Vou falar de Machado um pouco.
Tenho uma pré-história com Machado de Assis, era um conto chamado 'Igreja do diabo' que nem lembro mais do que se trata e que li aos 8, 9 anos de idade. Não entendi bulhufas. Quando cheguei no ensino médio porém e começou todo aquele hype em torno da literatura eu ainda não tinha lido. Na verdade só peguei Dom Casmurro pra ler quando já estava aqui no fórum, e por influência da Melian, que não parava de tagarelar por conta de uma edição especial comemorativa, ou algo do tipo, que tinha ganhado. Peguei e li.
Já experimentado de ler livros de filosofia não estranhei tanto a linguagem do Bruxo nem o contexto histórico, social etc, a minha dificuldade foi ter aquele visão de conjunto. Aliás, tenho dificuldade com essa 'visão de conjunto', do 'todo', alguns livros me pegam nisso, outros me escapam. E
Dom Casmurro me escapou por um bom tempo. Percebi sim a ligação com Otelo, mas o tema era só um detalhe, a vida de Bentinho passava como um filme na minha cabeça, me identifiquei com o amor de infância, a vida no seminário (só que era uma vida que eu ansiava, diferente de Bentinho, embora eu o perdoasse porque por amor a gente perdoa tudo), e... Capitu. Capitu foi uma personagem complicada, dissimulada e doce, amorosa e distante, desejada e odiada, tão presente e tão longe. Eram uns contrários complicados, mas aprendi a me apaixonar por ela. Mas aí veio o desfecho, aquelas cenas tristes, as atitudes INCOMPREENSÍVEIS do Bentinho, e aí foi intuir como se ata as 'duas pontas da vida'. Terminei abatido o livro.
Coisa muito diferente foi ler
Memórias Póstumas de Brás Cubas, o melhor livro que já li, não canso de repetir. Algumas pessoas falaram que não gostaram do tom pessimista e, bom... Brás era incorrigível e era como se ele vivesse correndo em direção ao nada, virando as costas ao que era de fato importante e só satisfazendo seus apetites, mas... depois de Dostoievski, meu filho, depois de Notas do subsolo, nada mais me abala psicologicamente na literatura. Então o pessimismo não me incomodava, até era bem-vindo na época. O que me incomodava mesmo... era o Brás, era o cinismo dele, era o conjunto de situações em que conviviam o otimismo em que ele parecia caminhar nos seus sonhos e as contínuas quedas de caráter, as indecências, as imoralidadezinhas, a canalhice diluída aqui e ali, e tantos outros pequenos canalhas envoltos na trama e aquele amor tão verdadeiro, tão forte, mas tão nojento, egoísta, canalha! Então eu não via uma sucessão de canalhices disparatadas, mas uma história coesa quanto à unidade do destino humano pela desconfiança na natureza humana, pela traição, pela falta de caráter. Foi uma leitura muito difícil, rápida e espontânea, até fácil de digerir mas foi difícil administrar as mudanças no meu espírito, as pequenas angústias que se acumulavam. Lembro de ler na saída da igreja, enquanto caminhava pelo calçadão da praia do Gonzaga, em Santos, e como aquela paisagem se mesclava, na minha imaginação, com a casa escondida de Brás e de Virgília. E era uma sensação doce, tristemente doce...
Outra surpresa foi
Quincas Borba. Quincas já tinha aparecido no Brás e a filosofia dele ali era algo já velho e mofado com ares de novidade, era na verdade a representação de toda intelectualidade moderna, a recuperação das indagações e temas dos antigos enfiados em um sentido aparentemente novo, mas no fundo era só mais uma nova loucura moderna, mais uma moda disfarçada de arte oculta, 'mais-do-mesmo-que-se-apequena-ao-se-fazer-grande'. Assim era o Quincas. E aí vem Rubião, Rubião e o cão Quincas, Rubião e a paixão ardente por uma dona, uma dona que afinal não é muito diferente dele, sonha em sair um pouco do mundo em que vive. Uma é uma apóstola da frivolidade dos vários sensualismos, o outro, igualmente, com a diferença que Rubião é um pobre coitado, rico mas desajustado, amante mas preterido, cercado de atenções e novas experiências, no entanto, incapaz de se desligar da sua obsessão. A dona já não é nada desajustada, ela só quer que seu mundo bem ordenado e ajustado lhe ofereça algo de novo, um prazer diferente. E nesses desencontros emocionais, nessas trocas de danças, olhares e pseudo-sentimentos, acompanha-se a lenta e gradual degradação da mente humana. Talvez seja o livro mais triste de Machado, porque não apresenta tragédias, nem canalhices, nem erros de cálculo, é apenas a lenta loucura que se apossa do homem e o reduz a nada, a uma coisa bestial, triste. Lembro que chorei com o final. De pena, um pouco de mim mesmo pelas minhas esperanças de algo diferente, pela cegueira em não ver que isso estava ali, implícito, como está implícito na nossa vida o tempo inteiro, o risco de escorregar e ver o mundo cair ao nosso redor.
Ressurreição foi uma surpresa. Lembrava um romantismo pré-machadiano, e era basicamente um romance curto que meio que prefigurava Dom Casmurro, mas mais simples. Nem por isso era menos difícil de lidar. Com Bentinho sempre havia ciúme mas parece que as coisas se deram mais repentinamente. Com Félix, não é muito repentino, é algo que vai se delineando mais claramente e termina como se suspeita. Como é de praxe, termina em tristeza, mas uma tristeza boa, uma consolação.
Vem agora
Memorial de Aires. Foi um soco na cara, porque veio logo após 'Memórias' na primeira vez que li. E era um romance epistolar, o que me deliciava por causa dos 'Sofrimentos de Jovem Werther' (sim, sou emo, Melian
), que amo de paixão. Mas o 'Memorial' era uma leitura muito menos apaixonada, é uma leitura tranquila, episódica, de um clima, uma atmosfera nada melancólica mas muito nostálgica, quase como se aquela Praia do Flamengo fosse uma extensão da minha casa. Vamos aos episódios. O amor celebrado ali era uma questão de destino, os acontecimentos, fortuitos, as ocasiões, enfim, tudo ocorria sem razão aparente, eram fruto do acaso e sem a mínima sensação de estarmos sendo levados no bico pelo autor, mas era como se estivéssemos lidando com uma história real, com episódios verídicos de tão verossímeis, e isso encantava, levava quele meu desejo de realidade a um nível muito próximo e quase como não desejava que acabasse ao mesmo tempo que queria saber o desfecho. E entre tantas despedidas e partidas, terminei o livro como havia começado e como o li o tempo todo, com uma serenidade, uma paz e tranquilidade que veio a casar com o clima oposto de desespero existencial do 'Memórias', não como um mero consolo mas como uma união de opostos, de princípios da existência, a finitude que exaspera e que leva à canalhice extrema e constante na juventude contra a maturidade de Aires, que une as duas pontas da vida, mas não artificialmente como Bentinho, une de forma orgânica, pela sua maturidade a juventude cheia de possibilidades e erros com um fim, um resto de vida que permite recapitular tudo em uma existência madura, serena, o verdadeiro ideal não isento de paixões mas pleno de sabedoria, saturado de plenitude.