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Uma Noite

[size=small][align=right]Penso na incompreensível sequência de mudanças que fazem uma vida.
Aldous Huxley, em A Ilha[/align][/size]

Há meses pretendo entrar no local. O bar parece sujo e mal frequentado, como se fora copiado de livro do Bukowski, mas provavelmente não há ninguém com pretensões literárias lá dentro. Ainda assim, devo confessar que minha vinda até aqui se deve a essas esperanças românticas de trocar uma noite deprimente sozinho em casa por uma possível aventura inesperada na madrugada. Essas que caem no nosso colo. Ou melhor, no colo dos personagens da literatura pulp. É começo da madrugada de sexta, e hoje eu vou entrar.

Timidamente empurro a porta. Há um velho atrás e outro à frente do balcão. O dono do bar e um bêbado. Mais ninguém. Decepção. Apesar de saber que o local é patético, o imaginei de outro jeito. Tipo strippers e caras que arrumam confusão, sabe? Algo sórdido e talvez miserável, mas com vida. Porém o que vejo, olhando para mim, é um velho com uma cara gorda de buldogue, parecendo o Hitchcock, e um bêbado franzino, arquétipo de apostador de cavalos. Que merda. Já que estou aqui...

“Me vê uma bebida, por favor.”

“Vai querer o quê? Já vou fechar”, diz secamente o Hitchcock.

“Serei breve. É só pra não perder a vinda. Me vê qualquer coisa. Dupla.”

Ele me traz uma cerveja. Eu nunca entendi bem esse negócio de “duplo”, mas duvido muito que essa cerveja seja dupla.

Estou sentado matando tempo. Geralmente é o que faço em casa, só que com mais conforto. Isso me faz pensar nos meus 25 anos. Enfim... Vim até aqui na esperança de que pudesse acontecer algo diferente, sei lá. Não que eu tivesse alguma indicação de que aqui seria o lugar para isso. Mas, quando não se tem muitos amigos, esse tipo de escolha se faz assim mesmo, sem muito critério.

A cerveja está quente e o copo, engordurado. Eu bebo. Na ponta do balcão, o bêbado parece catatônico, sonolento. O dono do bar, após me servir, se havia retirado para uma peça contígua ao balcão. Pareceu não ter receio em deixar o local. Deve saber que, ou ninguém mais chegará ao bar essa noite ou quem chegar será algum conhecido. A visita de um desconhecido – no caso, eu –, já é o suficiente para exaurir a cota da semana.

Isso está mesmo atirado. Na fachada relativamente larga, o neon, embora falhando em algumas letras, estava sempre pedindo atenção. Por fora, tem-se a impressão de que o lugar é maior e movimentado. Eu passo por aqui todas as noites, antes de ir para casa.

Enquanto termino essa cerveja, dou uma olhada mais precisa no ambiente. Na peça estreita, há o balcão com quatro bancos; ao lado, uma mesa de ferro enferrujada, dessas que estampam marcas de cerveja; no espaço que sobra, uma velha mesa de sinuca, tecido bastante puído e sujo, como tudo por aqui; do lado de lá do balcão, um armário empoeirado conserva bebidas que já eram para ter sido vendidas há tempos e, ao lado desse armário, a porta que dá para o recinto onde o dono do bar se retirou.

Ele volta e eu peço outra cerveja, imaginando que ele vai me mandar embora. Resignado, traz mais uma.

“E então, garoto, a noite não é das melhores?”, puxa assunto. Essa era uma dedução óbvia a se fazer para alguém que terminava a noite ali.

“Acho que não. Mas também não é das piores”, respondo apaticamente.

“O rapaz parece simpático. Talvez esteja precisando relaxar, Alfredo”, diz o bêbado ao dono do bar com um olhar malicioso. Percebi que está bem mais ligado do que aparentava anteriormente. Relaxar... Só falta esses velhos serem bichas. Ou traficantes.

“Melhor não”, responde o tal Alfredo, desconversando. “Você nunca veio aqui antes, não é?”

Digo que não, e eles trocam uma espécie de olhar cúmplice. Isso está ficando esquisito. Alfredo Hitchcock (isso é sério?) me olha estranhamente.

“Você esperava algo dessa noite, não?”, perscruta com certa maldade.

Nesse momento, espero apenas acabar logo essa bebida e chegar dignamente em casa.

“Acho que não”, digo, tentando encobrir o desconforto com aquela situação. “Só vim beber uma.”

“Pois já está na segunda”, graceja o cachaceiro lucidamente. “Olhe, garoto, não precisa ter medo. Talvez nós tenhamos uma coisinha pra sua noite.”

