preciso voltar e encontrar meu acampamento, Pliskin me tirou...

-Eu sei o que aconteceu, John. Poupa-me de tua história.

Ele tinha olhos tranquilos, quase enigmáticos, como Sam. Tinha a bela voz forte e acalentadora, como Sam...

-Eu sou Deus interpretando Sam, Johnnattan. Estou agindo como ele para conversar com você. Sou aquele que mais admiraste na Terra para poder conversar com você...

-Mas Sam não era... - interrompi.

-Se Eu fosse Suzanne - me interrompeu - você poderia me agarrar. Se Eu fosse Mary-Anne poderias cuidar de mim como um bebê. Mas Eu sou Deus e vim aqui conversar com você. Não me interrompa mais.

Me calei, assombrado. Seus olhos eram misericordiosamente negros.

-John, você sabe o que fez para vir aqui?

-Eu... - não estava mais acreditando. Estava realmente "noutro" lugar - eu paguei pelos meus pecados lá em baixo, e vim parar aqui?

-Não - balançou a cabeça, calmamente.

-Senhor, não quero vir para cá ainda. Eu quero voltar para casa e cuidar de meus assuntos, e você sabe...

-John, acabou - me irritava muito Vê-lo me interrompendo toda hora.

-Impossível. Não tomei o tiro... - dessa vez me calei.

Do que estava falando? Desde quando morri? Fora quando pulei daquele avião? Quando Pliskin me puxou? Quando bati a cabeça na pedra? Quando foi, afinal?

-Você morreu, John. Isso é o que importa. Você morreu e veio para cá. Você fez muita coisa "ruim" lá em baixo.

Puta que pariu. Até Ele.

-Você pecou, John.

Mais uma vez me senti quando me levaram para aquele tribunal na cidadezinha vizinha de minha "prisão".

-Você pecou tanto que preciso mesmo falar com você. Você pecou, e não te arrependes! - elevou um pouqiuinho a voz.

Senti um calafio na coluna. Foi como um trovão me empurrando em direção de casa. Mas não havia mais casa. Não lá.

-Tu machucaste Meus filhos e não te arrependeste!

Comecei a chorar. Chorava como uma criança quando raios começam a cair próximos de mim. Caí naquele "chão", e fiquei olhando, apavorado, aquele Homem me dando uma bronca.

-Qual teu problema, John?! Está com medo agora de Mim, quando nunca o teve!?

Ele me fez pensar um pouco. Estava com medo do Ser que me criou. Por que estava com medo?

-Tu és como todos os assassinos desgraçados que aqui trago, todos os dias. Vem e temem minha misericórdia, e não conseguem se arrepender!

Do que diabos ele...

-Pegue teus registros! - gritou.

Olhei para a direita. Um livro negro enorme repousava sobre uma pedra, pálida como uma "pedra assustada". Me aproximei, engatinhando perante aquele Homem sentado a uns dez metros de mim. Eram meus registros. Abri-o, observando Deus me encarar de uma forma difícil de explicar. Era um livro de umas duas mil páginas, todos escritos com letrinhas minúsculas. Só de ver aquilo me aborrecia. Era tudo que fizera ao longo da vida. Tudo. De meu nascimento à minha morte. Abri na última página, e vi quando morri: John K. Arnoldville - morto em combate pelas mãos de seu maior inimigo. Não dizia nada mais.

-Senhor, o que aconteceu quando morri?

-Você deixou de viver na Terra.

-Mas... o que aconteceu, exatamente?

-Apenas isso basta, John. Tu morreste pelas mãos de um irmão. Tu estás aqui, agora.

-Eu quero saber exatamente o que aconteceu, Senhor Deus.

-Cala-te!

Aquele grito congelou minha espinha. Meus olhos se arregalaram e pude obvservar aquele Titã se levantar. Ele era igualzinho à Sam. Até em seu tamanho, uns dois metros, ou mais. Não lembro.

(não, não era)

-Página mil, setecentos e quarenta e nove. Segundo versículo, julgamento sete.

Obedeci. Era a última página. Estava ecrito "John K. Arnoldville - Negou o nome do Senhor: dez anos"

Era minha "pena". Acabara de ganhar dez anos a mais aqui.

