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Um jingle

Luciano R. M.

vira-latas
[align=right]“Ninguém ao meu lado.
Estou só.
E o espelho, quebrado”

-Serguei Yesenin, O Homem Negro[/align]

A vida inteira, eu fugi.
Como Eirich Weiss ou Erik Weiz ou Harry Houdini, eu sempre fui um mestre na arte da fuga. Enquanto ele fugia de algemas, de latas de leite em tamanho gigante, camisas de força, celas de tortura chinesa, camisas de força suspensas, latas de leite em tamanho enorme, celas de tortura chinesa de cabeça para baixo, algemas especiais; eu fugia de sentir. Eu fugia de ser um ser humano. Eu fugia de mim.
A obra-prima de Eirich Weiss ou Erik Weiz ou Harry Houdini foi ter sido enterrado vivo e depois ter cavado até a superfície. Ele conseguiu, apesar de ter quase morrido: assim que suas mãos surgiram de sob a terra- como se ele fosse um os zumbis de George Romero- ele desmaiou e teve de ser puxado por seus assistentes. Mais tarde, escreveu em seu diário que aquela havia sido sua fuga mais perigosa e que ‘o peso da terra é matador’.
Agora, eu estou tentando realizar minha obra-prima, minha fuga mais perigosa. Tento fugir das palavras que escutei um ano atrás, da boca da pessoa mais bonita e mais cruel que já surgiu em minha vida. Da garota, cujo nome eu prefiro não falar, que me disse a verdade sobre mim, a verdade que eu nunca quis enxergar e que agora me persegue como um jingle de uma loja que vende produtos que eu nunca quis. Minha fuga mais perigosa. O peso da verdade é matador.
Éramos amigos a algum tempo. Eu sempre deixei meu sofrimento transparecer: não tinha energia para escondê-lo. Certo dia, resolvi terminar com tudo isso. Comprara os comprimidos, preparara uma pistola, tinha até mesmo lâminas e cordas- uma miríade de métodos para escolher, dos mais sutis aos mais brutais. Falei-lhe antes. E foi então que ela me disse, foi então que ela entoou seu jingle, como se fosse a canção das serias de Ulisses.
Apesar da crueldade do que ela disse, foi o que me fez perceber que eu não podia me matar. Eu não tinha forças para isso. Tampouco tinha força para viver sabendo a verdade, patética e cruel, a meu respeito. Resolvi, então, que desapareceria. Que seria esquecido e, assim, não lembraria de mais nada.
Antes de mais nada, afastei-me dela. Em seguida, entreguei-me a um hedonismo vazio: durante o dia, lia James Joyce e Sergei Yesenin; à noite entregava-me a excessos: marijuana, speed, tabaco, uma libido desenfreada e falsa, e vodca barata.
Cada vez que ficava bêbado, chapado ou o misto decadente das duas coisas, eu me lembrava de seu rosto e de sua voz: em minha cabeça ela cantava seu mote irritante, insistindo que eu comprasse seu produto- que nada mais era do que me aceitar.
O peso da verdade me esmagava e eu estava cada vez mais longe da superfície: eu cavara para o lado oposto. Logo estaria sem ar- e, no meu caso, isso não me mataria, mas me faria viver sabe-se lá como.
Em suma: falhei miseravelmente em desaparecer entregando-me ao hedonismo e à auto-piedade. Como Houdini, que tentou derrotar a morte não indo nunca a médicos. Não foi o soco do estudante que o matou, foi a apendicite.
Resolvi, então, tentar o caminho oposto. Abandonei os excessos e, ao invés de Joyce e Yesenin, passei a ler Neruda e Flaubert. Estive mesmo a ponto de casar-me: uma garota católica alguns anos mais nova que eu, que acreditava em tolices como Deus, amor e felicidade.
Obviamente essa foi a mais idiota das minhas tentativas. Cada vez que eu lia Neruda, eu lembrava das dores de Yesenin. Cada vez que lia Flaubert, percebia como Joyce o superara. Cada vez que ouvia declarações de amor ou que ia a igreja, queria um gole de conhaque.
Foi então que recebi uma carta. Dela. Estava preocupada comigo. Eu havia desaparecido há muito tempo: desde sua canção. E não era isso que ela queria. Junto um trecho de um poema de Yesenin: ‘Eu joguei na dama de espadas/ E só me veio o ás de ouros’.
Decidi que, talvez, isso fosse um sinal: eu deveria parar de fugir. Não cometera, enfim, nenhum pecado. Apenas apostara na vida- e perdera.
Abandonei minha noiva, abandonei Neruda, abandonei a igreja. E voltei a ser o que eu era. O fugitivo, o leitor de Joyce, Yesenin e Flaubert (mesmo ele sendo inferior a Joyce). Porém o jingle maldito, a canção cigana que descrevia meu destino, nunca me abandonou.
E cá estou eu, fugindo novamente. Em uma cidade desconhecida, em que sou nada mais que um estranho anônimo. Na qual ninguém fala minha língua- por mais que eu saiba a deles. Graças a ela e a sua (minha?) verdade maldita.
Eu me sinto como Yesenin ao casar-se com Duncan. Mas estou sozinho, realmente. Em um lugar que escolhi ao acaso, mas que talvez tenha um significado escondido: Montevidéo. No edifício Liberaji, apartemento nono. Poucos dias depois de instalar-me aqui descobri que meu endereço é um templo do underground homossexual da América Latina: Brignone e Dorda, dois assaltantes e amantes argentinos, foram mortos aqui. Mais tarde foram canonizados sob falsos nomes cinematográficos: El Nene e Ángel.
Eirich Weiss ou Erik Weiz ou Harry Houdini morreu no dia 31 de Outubro de 1926, no quarto 401 do Hospital das Graças de Detroit, de uma apendicite. Em sua última apresentação tinha uma febre de 40°C, e chegou a desmaiar. Mas acordou e voltou a fugir, até que perdeu suas forças e foi levado para seu leito de morte.
Brignone e Dorda- ou El Nene e Ángel- morreram nesse quarto onde eu estou agora. No chão em que estou pisando, em Novembro de 1965, estavam os dois aqui, banhados em sangue e chumbo. Dois cadáveres de mãos dadas.
Dia 27 de Dezembro de 1925 Seguei Yesenin cortou seus pulsos, escreveu seu maior poema na parede- utilizando o próprio sangue- e enforcou-se. Era casado com uma neta de Léon Tolstói.
E aqui estou eu, escrevendo a crônica de uma fuga que, como todas as outras, sempre falha. Fugindo de um ciclo interminável em que as palavras que ela me disse se repetem como um jingle ou como o refrão das sereias de Homero. A mesma repetição sem sentido de sempre, em que eu mudo os atores e o palco, mas no qual o roteiro é sempre o mesmo.
E nem sequer a morte seria longe o bastante.
 
me fez pensar se eram as palavras q ela disse realmente tão duras assim ou se o narrador-personagem é quem era o problemático. ah, seu texto passa a impressão q quer dizer algo +, além da intertextualidade evidente & do tema aparente, só ñ consegui decifrar oq.

& acredito q na 1ª vez vc quis dizer "sereias de ulisses".
 
Ops, gracías pela correção!
A idéia é dar essa dúvida quanto à realidade do problema... E umas cositas mas. ˆˆ
 

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