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Tolstói ou Dostoiévski - A Morte de Ivan Ilicht/Memórias do Subterrâneo

Olá pessoal!

Na faculdade cursei uma disciplina chamade "Filosofia e Literatura"; nessa disciplina nós tivemos de ler vários livros e depois debater sobre eles. Dois dos livros que mais gostei foram (e não há nada de original aqui, pois todo mundo que gosta de literatura gosta de T & D¬¬) os sempre mencionados e muito amados A Morte de Ivan Ilicht e Memórias do Subterrâneo. Gostaria de citar aqui os textos que produzi para essa disciplina, com dois objetivos principais:

1) Mostrar minha opinião sobre Tolstói e Dostoiévski;

2) Ver a opinião do pessoal do fórum sobre os dois escritores.

Logo de cara gostaria de dizer (por favor, não queiram me bater por isso:|) que acho Tolstói superior a Dostoiévski. Sim, eu sei que cada autor tem a sua própria voz; que os estilos são diferentes; que a estética não é uma ciência (sendo até mesmo um dos campos principais da filosofia, com várias e várias opiniões divergentes); que comparar autores e verificar qual é o melhor não é algo saudável...sei disso, porém acho que é uma injustiça para com Liev Tolstói dizer que Dostoiévski está no mesmo nível que ele. Claro: Dostoiévski é um dos escritores supremos do planeta, porém Tolstói (em minha visão) é um dos únicos autores (talvez o único) que podem disputar com Shakespeare o título de maior de todos os escritores (ainda quero escrever um post sobre isso: Tolstói e Shakespeare).

Também queria, antes de postar as minhas dissertações, pedir desculpas pelo estilo das mesmas. Quando as escrevi eu estava bastante animado com a leitura das obras (elas estavam frescas em minha mente), e por isso acabei soando um pouco poético demais (muito açucar e glacê verbal, o que pode ofender o estômago:eca: de muitas mentes).

Meu objetivo principal é ouvir as opiniões de todos acerca dos dois gigantes russos; vamos então aos textos.

Ver anexo 11750

A Morte de Ivan Ilicht

Autor: Tolstói.


