Sim.
Porque mesmo sem ter religião a sua vida é pautada por valores que você nunca vai conseguir reduzir a um pensamento puramente secular, por mais que você tente. A ideologia mais materialista ou neutra tem suas origens na escatologia cristã ou no universalismo helenístico, a moral ocidental está fincada no Tanach (Bíblia hebraica), nossas instituições jurídicas estão alicerçadas no Direito canônico da Igreja católica, nos mitos pagãos gregos e especialmente romanos e na lei judaica, nossos sistemas políticos se originam de teorias platônicas e aristotélicas com fortes tons esotéricos e pré-gnósticos.
Isso para não falar nas inúmeras realizações da cultura, artes, literatura, tudo com óbvias e fecundas influências religiosas e esotéricas. Nossa ciência mesmo, por mais que seja diferente da ciência antiga ou medieval, devem a teorias e rudimentos de pesquisas de pensadores islâmicos, cristãos e hindus seus fundamentos.
Eu acho muito difícil me embrenhar no terreno da cultura, e preciso fazer isso para compreender o mundo em que vivo, prescindindo da religião, do estudo dos fenômenos religiosos. Eles estão na base da civilização, até quando muitas vezes parecem atentar contra a civilização corrente, pois a religião pode tanto ser conservadora e parasitária quanto revolucionária e progressista, a depender das circunstâncias históricas e igualmente espirituais.
Agora sobre ter uma religião... Isso já é mais complicado.
Acredito que passei nos últimos anos a entender que meus interesses intelectuais nas religiões não têm absolutamente nada a ver com minhas aspirações espirituais. Acredito que esses estudos podem estimular alguém na fé, gerar interesse e alimentar a espiritualidade, mas podem ter, se isentos e realmente imparciais e cientificos, o efeito exatamente oposto. Podem destruir a fé. Foi assim que minha fé no cristianismo foi estatelada ao longo de muitos anos de estudo, não apenas teológico como histórico e antropológico, e percebi que por mais que admire intelectualmente as religiões hindus, por exemplo, não servem para mim, ou suas estruturas de iniciação, cultos, e seus valores não se coadunam com os meus. Tenho uma grande admiração por elas, mas é especialmente filosófica e estética, mas não me relaciono com seus símbolos senão de forma muito emocional e pouco profunda.
Hoje entendo que posso levar esses estudos sem ficar bitolado com pertencer a alguma dessas religiões, e isso é saudável. Tanto que recomendo isso a quem não possui nenhuma, ou é ateu ou agnóstico, não para se converterem, mas para aprenderem sobre elas, aprendendo, assim, sobre sua importância perene, seu valor profundamente humano, suas realizações culturais e morais, sua história, e seu valor fundante e fundamental para a cultura. Evitaria também leituras reducionistas dos fenômenos religiosos, os quais tendem a interpretá-los por algum viés ideológico ou pseudo-científico, ou mesmo religioso como o fazem as disciplinas teológicas (portanto, nada parciais) de História da Igreja, teologia dogmática, antropologia bíblica etc.
Falando expressamente sobre o valor profundo da espiritualidade, eu acredito ser muito perigoso não pertencer a alguma estrutura iniciática ou religiosa, é como sair em uma chuva torrencial sem guarda-chuva e capa. O mundo espiritual não é sempre agradável, belo e inocente, porque é expressão direta das leis cósmicas, objetivas e impessoais, e é afetado indiretamente pelo livre-arbítrio dos seres conscientes. Apenas a moral pode ser pouco, e sabemos como podemos cair de elevados princípios morais facilmente, de modo que não pertencer a uma linha espiritual legítima e reconhecidamente tradicional é correr grande risco. Além disso, quanto ao envolvimento pessoal, até emocional, não sei se ele é tão necessário, pode ser até danoso, porque nossas emoções e vontades mudam e isso pode nos levar a caminhos inesperados e que não planejaramos inicialmente. Acho que a emoção pode ser um grande combustível para a vida espiritual, em qualquer via, tradição ou atividade em que nos envolvermos, mas não pode ser a única sob pena de nos vermos como em um relacionamento que começou bem, como uma lua de mel, mas que pode ficar tóxico, desagradável e rançoso e nem sempre é fácil arranjar o divórcio. E toda ligação espiritual profunda deixa sequelas...
Olhando minha própria caminhada no judaísmo, as dificuldades financeiras que isso enseja, o obstáculo da comunidade judaica brasileira que é tão fechada e isolada, a dificuldade de se ter um amparo espiritual fácil, e o estado frequente de abandono em que parecemos estar, me impressiono com s liberdade que isso engendrou. Se não possuo dinheiro para comer kasher ou celebrar muitas Festas como se deve, por outro lado, o pouco que vou conquistando é unicamente meu, e será passado aos meus descendentes que, sendo filhos de mãe judia como espero que sejam, não precisarão passar pelo que estou passando. Se a comunidade é um obstáculo para mim agora, não mais será depois de uns anos, as portas das sinagogas já começam a ser abertas e não só meus descendentes como eu mesmo não entrarei pedindo desculpas, licenças e muito menos exigindo ser reconhecido como igual, primeiro porque já entrarei conquistando meu espaço de direito, e segundo, sem esmorecer para trabalhar pela comunidade da melhor forma que puder. Se não existe um líder religioso bajulando você em troca de bajulação de volta, ou somas enormes de dinheiro, aprendi a contar com amparo espiritual unicamente em D'us, nos instrumentos de conhecimento e estudo que a tradição nos lega e a não confiar em gurus para restabelecer minha saúde espiritual, e sim nos meus próprios esforços e intelecto. O judaísmo é uma tradição essencialmente de estudo e de prática. Acho que quero dizer com isso é que a liberdade espiritual que encontrei no judaísmo, no povo de Israel, sem ser uma religião está, paradoxalmente, justamente nas restrições de liberdade e conforto emocional que ela impõe, e exige de você trabalho duro para conquistar seu espaço, investimentos, gana para estudar e aprender e independência intelectual para tirar suas próprias conclusões a partir dos ensinamentos dos sábios, aplicar seu entendimento com sabedoria, e coragem para perseguir sua própria linha de pesquisas. É uma religião muito acadêmica, sem ser nem religião nem filosofia, é essencialmente uma nação em constante movimento e aprendizado, aprendendo e ensinando. É a vida espiritual que eu sempre quis ter: difícil, livre e autenticamente recompensadora.
Mas não me considero, em nenhum momento, ter encontrado a religião verdadeira, meu caminho, ou qualquer dessas outras baboseiras. Não sei qual meu caminho daqui pra frente, nem se vou perseverar nela até o fim. Só sei que estou onde sempre quis estar, onde deveria estar, justamente porque estou sempre em movimento.