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Vida e morte de um invisível. - Rascunho

Raphael_Dias

Usuário
Vida e morte de um invisível.

Como as coisas mudam. Era um homem mediano, da classe média. Sempre fui. Nunca fui primeiro colocado ou quis ser. Tinha um emprego que pagava minhas contas, a desilusão de que ninguém ama o que faz já tinha me atingido faz tempo. O mundo faz questão de destruir essas ilusões ainda na juventude. Casei-me aos 27, não amava minha esposa, não acho que já amei alguém um dia.

Naquele dia o gerente da empresa em que trabalhava. Um homem rico, ou pelo menos fingia ser, desinteressado, não exatamente qualificado para o seu cargo como todas as autoridades, me chamou à sua sala e me disse que haveria cortes, cortes de gastos, funcionários. E eu estava incluso entre estes. Deu-me o cheque da rescisão, e eu estava na rua. Não consegui pensar no que fazer, estava entorpecido.

Minha amada esposa, ao saber da notícia, fez as malas e foi embora. Não pra sempre, só até arranjar um advogado filho da puta para me tirar o que me restava. Apartamento, carro, até meu cachorro, que a vadia deu pra sua sobrinha. Sempre odiou o bicho, acho que lhe batia quando eu não estava em casa. Devia estar fodendo o advogado, mas o que importa? Eu estava na rua, nem me esforcei, não podia pagar por um advogado melhor que o dela. Em um tribunal, vence aquele que gastou mais. Advogados trabalham pelo dinheiro e pela vitória, foda-se a justiça.

Fui ao banco ver o que me restava. Não pagava nem um quarto de motel por uma noite. Comprei um café, um pão na chapa e uma garrafa de cachaça pra passar o dia. As memórias me são falhas desse dia. Ainda não havia processado os acontecimentos, era como um sonho, como se eu fosse acordar a qualquer momento naquele apartamento minúsculo, ao lado da mulher que destruiu minha vida, tomar um banho frio pra economizar na conta de luz, ir para aquele escritório com aquelas pessoas cujo nome hoje nem me lembro de tão importantes que foram. Por pior que fosse, ainda era um sonho em comparação com o estado em que encontrava.

Fui a uma praça do outro lado da cidade, já anoitecia. Crianças brincavam, casais se amavam, eu era invisível, sim me tornara um deles. Um desses vagabundos, marginais da sociedade, que não merecem um olhar, que dirá uma palavra. Era o que eu pensava pelo menos. Até me tornar um deles. As pessoas passavam por mim, vez ou outra me dirigiam o olhar, mas faziam questão de desviar ao notar que eu percebia. Temiam que eu lhes pedisse esmola.

Cansado da caminhada e atordoado pela bebida, me deitei no banco daquela praça, as pessoas começavam a retornar para seus lares. Sortudas. O banco girava, havia quase secado aquela garrafa, rapidamente peguei no sono.

Atordoado, me sentia em casa, mas não era lá que estava. Encontrava-me em um quarto muito maior, bem decorado, com esculturas, pinturas, que vira antes em livros e documentários, nunca ao vivo. Quase um castelo de um rei da França. A cama era grande e espaçosa, assim como o resto da casa, que tinha corredores como um labirinto. Explorei a casa e encontrei minha ex-esposa e o advogado conversando em uma das diversas salas, só conversando e nada mais, mesmo assim senti ódio e decidi intervir, mas fui interrompido pela campainha. Em um piscar de olhos me encontrei em frente à porta, como se houvesse me transportado, e a abri. Era meu chefe rindo, mas rindo como várias pessoas diferentes. Até que o volume da risada diminuía como se ele se afastasse, mas estava parado.

Acordei, era tudo um sonho, vi um grupo de pessoas correndo, mas estava escuro demais ainda para vê-los. Eram eles que riam. Não pude concentrar nisso, tive que levantar para vomitar em um canto atrás do banco. Minha cabeça doía, tanto que me fazia esquecer a dor no corpo de dormir num banco de praça. Chequei os bolsos, me roubaram a carteira, aqueles marginais me roubaram a carteira. Meus documentos, cartões e o pouco dinheiro que me restava. Não era mais ninguém, me roubaram tudo que batalhei para constituir durante trinta e cinco anos em menos de uma semana.

O tempo passou, mendigava para sobreviver. Raramente me davam alguma coisa, se preocupavam que eu fosse comprar bebida ou crack. O que eles esperavam? Que com os valiosos dez centavos deles eu fosse iniciar uma série de lucrativos investimentos e reformar minha vida? Elas diziam aquilo para si mesmas para parecerem altruístas mesmo sem ajudar. “Viram, salvei aquele mendigo do vício, sou um herói”. Deviam dizer mentalmente, sei, porque estive do outro lado. Tudo uma farsa para esconder minha profunda indiferença para com esses homens que julgava como inferiores. Ora enfiem suas moedas no cu, não me importa, prefiro morrer!