Poucos fenômenos naturais são tão monstruosos e assustadores como a morte por câncer terminal. É difícil conceber uma forma mais dolorosa, lenta e angustiante de deixar de ser. O membro ou órgão atacado incha num vulcão de pus; os nervos, sobrecarregados por um incêndio de sinais dolorosos que, incessantemente, os escalam, cospem no cérebro legiões de impulsos cortantes, envolvendo-o numa tempestade de dor, dissolvendo a própria consciência em agonia; a febre marcha sobre os músculos, fazendo a pele afogar-se em suor (as camisas do doente em vão são trocadas, pois uma após outra se encharcam de água malcheirosa); o estômago, revoltado em acidez, tem a náusea por constante convidada; o esôfago é queimado por jatos constantes de vômito; os pulmões, como que esmagados por mãos invisíveis, sentem uma opressiva fome de ar, porém não conseguem sorvê-lo, mesmo que cercados pelo elemento. A boca do doente está sempre invadida por um gosto ruim, por um sabor repugnante. Nenhuma posição jamais traz conforto, pois a dor é eterna, insaciável: o moribundo deita-se de barriga para cima, mas as dores o punem sem qualquer perdão; vira-se para a direita (com a ajuda dos enfermeiros), e, após se sentir um pouco aliviado, é novamente invadido pelo tormento, que apenas se escondera, mas que jamais há de abandoná-lo; mais uma vez se vira, agora para a esquerda, e lá está a dor mais uma vez, roendo, lentamente, porém sempre, sem jamais saciar-se. Como um rato quente e faminto, o tumor rói as entranhas do doente, em uma briga solitária: não há com quem dividir tal sofrimento, ninguém o entenderia. Dentro do organismo, dentro da carne, dentro da alma, está esse terrível rato febril, o tumor, a morte, e sua fome jamais irá embora, mas continuará se alimentando, sem fazer barulho, sem descansar, sem jamais oferecer perdão. O rato está ali, todos o sabem, os médicos o vêem através de exames, das lâminas de raios-X, para todos os olhos ele se expõe, e, no entanto, não é possível arrancá-lo, dissolve-lo, extirpá-lo do corpo doente; tornou-se um apêndice de sua vítima. A morfina, no princípio, amordaçava a boca cortante do rato, dissolvia os beliscões e facadas da dor; com o tempo, porém, nada mais contém o sofrimento. Nenhuma posição na cama conforta; nenhum pensamento acaricia a mente desesperada; os gritos e urros de dor não produzem qualquer alivio ao deixarem a garganta. Enquanto o doente se dissolve em tormentos inenarráveis, seu quarto de hospital se enche de um cheiro putrefato; todos que entram, recebendo as lufadas nauseantes nas narinas, sabem que a morte ali se encontra, sentada sobre a cama do paciente, acariciando-lhe. A comida não tem mais gosto: são meras papas de arroz e batata, que são engolidas com muita dor e dificuldade. O banho, o urinar e o defecar não são mais fatos fisiológicos normais, mas tormento e vergonha (o doente não mais pode aliviar-se sozinho, mas depende de ajudantes da enfermaria, que o contemplam no abandono completo de toda a dignidade). Os parentes já aguardam a morte sem qualquer chama diminuta de esperança (na verdade, embora tenha vergonha de admiti-lo, anseiam por ela, pois querem voltar eles mesmos para o mundo dos vivos, abandonando a terrível atmosfera do universo dos mortos), nem mesmo falam para o moribundo em luta, pedindo-lhe para que se anime e não se desespere, pois sabem que mesmo para ele o fim certo não é segredo. A morte já não é o maior dos algozes: o sofrimento tomou seu lugar, vestiu sua coroa.
Eis o assunto do conto de Tolstói, A Morte de Ivan Ilicht. O conteúdo da obra narra, em um fluxo rápido de acontecimentos, a vida de seu personagem principal; narra, também, em detalhes cirúrgicos, todo o processo de sua doença e morte. Jamais a morte foi retratada de uma forma tão horrível, e horrível por ser lúcida, precisa, cientifica: Tolstói analisa a morte como se dissecasse um corpo, referindo-se a cada tendão, a cada nervo, a cada veia, a cada osso, a cada músculo. A morte é uma criatura que o escritor coloca sobre sua mesa, revirando suas entranhas com uma frieza ao mesmo tempo admirável e terrível.
O conto é, também, extremamente belo. Não há lugar para idéias românticas acerca da morte, para palavras poéticas, para pensamentos maquiados com tintas coloridas; com o rigor e a precisão de um geômetra, Tolstói constrói uma narrativa maravilhosamente pura, límpida e cristalina acerca de um dos maiores horrores conhecidos pela existência humana: a sua própria finitude. Para poder fazer uma autópsia completa em sua criatura, o romancista escolhe uma forma dolorosa, agonizante e, principalmente, lenta, de morrer, e com ela amaldiçoa seu personagem principal. Dessa forma, seu estudo pode abrigar todo o desenvolvimento da consciência do moribundo: desde os primeiros sintomas, passando pelo aumento da dor, pela ebulição dos medos e preocupações, para as primeiras idéias de uma possibilidade de falecimento, até chegar ao estágio em que a morte já é uma certeza, em que o moribundo tem de aceitar seu destino e perceber que, em breve, mergulhará no sono e no abismo do desconhecido. A beleza obtida por Tolstói se deve a sua preocupação fanática com os detalhes, com a exatidão; como antes referido, tem-se a impressão que um médico legista está a produzir um laudo de necropsia, e o ser morto que é agora dissecado é a própria morte, em todos os seus detalhes.
Toda a jornada rumo ao nada é abordada com uma clareza quase insuportável: Tolstói lança uma luz extremamente forte sobre o tema, para poder vislumbrar todos os seus detalhes, todos os pequenos apêndices e órgãos de sua anatomia. Nada lhe escapa: o gosto ruim na boca de Ivan Ilicht; os suores noturnos; a dor, roendo os tecidos internos, sugando as forças, lambendo os órgãos; o medo e a negação de Ivan Ilicht e a pena e alívio final de seus parentes; o desejo reprimido do moribundo por amor (e, mais importante ainda, sua vergonha de ansiar por carinhos e carícias); a dificuldade em cumprir as funções mais básicas, como defecar; a falta de esperança de Ivan e sua súbita e patética retomada de fé numa melhora de saúde ocorrida apenas algumas horas antes da morte; o peso sobre o peito que Ivan sente alguns dias antes de morrer... Tudo é analisado, nada abandonado. Essa é uma das maiores qualidades do gênio de Tolstói: sua absorção de detalhes, de cada ínfimo cabelo do corpo da experiência. Nada lhe passa despercebido: conhece todos os ambientes, desde o quarto simples de uma prostituta até o amplo salão do palácio do Kzar; conhece as roupas das pessoas, os ternos, os vestidos, os pijamas; conhece as sensações físicas, em todas as suas mínimas características; conhece os humores mentais, como a inveja, o ódio, o amor, a luxúria; conhece todos os pensamentos que, caso quiséssemos escrever, acharíamos ideais para narrar, porém não nos lembraríamos de citar. É um homem que viu muito, que viveu muitas experiências, porém que soube trazê-las para cada um dos trabalhos que produziu. Tais detalhes e sensações, por serem vivenciados por cada um de nós, sendo lidos, nos atingem (afinal já sentimos o que agora lemos), como se fossem exatamente o pensamento e a frase perfeita para a situação; trazer, porém, tais sensações e pensamentos para o momento propício e exato da narrativa é uma habilidade de gênio, algo extremamente difícil de obter.
Tolstói é, sem dúvida, o maior de todos os romancistas, bem como o maior de todos os contistas. Dostoievsky não consegue superá-lo nos romances (pois sempre escolhe a mesma espécie de personagens, as mesmas localidades, as mesmas situações), Tchekhov não consegue superá-los nos contos. No Brasil Machado de Assis e Guimarães Rosa costumam ser mencionados como dois dos maiores contistas da literatura mundial, porém nenhum deles consegue suportar uma comparação com Tolstói; o russo os destrói. O que se tem aqui é um dos gigantes máximos da literatura, cujo único desafiante é, ao que parece, Shakespeare (embora ambos possuam virtudes bastante diferentes). Hemingway disse acerca do russo (ou melhor, acerca de sua carreira literária):