Os dois me encaram. Eu tenho medo. Eu poderia estar em casa agora, como sempre faço. Eu sou um merda.

O dono do bar se aproxima para me fazer uma proposta.

Eu tenho medo de ouvir.

Eu tenho de ouvir.

Eu ouço.

O velho me diz que não mora sozinho.

Eu digo hum.

Ele me conta que vive em cima do bar, junto com a filha.

Eu fico curioso.

Ele me fala que, por cem reais, ela fará o que eu quiser.

Eu não sei o que pensar.

Ele diz, como trunfo, orgulhoso, que a filha tem 16 anos.

E eu volto a sentir medo.

“O que você quiser”, ele repete, os olhos brilhando.

Nos meus olhos, há uma certa insegurança; no meu bolso, seguramente mais do que cem reais.

Bem, ela fará o que eu quiser, eu penso. Ainda não sei bem o que quero, mas resolvo aceitar. O velho parece aliviado. Agora somos cúmplices, deve estar pensando. Ele diz que vai falar com ela e entra na porta ao lado do balcão. Volta uns dois minutos depois.

“Vem aqui.”

Contorno e balcão e entro na salinha, pequena, dois gatos sujos deitados sobre um blusão velho. Há uma escada em formato de caracol. Estou em silêncio, aguardando orientações.

“Ela tá lá em cima te esperando. Não precisa ter pressa.”

Subo e bato à porta. Quem responde é o velho, lá de baixo, dizendo rudemente para eu entrar. Entro suavemente, como que não quer atrapalhar. Que ironia...

A menina está com a cabeça baixa, sentada na cama. Levanta aos poucos os olhos pálidos e opacos que, ao me fitarem, parecem ganhar algum brilho. Ao lembrar do velho bêbado e sujo com jeito de apostador, o perfil comum dos frequentadores daquele bar, eu entendo o porquê; e eu percebo, também, que aquele é o único cômodo habitável do prédio, poucos móveis, um fogão, uma única cama de casal. Velho escroto.

Ela tem uma aparência toda frágil, mas bonita. Magrinha, cabelo liso, pele esmaecida, usa um short e uma blusinha, deixando a alvura do corpo à mostra. Nenhuma maquiagem. Tranco a porta. Agora, ela fará o que eu quiser.
*

Já estou cerca de cinquenta minutos dentro do quarto, e o Hitchcock começa a socar a porta. Agora estou mirando firmemente nos olhos dela, perguntando se confia em mim.

“Faço qualquer coisa”, ela responde. O velho estava certo. Peço só mais dez minutinhos. Ele concede.
*

Dois anos depois e estou aqui no sítio que era do meu pai (agora cedido a mim), onde vivo desde que tudo isso aconteceu. Na varanda em frente à casa, deitado na rede, ouço passos vindo em minha direção, acompanhado de um forte cheiro de perfume que se confunde com o aroma bucólico da grama recém cortada à minha frente.

“Vou fazer algo pra comer”, ela se aproxima secando o cabelo. “Quer alguma coisa?”

“Qualquer coisa”, eu digo.

“O que você quiser”, ela insiste, um sorriso terno enfeitando o seu rosto. E eu tento imaginar a cara do velho quando, depois de insistir em vão naquela porta, resolve enfim entrar: o quarto vazio, a janela escancarada, duas notas de cinquenta sobre a cama.

E eu penso na força das escolhas ao acaso que dão corpo aos nossos destinos; na maleabilidade do deslocamento entre o favorável e o desfavorável das nossas vidas; em como, espantosamente, uma fortuita noite estranha ou cem reais bem investidos podem, eventualmente, salvar duas existências.

O sol desce e os pássaros já estão aconchegados às árvores, fazendo-se ouvir o seu coral de todo fim de tarde. A brisa chega refrescante, sugerindo mais uma agradável noite de primavera.
 
Salvar DUAS existências.

Um dote de 100 reais por um plano ilimitado. O melhor cliente, o cliente sempre tem razão, o cliente inconsciente do preço real. Vendendo barato o que não tinha preço. Comprando por um preço simbólico um objeto humano de valor sentimental.

Sinceramente, quando eu li a proposta indecente pensei que o sóbrio e entediado freguês seria sacaneado. Como Henry Chinaski faria ao contratar os serviços de uma puta, temendo encontrar com um negão no quarto dela e o posterior assalto, ferimentos e carteira limpa.

Mas ele se deu bem. Correção: eles se deram bem.
 

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