Aproveitando que a animação dos X-men está sendo discutida, por causa do lançamento de X-men '97...
No começo dos anos 2000 havia certo consenso de que X-men: The Animated Series [XAS], a série animada dos anos 90, seria uma maravilha, enquanto X-Men: Evolution [XEv] seria muito ruim. Tanto por parte por fãs de quadrinhos "boomers", quanto da parte de espectadores casuais que cresceram com a série dos anos 90, mas nos anos 2000 já eram mais velhos, meramente viam uma nova série chegando na TV e torciam o nariz... Mas penso que foi um consenso injusto: XEv provou seu valor com o passar dos anos, tanto é que, aliás, estava no ar no SBT muitos anos após estrear, mantendo seu apelo, enquanto XAS, a meu ver, não demorou pra ficar datada... E olha que cronologicamente a diferença é pouca: XAS teve seu último episódio em 97, enquanto XEv estreou em 2000. Apesar disso, as diferenças eram várias:
(1) Realismo vs. surrealismo: XAS não parece se passar no nosso mundo, o que fica especialmente claro quando temos em mente a cadeira de Charles Xavier... O mundo já nos anos 90 é lotado de sentinelas (em escala absurda, vide o Molde-Mestre, uma sentinela construtora de sentinelas...) e, pior, também é lotado de criaturas bizarras, como, por exemplo, (a) Sauron, um mutante dinossauro numa ilha de dinossauros, (b) Mojo, um extraterrestre que vive num planeta onde existe uma espécie de grande reality show (e os X-men são sequestrados e se tornam participantes do programa!), (c) ETs verdes que transformam as pessoas em ETs, (d) o Senhor Sinistro, vilão com aspecto de vampiro bem caricato fascinado por Scott e Jean... e por aí vai. É um universo que pouco deixa a dever em bizarrice a Thor Ragnarok ou a Guardiões da Galáxia. E é uma pegada bizarra que também está presente nos quadrinhos - só lembrar que, por exemplo, Xavier perdeu o movimento das pernas ao lutar contra um... extraterrestre... no Himalaia... chamado Lúcifer...! Já XEv, como os filmes da Fox, parece se passar exatamente no nosso mundo, e todas essas bizarrices estão, felizmente, ausentes. Quer dizer, tanto os filmes quanto XEv apresentam uma releitura mais sóbria do universo dos mutantes.
(2) Como se passa no nosso mundo, XEv tem uma pegada "Harry Potter", ao colocar o Instituto Xavier como uma espécie de escola oculta para personagens "mágicos", o que também transparece nos filmes da Fox. Pelo menos essa jovialidade dos personagens, pelo que li por cima, também estava presente em certa fase dos quadrinhos (inclusive eram chamados de "The strangest teens of all!" nas capas das revistas), mas isso se perdeu com o passar do tempo, e os X-men viraram uma espécie de Liga da Justiça ou Vingadores, um grupo fixo de heróis adultos. A Jubileu no desenho dos anos 90 até comenta algo como "que escola estranha, não tem nenhum aluno", e durante todo o desenho fica a mesma meia dúzia de personagens no instituto (apenas Morfo sai do time para depois voltar). Já em XEv, há toda uma rotatividade, como esperado de uma instituição escolar dinâmica. A série começa estabelecendo os professores (Xavier, Tempestade, Wolverine) e a meia dúzia de alunos principais (Ciclope, Jean, Noturno, Spike, Lince Negra, Vampira), mais tarde ganha novos alunos ("Novos Mutantes"), alguns dos alunos estabelecidos saem (como Spike e Boom Boom), outros tentam entrar e saem rapidamente (Avalanche), e por aí vai.
(3) XEv tem uma gradação digna das séries modernas, em que os season finales são bastante marcantes, aumentam a escala dos problemas e levam a série para novos caminhos. A primeira temporada é a mais feijão com arroz, gastando alguns episódios com a apresentação sistemática de um par de mutantes por vez (um X-men e um membro da Irmandade de Mutantes). Mas ainda assim tem elementos bem interessantes, como a conversão gradual de Vampira aos X-men... Outro exemplo é o modo como trabalham Magneto: ele é apresentado muito lentamente, apenas nas sombras ou fora de cena, e o personagem só vai dar as caras pra valer no último episódio. Na segunda temporada, Magneto é ainda mais ameaçador, e ligado a isso temos agora a questão social dos mutantes, o que culmina em um season finale frenético e com consequências bem sérias para todos. Na terceira temporada temos a continuidade dessas questões, e o surgimento também bastante dramático do Apocalipse. E na quarta temporada, por fim, a conclusão da saga do Apocalipse.
Aliás, essa é decerto a versão "definitiva" de Apocalipse fora dos quadrinhos. Como em todas as versões, ele aqui funciona não como um vilão cinza como Magneto, mas um vilão totalmente preto, um
arquetípico "Dark Lord" (e como tal, faz sentido que ele seja o vilão final). Mas aqui seu despertar e o aumento dos seus poderes são trabalhados aos poucos e, portanto, de forma mais interessante (começa a ser trabalhado já na segunda temporada, inclusive). Por exemplo, ao invés de mutantes genéricos, aqui os quatro cavaleiros de Apocalipse são.... bem, não vou dar spoiler, mas digo que o efeito dramático é bem maior. O final também é interessante: a série enfrenta o mesmo problema de JK e Tolkien ao tornar o "Dark Lord" muito poderoso e, assim, criar a necessidade de alguma espécie de milagre ou carta na manga, mas XEv consegue trabalhar isso de forma convincente (incluindo pista a respeito já na primeira temporada).