"Comecei muito quieto e venci o Sr. Turgenev. Então eu treinei duro e venci o Sr. de Maupassant. Lutei dois rounds empatados com o Sr. Stendhal, e eu acho que obtive uma vantagem no último. Mas ninguém vai colocar em qualquer ring com o Sr. Tolstoi menos que eu esteja louco ou que eu continue ficando melhor."

Uma decisão sábia (deve ser ressaltado, ainda, a arrogância de Hemingway, pois é duvidoso que tenha vencido aos romancistas que cita). Também de Tolstói disse Tchekhov:

"Eu temo a morte de Tolstoi. Sua morte deixaria um grande espaço vazio na minha vida. Primeiro, eu jamais amei ninguém do jeito que eu o amei. Eu não sou um crente, mas de todas as crenças que considero o mais próximo da minha, a sua me parece a mais indicada para mim. Segundo, quando a literatura tem um Tolstoi, é fácil e gratificante ser um escritor. Mesmo se você está ciente de que você nunca atingiu nada, você não me sente tão mal, pois Tolstoi realiza o suficiente para todos. Suas atividades justificam as esperanças e as aspirações que são normalmente colocados na literatura. Em terceiro lugar, Tolstoi se mantém firme, sua autoridade é enorme, e enquanto ele está vivo o mau gosto na literatura, todas as vulgaridades em suas faces de bronze ou caras lacrimosas, permanecerão firmemente ao fundo. Sua autoridade moral é suficiente para manter o que nós pensamos como tendências literárias e escolas em um determinado nível mínimo. Se não fosse por ele, a literatura seria um rebanho sem pastor ou um emaranhado insondável."