-Notaste, John? Você não deixou de existir. Você ainda está em Meu Reino, andando em Minha Criação.

(O que diabos era tudo aquilo?)

-Página mil, setecentos e quarenta e nove. Terceiro versículo, julgamento oito!

"John K. Arnoldville - Profanou em nome do Senhor: duas semanas"

Aquilo era loucura. Estava aumentando minha pena gratuitamente!

-Página mil, setecentos e quarenta e nove! Terceiro versículo, julgamento nove!

Eu parei de checar o livro. Fechei-o, aborrecido demais para olhar meus pecados.

-Não vê, infeliz!? Continuas pecando em Meu Nome!

Tudo que pensava aumentava minha pena. Aquilo tudo estava "inflando" cada vez mais.

-Senhor. Manda-me para a Terra sofrer novamente toda minha pena. Mas manda-me para a Terra!

-Não, filho da puta! -aquilo foi estranho demais para descrever tamanho pavor - Tu pecaste contra Mim e ainda queres voltar para continuar tua obra? Pecaste contra Mim e contra Tudo que fiz para ti, infeliz?

-Cacete! - não liguei para a "pena" - Você está me segurando aqui em cima para quê, então? Manda-me logo para Seu Inferno e deixa-me pagar tudo que devo!

Olhei para trás, algo "aconteceu" ali. Vi uma escadaria que descia para "algum lugar" que já sabia para onde era. Voltei-me e olhei Deus nos olhos por algum tempo, seus olhos estavam cheios, cansados ou estranhamente confusos. Lembrei-me de Suzie, quando me olhava assim.

-Vá - disse.

-Não.

-Então te mando.

Meus pés congelaram. Senti-os moles, quase desmanchando. Caí como um pinto.

-John. Você não merece morar Aqui. Tu deves pagar pelos teus pecados, e quando pagar por eles, voltarás ao Meu Reino.

-Eu não quero voltar para cá.

Deus e sua fúria.

O chão tremeu, por alguns instantes. E O encarava agora, como alguém com sérios disturbios.

-Sabe, John? Meu unico erro foi ter dado a PORRA - este, completamente entonado e alto - do livre arbítrio para vocês. São livres para fazerem o que quiserem, e olhe como estás Meu Mundo agora? Está arruinado pelas suas guerras e suas moléstias. Não criei tudo aquilo que criaram. Minha Obra era ter apenas Meu Mundo.

-Nosso mundo está em guerra, Senhor. Por que não o livra das pestes e guerras?

-Não posso. Não posso interferir na vontade de meus filhos - me olhava friamente, agora.

-Não pode?

-Não consigo. Tento acabar com tuas guerras e vós não permites. Envio todos meus anjos para lá, e todos voltam com a mesma frase "Não conseguimos interferir com as vontades humanas". Vocês estão destruindo toda a minha Obra. Por isso mando-lhes para o Inferno, para pensarem no que fizeram e, quando pagarem, voltarem para cá.

-Como assim, voltar para o Céu? - indaguei, curioso.

-Para Meu Reino, idiota! Para caminharem Comigo. Para construirmos, Neste Meu Mundo, vossa fortaleza. Nosso mundo.

Não estava entendendo. Aquilo tudo estava embaralhado em minha mente como nunca nada esteve.

-Vamos caminhar - sugestionou.

E caminhei com Deus, por algumas horas.
 
XIII - Deus não estava bem

Caminhamos por algum tempo num campo gramado verdinho, perfeito e delicioso. Ele me ofereceu uma túnica e me pediu para tirar as botas, pois julgava estarem me incomodando.

-Não, Senhor. Ando com elas ha tanto tempo que já me acostumei com as dores... E nem quero tirar, acho que não vou gostar da sua... ah... droga...

Ele mesmo as tirou. A um segundo atrás estava caminhando com meus velhos coturnos de guerra, e agora estava andando sobre a Grama Divina. Só notei que estava sem meus calçados quando vi meus pés nus sendo refrescados sobre algo que não era grama normal, nem sabia se aquilo era grama. Era uma grama que não pinicava, não esfriava nem esquentava meus pés, nada que eu possa comparar com qualquer solo em terras americanas ou vietnamitas.