Já a série clássica, fãs de quadrinhos tendem a elogiá-la porque ela adaptou muitas histórias dos quadrinhos. Percebe-se que sim, pela quantidade de personagens secundários que ela oferece. Mas a maioria dessas histórias são histórias isoladas, contadas em um episódio ou dois, e não trazem grandes consequências: todos esses personagens secundários aparecem e saem de cena, sem deixar rastros. Tanto é que há até uma divergência sobre qual seria a ordem de se ver os episódios, e nenhuma ordem parece boa. Apocalipse aparece logo na primeira temporada, mas sempre fica saindo e entrando de cena nas temporadas seguintes, quer dizer, é como se fosse um vilão do Chapolim que estivesse sempre por aí. Já XEv se concentra em poucos grandes vilões (especialmente Magneto e Apocalipse) e trabalha com eles muito bem. E os personagens secundários vão entrando na série e se estabelecem pra valer, de forma que, ao final da série, temos uma pletora de mutantes com papel relevante na temporada final.
(4) Os personagens do XAS são um tanto quanto caricatos, com jargões repetitivos (como o francês do Gambit, citações de literatura do Fera, frases de efeito da Tempestade, rosnados do Logan...). Já os personagens de XEv parecem pessoas reais, dentro do que é possível dadas as limitações de um desenho animado: pessoas em fase de amadurecimento, que lidam com um mundo que se torna cada vez mais desafiador aos mutantes. Releitura muito interessante da Vampira, por exemplo, que em XEv é uma espécie de gótica complexada (o que faz sentido dada a natureza de sua mutação), mas que cresce e se redime com o decorrer da série. Fãs poderiam reclamar de certos desvios em relação aos quadrinhos, mas se ninguém reclama, usando o mesmo exemplo, da Vampira da Fox, não vejo porque haver tanto purismo com Evolution, que é igualmente uma releitura de X-men. Outro personagem que evolui de forma interessante, inclusive virando uma figura um tanto quanto amargurada mas sem se tornar um vilão, é Spike. Além disso, Evolution faz o favor de evitar o triângulo amoroso entre Ciclope, Jean e Wolverine. E, falando em Ciclope, aqui ele não é um herói de primeira grandeza meramente porque é jovem por toda a série, começando abaixo dos mutantes mais velhos como Xavier, Tempestade e Wolverine, mas é uma figura carismática, que se destaca em relação aos demais alunos, e que também cresce com o decorrer da série: passando de um nerd meio caxias para uma figura inspiradora mesmo quando todos estão em situação de risco, ofuscando inclusive Wolverine. E o pessoal criticou aqui no tópico, chamando de "malhação", mas
o modo como a vida escolar/cotidiana é retratada funciona bem tanto para desenvolver os personagens de forma mais humanizada, quanto para termos uma sensação de apego e de perigo quando essa vida escolar, a vida normal, é ameaçada.
(5) Por fim, nesse sentido de não ter ordem correta ou muito planejamento, a série clássica tem um punhado de plotholes. Personagens sabem de coisas que não teriam como saber, meramente pra avançar a trama. Já outros parecem não se conhecer em dada temporada, para em temporada posterior ser mostrado em flashback que já se conheciam sim (
por exemplo...). Pior ainda, Cable é retratado como um guerrilheiro de Genosha na primeira temporada, para nas temporadas seguintes resolverem ser mais fieis aos quadrinhos e torná-lo um viajante do tempo e filho de Ciclope - e nada é feito para conciliar essas duas aparições. Já por toda a segunda temporada, Magneto e Xavier ficam sem poderes na ilha dos dinossauros, o que já é, por si mesma, uma premissa meio besta, e ainda é mais absurda porque eles assumem que, sem poderes, Xavier, por algum motivo, voltaria a andar... Enfim, por aí vai.
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Há ainda Wolverine e os X-Men, uma terceira animação. Foi feita após o cancelamento de Evolution, por muita gente que também estava envolvida em Evolution. Chegou a passar na Record, mas não acompanhei, fui ver bem mais tarde... E, para minha surpresa quando assisti, apesar de um punhado de inconsistências em termos de roteiro e visual dos personagens, funciona muito bem, no que a história tem de essencial, como uma continuação do Evolution. Muita coisa parecida, até algumas idiossincrasias de Evolution são mantidas, como Noturno ser um membro regular dos X-men. Emma Frost, que não está em Evolution,
estaria numa continuação e já tinha até um design sendo planejado, e, em Wolverine e os X-men, o design é praticamente idêntico e ela é uma recém-chegada no Instituto Xavier, como seria em Evolution. E por aí vai. A série funciona como um meio-termo, uma espécie de transição entre os X-men sóbrios de Evolution e o absurdismo dos X-men tradicionais, com um bom roteiro que trabalha elementos pouco explorados em Evolution, como a ilha de Genosha (governada por Magneto), mutantes perseguidos por sentinelas, "viagem" no tempo (com um mecanismo bem interessante, mais uma visão do que uma viagem propriamente dita), outra saga famosa que não vou spoilear (de forma também mais sóbria, que inclusive começou a ser encaminhada em certo episódio de Evolution, mas não teve maior continuidade), etc. E apesar de ter tido uma única temporada, ela tem começo, meio e fim, amarra e encerra todos os arcos narrativos. Imperdível para quem gosta de Evolution e gostaria de alguma espécie de continuação.