Quando o homem estava velho, já com sua vasta barba de prata e grossas sobrancelhas, dizia-se que parecia um ser extremamente antigo, uma entidade primordial, que havia vagado por todas as florestas e bosques do mundo; dizia-se que parecia carregar cogumelos, fungos, flores, húmus e limo em sua barba, que insetos e pássaros escondiam-se entre suas feições; parecia emanar o cheiro do perfume de muitas mulheres, tanto damas quanto rameiras, pois Tolstói havia passado várias noites entre os seios e as pernas macias e quentes de diversas fêmeas; dizia-se que parecia conhecer a mente dos cavalos, dos lobos, dos ursos e das lebres; sentado em cadeiras, no jardim, suas pernas pareciam possuir raízes, veias profundamente enterradas no barro, por onde o colossal ancião trocava seivas e nutrientes com o planeta; suas mãos, repletas de nervos e veias saltados, pareciam entidades titânicas, empanturradas de força e vitalidade: em resumo, para seus contemporâneos o Tolstói final tinha a aura de um titã. É óbvio que existe muito exagero em tais visões, porém não há como negar o caráter titânico da ficção escrita por esse homem.
Shakespeare e Tolstói possuem uma diferença importante no que tange a linguagem: Shakespeare é o maior poeta que o mundo jamais viu, o mestre supremo da metáfora, do símile e das imagens verbais; Tolstói, ao contrário, sempre se vale de uma linguagem simples, direta, científica. O que une os dois escritores em um nível diferenciado de capacidade literária é a profunda variedade que ambos atingiram, algo que é próprio apenas aos dois. Jamais tantas e tão variadas pessoas foram criadas na literatura de forma tão magnífica quanto na obra de Shakespeare e Tolstói.
Quanto ao russo, basta analisar Guerra e Paz: milhares de personagens, milhares de cenas, milhares de situações. Somos apresentados a soldados; a membros da alta sociedade; a condes; a princesas; ao imperador da Rússia; a corte do imperador da Rússia; a Napoleão; aos generais de Napoleão; ao general russo Kutuzov; aos auxiliares do general russo Kutuzov; a mulheres belas e fúteis; a mulheres feias e pensativas; a mulheres de seios perfeitos, de cintura pequena e fartos quadris, que todos os homens desejam; a fanáticos religiosos; a sábios religiosos; a jovens jogadores; a jovens estudiosos e envergonhados; a playboys belos e ricos; a moças alegres e saltitantes; a velhos amargurados; a velhos festeiros; a velhas e experientes solteironas; a homens de guerra secos e incapazes de atuar em sociedade; a homens de guerra orgulhosos e famintos por dominar a sociedade; a camponeses pobres e ignorantes; a camponeses dotados de experiência de vida; a moradores da cidade humildes e sujos; a moradores da cidade violentos e com moral podre; a crianças; a bebês; a adolescentes. Do primeiro choro, dos primeiros grunhidos e gemidos de um recém-nascido até os últimos pensamentos no cérebro cansado de um patriarca moribundo: toda essa vida desfila pelas páginas de Guerra e Paz. E seu desfile é apresentado em uma inigualável riqueza de detalhes, pois nada escapa aos olhos de Tolstói, a suas imensas córneas: todos seus personagens são dissecados, todos têm sua anatomia exposta com perfeita clareza, com rigor matemático. Jamais se produziu um romance mais vasto, mais abrangente, mais completo. É uma obra que é fruto de uma série de condições perfeitas, porém que dificilmente ocorrem em conjunto: um homem inteligente; um homem experiente; um homem ambicioso; um homem dedicado; um homem trabalhador; um homem obsessivo; um homem rico, sem necessidade de trabalhar; um homem dotado de tempo de sobra; um homem com uma esposa inteligente, esforçada, faminta por motivar; um homem psicologicamente forte; um homem dotado de nervos de aço; um homem infatigável. Todas essas características se juntaram para que Guerra e Paz fosse gerado; é uma obra de uma abrangência jamais igualada em literatura (a não ser pela junção das obras de Shakespeare, que, se unidas, superam até mesmo a abrangência de Tolstói).
Na produção de A Morte de Ivan ilicht temos a criatura titânica que era Tolstói reclinando-se sobre um dos temais centrais de toda a produção intelectual humana: a morte. Era um tema central também para Tolstói, pois este possuía um medo doentio da morte, abominando-a mais do que a qualquer coisa, com uma intensidade fanática. O orgulhoso conde Tolstói, naturalmente arrogante, não conseguia suportar a idéia de que uma força natural como a morte ousasse por fim a sua existência, ousasse privá-lo do mundo (e privar o mundo dele). Não podendo derrotá-la, o romancista contentou-se em estudá-la, em entendê-la, em dissecá-la; o resultado mais perfeito e belo dessa luta se encontra concentrado na novela A Morte de Ivan Ilicht. Para se estudar o que se produziu de mais próximo de um atlas anatômico da morte, pode-se citar a novela de Tolstói como uma das candidatas a leitura.