-Como se sente agora, John? - Deus estava caminhando tranquilamente do meu lado, agora trajando sua túnica branca e umas sandálias de couro baratas, porém pareciam caber perfeitamente em seus pés.

-Não gostei... ela está me fazendo sentir que devo ficar aqui. Mas Você sabe e eu sei que não ficarei caminhando e conversando Contigo por muito tempo...

-Você ficará aqui eternamente, um dia - me interrompe, novamente.

-Eu sei, mas... por que ainda estou aqui? - estava olhando em volta, como uma criança quando vai para um parque de diversões. As árvores não eram mais as mesmas da selva ou qualquer outro bosque americando onde estive. Eram seres imponentes, numa madeira que parecia vir de algum filme mitológico. Suas folhas eram finas, esvoaçando-se pela brisa, e eram grandes em volume, mas não muito altas, e assim podíamos ver o céu parcialmente coberto por cirrus preguiçosas e distantes. O sol estava pequeno, mas nos aquecia como numa bela tarde campal de domingo. Não havia nada que indicasse presença humana. Apenas mato, arvores, céu e morrinhos. O som de um riacho próximo acalmava meus ânimos, mas não o encontrava em parte alguma.

-Para você notar como este lugar é bom... - olhou em volta e abriu os braços, com uma cara mixada entre orgulho e felicidade - Sabe, John, este lugar costumava ser como a Terra há algum tempo atrás, mas vocês a modificaram a ponto de nunca mais voltar a ser como aqui é. Este lugar existe desde a Minha Criação e nunca mudou. Eu sempre cuidei dela como cuidava do mundo de vocês. Mas olhe o que fizeram com Meu Presente...

-Senhor... você se arrepende de ter criado algo que não deu certo? - o observei nos olhos, meio que indignado; estavam olhando para os meus com uma certa angústia.

-Não é isso, John. Não criei nada que me arrependi de ter feito. Tudo que fiz foi para satisfazer vocês, meus filhos... Cada estrela deste Universo foi desenhado e implantado para vocês se locarizarem. Cada oceano que fiz foi feito para vocês se manterem, explorarem e navegarem. Cada grão de areia está lá para usarem...

-E não estamos usando nada que fez como querias... não é? - interrompi.

-Não é isso - balançou a cabeça negativamente, com um sorrizinho - Vocês simplesmente se esqueceram de usa-los como deveriam usar. Vocês exploraram o mundo, estão explorando o universo agora, mas estão fazendo isso de forma errada...

-E como deveríamos usar o que nos deu, Senhor?

-Ora, como achas!? - respondeu, rápidamente - Vocês estão poluindo Minhas àguas, destruindo Minha natureza e acham que, destruindo tudo que lhes dei irão alcançar Meu Reino?

Observei-o enquanto se exaltava. Estava com certa razão.

-Estamos procurando Seu Reino?

-Claro que sim, tolo! Estão procurando algum "atalho" para cá, quando o destruíram à eras! Agora estão criando foguetes e outras máquinas para subirem ás alturas, estão "artificializando" tanto Meu mundo que estão se distraindo da Minha Obra! Não estou lá, cacete!

-Mas o Senhor não é...

-Claro que sou onipresente, tolo! - gritou, eu ja tinha me acostumado com suas fúrias histéricas.

-E por que não diz isso a eles? - provoquei.

-Johnnattan! - me encarou, furioso - Achas que não aviso-lhes todos os dias que estou Aqui!? Achas que nunca mandei ninguém lá pra Criação para avisa-lhes que o caminho certo é o que estou tentando dizer? Nunca viu nenhum dos meus oradores em lugar algum?! Não procuravas, tolo!?

Pensei enquanto ele "metralhava" argumentos.

-Padres? - arrisquei.

-Eu não sei o que faço com esses padres! - olhou para cima, balançando os braços - Eu os guio para mostrarem o caminho certo e eles criam ícones e falsas acusações e livros sobre Mim! Não quero que escrevam sobre mim! Quero que eles guiem seus irmãos pelo justo caminho para Meu Reino... - balançou a cabeça, mais uma vez - eles não fazem nada além de pedirem dinheiro e orações e que Me amem, criaram templos enormes e luxuosos, elegeram superiores e apoiaram assassinos... não os ensinei para fazerem isso...