Trocava minhas refeições por garrafas de cachaça barata. Tirava-me a fome, anestesiava a dor, tanto física quanto mental causada pelas ruas, e me fazia esquecer. Era isso que eu queria principalmente, esquecer, queimar as lembranças de que um dia eu tive uma vida, um dia eu existi.

Dia ou outro passavam religiosos com mensagens de deus, dizendo que tudo ia melhorar. Claro que iria! Afinal toda a empresa quer contratar um mendigo de meia-idade, que não faz a barba ou corta o cabelo em dois meses e raramente pode tomar banho, teve a maior parte das roupas roubadas e dorme coberto em jornal em qualquer esquina onde der sono. O que esses religiosos sabiam da vida? O que sabiam sobre mim? Nunca tiveram que viver como um cachorro, lutar para sobreviver, passar dias sem comida e andando constantemente, porque chamam a polícia se você para em frente a um lugar por muito tempo. Nunca me davam dinheiro, mas davam para o pastor engravatado que prometia salvação e um sentido pra vida. Confie em mim, a vida não tem sentido.

Dormia na rua, em frente à porta de um grande prédio comercial outro dia, três meses depois do meu desmoronamento pessoal. Até que acordei com um susto. Não sabia a hora, mas deveria já ter passado das quatro da madrugada, não tinha ninguém na rua, exceto esses cinco moleques. Deveriam ter em torno de 19 anos cada. Mal vestidos, como toda essa nova geração, mas com roupas de grife, era uma má aparência intencional. Estacionado atrás deles um BMW branco compacto. Eram musculosos, provavelmente eram daqueles que passavam horas na academia, porque não precisavam trabalhar. Os famosos estudantes com pai rico, que paga a universidade particular para que ninguém fique sabendo que ele não soube criar o filho e este se tornou um vagabundo. Tive medo por um instante, já tinha ouvido histórias sobre jovens ricos que achavam divertido agredir pessoas como eu. Não sabia o que fazer, até que um deles, provavelmente o líder do bando, sem me dirigir uma palavra, me chutou o estômago. Ainda não havia nem me levantado, e depois dessa, nem poderia, não comi nada o dia todo e bebi para compensar. Eles riam como primatas, até que outro deles me chutou as costas, depois a cabeça. Não conseguia mais identificar os golpes. Além de estar atordoado pelas pancadas, sofria uma das piores ressacas da minha vida.

Sentia ódio por eles enquanto me batiam, queria vingança e justiça, mas sabia que nada ia acontecer. No máximo passariam uma noite na cadeia, até que o pai de um deles, talvez um juiz ou um desses investidores milionários, pagaria a fiança. Provavelmente um deles, não tão rico, serviria de bode expiatório, só para mostrar que existe alguma justiça para a sociedade. Coitado, achava que se tornaria um deles se participasse das atrocidades do grupo. Seria aceito entre os ricos, mesmo sendo classe média. Estava prestes a sentir a realidade como eu sentia. Não existe justiça. Não existe lei. Existe poder, quem o tem cria as leis e as usa para esmagar pessoas como eu. Não temos o direito de existir, somos apenas entretenimento para os poderosos.

Já não sentia mais dor, não sabia o que estava acontecendo ou até mesmo onde estava. Esqueci-me de tudo, perdi a consciência. Deitado no chão, cercado de meu próprio sangue. Não queria nem parar para pensar em ossos quebrados e dentes perdidos, esse era o menor dos meus problemas. Sentia apenas um líquido sendo jogado sobre mim. Gasolina dava pra perceber pelo cheiro forte, não olhei para confirmar, porque não conseguia mais abrir os olhos. Ouvi o riscar do fósforo e senti uma dor imediata nunca antes imaginada. Queimaram-me vivo. Sentia cada fibra, cada célula minha queimar, arder nas chamas. Não tinha como escapar, então aceitei a morte como homem. Não gritava, não lutava. Retorcia-me devido à dor insuportável, mas não queria dar-lhes o prazer de assistir meu sofrimento e ouvir minhas suplicas, então me continha, tampouco queria a piedade deles, sempre os desprezara mesmo antes desse momento e se pudesse queimaria vivo cada socialite, cada playboy.

Debaixo das chamas ouvia as risadas. Era tudo um espetáculo. Em segundos, que mais pareceram horas, acabou. Tudo acabou. Fecharam-se as cortinas da minha existência. Não ouvi aplausos.

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Raphael Dias
 

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