Agora, vamos para Dostoiévski:

Notas do Subsolo

Autor: Fiodor Dostoievsky

Ver anexo 11751

Tolstói e Dostoievsky costumam ser citados juntos, nos volumes acerca da história da literatura universal, como dois gênios irmãos, dois companheiros em grandeza. Essa visão é exagerada, pois Tolstói é um artista superior, dotado de maior domínio técnico, de organização mais rigorosa e melhor perfeição formal. Além disso, a abrangência da obra de Tolstói é maior do que a de Dostoievsky: os personagens são mais variados; existe um maior número de filosofias; as figuras femininas são mais perfeitas; jovens doentios são expostos ao mesmo tempo em que o são os jovens sadios; existe uma maior variedade de cenas, de lugares, de situações. Em Dostoievsky, porém, sempre estamos em meio ao mesmo tipo de figuras (mentes perturbadas, doentias); as cenas repetem-se, sempre os mesmos locais, sempre a mesma atmosfera. Tolstói supera Dostoievsky nesse quesito: variedade.
A justiça, porém, tem de ser feita. Existe um aspecto muito importante da literatura no qual Dostoievsky supera Tolstói: a profundidade psicológica. Os personagens de Dostoiévsky são figuras gigantescas, como se o homem nos convidasse para caminhar pelos labirintos cerebrais de suas criaturas, por sobre as veias mentais de seus personagens. Tolstói jamais penetra tão profundamente nas entranhas de suas criações; jamais nos familiarizamos completamente com suas almas, como se pudéssemos sentir seu cheiro e seu sabor: Só em Dostoievsky esse fenômeno ocorre. Dostoievsky abre uma profunda incisão na carne das pessoas que cria; abre a pele, os músculos, expondo os órgãos, e então nos empurra para dentro da cavidade: faz-nos mergulhar dentro de sua carne, dentro das vísceras.
Uma das mais adequadas comparações feitas em matéria de arte é aquela entre Dostoievsky e Michelangelo; Anne Hollander, uma historiadora da arte e crítica literária americana, o faz de forma muito bela:

“Dostoievski e Michelangelo possuem muito em comum como artistas. Ambos são fascinados pelo ser humano, e fazem dele o tema central de suas obras. Mas não é uma humanidade normal, a humanidade das pessoas que nos cercam, a humanidade de nossos atos diários; não, não é nem mesmo a humanidade que encontramos em nossa própria reflexão sobre nós mesmos, desfiada ao deitarmos em nossas camas a noite, esse retrato morno e sonolento que modelamos contemplando as ações que fizemos durante o dia; não é a humanidade de um filosofar eventual, uma simples indigestão da auto-análise, não é aquele retrato mais íntimo que criamos de nós mesmos, aquela imagem da qual tanto nos orgulhamos, aquela profundidade que todos julgamos possuir: não! A humanidade retratada por tais artistas é colossal, imensa, magnânima. Montanhas de carne muscular chocam-se e serpenteiam nos afrescos de Michelangelo, abraçam-se, enredam-se, devorando o espaço com seus tentáculos de carne, engolindo com narinas famintas o oxigênio; suas esculturas latejam com músculos inchados, empanturrados de sangue, como que recém formigando pelo esforço, onde veias saltadas correm como rios de alguma seiva primordial. A anatomia desses colossos não é biologicamente possível; a mente de Michelangelo alimentou a natureza com seus sonhos, fez com que comesse do pão de suas visões, e assim misturou o sangue dos homens aos dos gigantes, ao dos titãs; a carne humana germinou, como que fecundada por sementes de bestas e anjos.
Assim também Dostoievski. Seus personagens principais, em seus monólogos, em seus momentos de febre e de êxtase, em suas meditações acerca do céu e do inferno, possuídos pelos intestinos e pelas entranhas ou pelo mais delicado véu da alma e do espírito, falam uma linguagem que jamais ser humano algum falou. As bocas vomitam torrentes de palavras incandescentes, por vezes balsâmicas, por vezes tóxicas, como vulcões a cuspir lava; metáforas e imagens galopam para fora das gargantas, por sobre as línguas, preenchendo o ar com pensamentos jamais concebidos por mentes normais. Os neurônios dos personagens de Dostoievski estão eternamente assomados pela peste de uma estranha febre, de uma loucura particular, ao mesmo tempo animalesca e querubínica: suas tempestades majestosas são cristalizadas e congeladas pelo autor em maravilhosas passagens de diálogo. Dostoievski parece ter passeado pelo mais profundo limo e lodo dos abismos obscuros; parece ter passeado por sobre as nuvens, nos gélidos ares da atmosfera: os detalhes que coletou em tais viagens foram aqueles com os quais temperou suas principais criações, cujos urros, uivos, súplicas, confissões e ameaças serão para sempre lembrados. Como Darwin, analisou em todos os detalhes as paisagens do espírito humano, colhendo besouros, lagartas, crustáceos, répteis, aves e mamíferos aninhados em tocas ocultas do espírito, desconhecidos, estranhos, porém maravilhosos.
Michelangelo e Dostoievski: eis dois irmãos na arte de esculpir monstros e anjos. Não é estranho que suas obras desdenhem paisagens, os bosques e montanhas, as cidades com prédios, ruas, avenidas; tais detalhes aparecem o mínimo possível, apenas quando extremamente necessário: não há espaço para cenários, para detalhes inúteis, pois a humanidade titânica, em sua fome, devora quaisquer espaços, exige toda a luz e todo o foco para si.”