-O que queria que fizessem?

-Apenas queria que deixassem de ser padres... - disse, me observando nos olhos - já seria um bom caminho para ensinarem. Vocês não precisam de padres ou sacerdotes ou monges para ensinarem o que quero que ensinem... quero apenas que aconselhem seus irmãos pelo caminho dos justos... Sabe que outro dia vi um pastor dando uma bronca em um jovem só por que ele estava usando bermudas?!

Rimos. Realmente aquilo era meio absurdo.

-Eles querem ensinar morais... querem dizer o que devem falar e o que devem pensar... mostram aos meus filhos que devem ser como eles, e não como quero que sejam... Alguns até me esqueceram para falarem só de Jesus ou só de Salvação...

-Espera... então... - estava inseguro - Jesus realmente...

-Em parte. Ele não curava. Ele ajudava. Este meu filho ensinou que deveriamos amar e ser justos. E o que vocês, filhos da puta, fizeram?

-Eles o crucificaram...

-Exato. Vocês o crucificaram! Vocês pegaram aquele que escolhi para guiá-los e o destruíram, negaram seus ensinamentos! Vocês Me mostraram que não queriam mesmo ser salvos! Então resolvi ensina-los da pior maneira.

-Criou o Inferno.

-Ele sempre existiu, John. Mando pessoas como você para lá para se arrependerem todos os dias. Sabe quantos anos Adolf Hitler ficará lá até deixar de odiar seus irmãos?

-Não.

-Não queira saber. Ele certamente nunca sairá de lá. Esta lá ha uns trinta anos, culpando os judeus por estar lá. Esse nunca vai mudar - deu uma risadinha.

-E... quem mais esta lá?

-Não vou te dizer. E você nunca encontraria, se assim o desejasse.

-O que é o Inferno, então?

-É para onde vai. Saberá o que é quando pisar lá. Você deverá ficar lá o tempo necessário para estar pronto para voltar. Desça aquela escada - apontou para trás, e vi novamente a escadaria sombria - e começará a se preparar.

Observei aquela escada novamente. Não tinha tanto medo de desce-la, mas não sei se queria ir naquele exato momento.

-Você se arrepende do que fez na Terra? - indagou.

-Não, Senhor...

-Por que?

-Por que aproveitei cada instante daquela vida. Meus atos me levaram para tantos lugares que nunca me arrependi onde estava e que nunca me deixaram com vontade de morrer.

-Mentes - me olhou com um sorriso gozador.

-Ok... eu pensei em morrer, mas nunca deixei de viver.

-Mentes.

-O que foi, porra?

-Não vai se aprender tão cedo que mentes sobre isso, John. Está mentindo para mim agora como estava mentindo para você mesmo lá na Terra. Mentias que estava feliz e mentias quando estava machucando teus irmãos. Mentias quando dizia que amava e mentias quando lutava aquela guerra. Vivias de tantas mentiras que agora pagarás por elas.

-Alias... quanto tempo...

-Dez mil anos.

Engoli seco. Dez mil anos por tudo aquilo que fiz?

-Dobrei sua pena por nunca ter se arrependido de tudo que fizeste. Apenas este tempo será necessário para se arrepender, de fato. Agora vá.

Olhei aquele Ser por alguns segundos. Estava me olhando com uma feição que mixava amor e misericórdia. Suas mãos estavam segurando umas às outras, e estava de pé, esperando minha partida.

-Bom... - peguei meus registros - pelo menos terei algo para ler.

Rimos.

-Pelo menos nunca perderás este senso de humor que tanto Me agradas. Use-o com cuidado no Inferno.

-Tenho que rir para não chorar, Senhor. Era o que impedia que me detonasse lá na guerra. Mas não deu certo.

-Vá antes que me irrite - disse, com um sorrisinho.

-Ok... até algum dia. Ei, vocês tem aqui...

-Temos - interrompeu - e Budweiser também.

-Adeus, Papai.

Desci as escadas e vim para cá. Deus me deu bons motivos para voltar, mas não eram suficientes.
 

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