Na realidade, Shakespeare e Dostoievsky são semelhantes na sua capacidade para a criação de figuras titânicas; isso, porém, parece dever-se mais ao fato de que seus personagens são artificiais: pessoas que falam e agem de uma forma que nenhuma pessoa no mundo jamais agiu e falou. Há o predomínio do exagero nas pessoas sonhadas por Shakespeare e Dostoievsky, e talvez seja essa a razão para que elas nos impressionem tanto: os traços psicológicos que reconhecemos em nós mesmos são elevados ao máximo nos personagens dos dois escritores; as falas são tecidas com uma linguagem que jamais falamos espontaneamente, mas que parece dizer aquilo que pensamos e sentimos de uma forma extremamente poderosa. Também os antigos dramaturgos gregos faziam seus personagens declamarem discursos que eram absurdamente exagerados, mas que, talvez por essa razão, justo por esse maravilhoso exagero, até hoje nos animam como sendo magníficos exemplos de poesia e personalidade.
Tolstói, ao contrário de Shakespeare, de Dostoievsky e dos dramaturgos gregos, cria pessoas perfeitamente iguais as pessoas que vivem entre nós, na realidade, perfeitamente iguais a nós mesmos. Se existe um lugar na literatura no qual a pessoa humana é retratada de forma mais fiel ao que é, esse lugar é a obra do conde Leão Tolstói. O conde era fanático por realismo, faminto pela verdade, e esforçava-se muito para reproduzir fielmente a vida. Dostoievsky, por outro lado, não parecia importar-se que sua fantasia escorresse sobre a tinta com a qual modelava suas frases, frases que modelavam seus personagens. Por essa razão Dostoievsky não refreava sua mão quando esta semeava as falas de suas pessoas fictícias com elementos demoníacos ou angelicais, assim como Shakespeare não se importava de produzir uma linguagem magnífica, supremamente poética e retórica: ambos pareciam extrair maior prazer em inventar mentes que jamais poderiam existir do que em simplesmente captarem e descreverem o mundo que os circundava. Shakespeare, no entanto, tinha o dom da variedade, como também o tinha Tolstói; Dostoievsky, embora também tenha produzido obras de uma diversidade esplêndida, não conseguiu igualar seu contemporâneo e o inglês nesse quesito. Suas obras mantêm sempre um mesmo perfume atmosférico, um perfume que jamais se dissipa em essências diferentes, mais leves.
Algo que deve ser afirmado, porém, é que criar pessoas artificiais e exageradas é mais fácil do que criar pessoas absolutamente fiéis a realidade; é mais difícil obter personagens como os de Tolstoi do que como os de Shakespeare e Dostoievsky, embora para leigos possa parecer o contrário.
Quanto ao livro Notas do Subsolo, em primeiro lugar deve ser referido que é divido em duas seções diferentes: a primeira é um grande monólogo do personagem principal (não nomeado), e a segunda uma breve narrativa, também em primeira pessoa, na qual o próprio narrador é também personagem.
A primeira parte é bastante confusa, convulsiva: um embolado de frases e pensamentos que não seguem um desenrolar rigidamente lógico e linear. Esse efeito parece, em um primeiro momento, ser buscado pelo escritor, porém o conhecimento das obras de Dostoievsky revela que essa confusão é uma de suas características: é como se o autor tivesse várias coisas para dizer, mas não conseguisse arrumar tempo ou paciência para fazê-lo organizadamente. Em certos casos, como no homem do subterrâneo, esse efeito convulsivo se adapta bem: reflete a personalidade do retratado. Em outras ocasiões, porém, o estilo de Dostoievsky deixa de aparentar ter um caráter funcional e assemelha-se mais a mero desleixo. Isso era algo que incomodada Tolstói, como se pode ver lendo algumas das anotações em seus diários:

“12 de outubro de 1910. (...) Depois do jantar li Dostoievski. As descrições são boas, apesar de que certas piadinhas, muito faladoras e não muito engraçadas, se interpõem no caminho. Mas as conversações são impossíveis, completamente não-naturais.(...)

18 de outubro de 1910. (...) Li Dostoievski e fiquei impressionado com sua maneira desleixada, artificialidade e fabricação (...)

19 de outubro de 1910. (...) Li superficialmente o primeiro volume dos Irmãos Karamazov e o terminei. Há muitas coisas boas no livro, porém é tão desorganizado. O grande Inquisidor e o adeus de Zossima.”

No monologo que abre Notas do Subsolo, o personagem narrador parece lidar com três idéias principais: em primeiro lugar o seu sofrimento e o seu desejo de sofrer, bem como o seu desejo de fazer os outros terem de tolerar sua dor e sua angústia, de obrigá-los a suportar seus lamentos; uma segunda idéia lida com a inércia, com a inação, caracterizando as mesmas como uma das características que definem o homem superior, pois o homem superior percebe que não existe razão para agir, para atuar, de forma que todos os homens de ação são, na verdade, inferiores aos seres passivos que baseiam sua inação em verdades filosóficas maiores; também há, no monologo inicial, uma crítica a razão baseada em lógica e em verdades cientificas, onde o homem do subsolo argumenta que qualquer um a qualquer hora pode decidir atuar da maneira que bem entender, sem pautar seus atos em quaisquer verdades lógicas e matemáticas.
A segunda parte do livro, intitulada A Propósito da Neve Molhada, narra o relacionamento do personagem narrador com alguns homens conhecidos no colégio, com seu mordomo e com uma jovem prostituta. Em passagens verdadeiramente angustiantes, percebemos o quanto é difícil para o homem do subsolo relacionar-se com outras pessoas. Tem-se a impressão de que uma inteligência demasiadamente aguda capta os defeitos de todas as pessoas, em todas as situações, e que um senso moral extremamente rígido é incapaz de perdoar tais falhas.
O homem do subsolo sofre, ao que parece, pelo fato de que não consegue suportar as manchas no caráter que são, em sociedade, escondidas e omitidas. As pessoas normais (para poderem se relacionar) fingem não perceber defeitos nos outros, bem como não se punem pelos seus próprios defeitos; o homem do subsolo, porém, não consegue fingir que tais máculas não existam, e também não perdoa suas próprias faltas, sua própria mediocridade.
A tolerância que todos possuem para poderem se manter em busca de seus interesses é algo que não existe no homem do subterrâneo; por exemplo: para situar-se bem em sociedade, muitos de seus conhecidos fingem gostar de outros amigos influentes, fingem se divertir com suas piadas, fingem apreciar sua companhia, fingem gostar de ouvir suas histórias, fingem estarem felizes pelo sucesso do outro; quanto ao homem do subterrâneo, o mesmo não consegue fingir, e a percepção de que os outros fingem o deixa ainda mais feroz.
As relações sociais realmente exigem um amplo grau de tolerância, pois nós somos naturalmente egoístas (que nos importa o sucesso alheio, os feitos alheios); mais complexa ainda é a situação para alguém de ampla inteligência, alguém que consegue ler, atrás de cada ato ou frase, as intenções ocultas e escondidas: conseguir vislumbrar os pensamentos alheios e suportá-los é algo desafiador, e o homem do subsolo não é capaz de fazê-lo. A noção de nossa própria mediocridade também é algo que se faz mais presente em mentes amplas: o conhecimento da história humana e de seus principais gênios e expoentes mostra o quão longe pode a mente humana chegar, e o quão pequena ela costuma ser na esmagadora maioria das existências. O homem do subsolo jamais perde a noção de sua mediocridade, e, por não tolerar falsidades, tortura-se o tempo todo a expor seus defeitos e fraquezas, sem sonhar em ocultá-los. Se em determinados momentos demonstra orgulho por seu intelecto, logo depois volta a relatar o quão incapaz percebe ser; parece que expor sua inteligência é uma espécie de mecanismo de defesa utilizado pelo narrador todas as vezes em que seu raciocínio roça o mais completo desespero.
O homem do subsolo parece ser, em resumo, uma alma amargurada pela mediocridade geral da raça humana, sendo também uma alma furiosa, cujo ódio advém do fato de que todos se sentem orgulhosos de ser o que são, sem importarem-se com suas próprias limitações. O irrita o fato de que as pessoas, em geral, pensam que são importantes, que são insubstituíveis, que possuem qualidades, e que, para serem tratadas com respeito pelas outras pessoas, devem fingir que gostam delas e que se divertem com elas: o narrador não consegue suportar que todos simplesmente não se desesperem ao darem-se conta de sua própria inferioridade; irrita-o ao extremo que as pessoas sejam medíocres mas que não o percebam: parece desejar que todos tomassem noção do quanto são desprovidos de valor, que afundassem de uma vez por todas na tristeza e no desespero que merecem por ser tão limitados, tão vazios de qualidades.
Não se pode dizer que o homem do subsolo seja louco: é apenas um homem com uma grande inteligência e uma afiada percepção, desprovido, porém, de tolerância e de capacidade de aceitar serenamente as coisas como são. Se alguém quiser acusar tal infeliz: dizer que não pode apontar a mediocridade alheia já que ele próprio é medíocre, isso apenas o fará sorrir com amargura, pois ele mesmo tem noção de sua mediocridade, ao passo que nós costumamos nos esquecer da nossa.


Ufa!!! Peço que me perdoem por quaisquer burrices que eu tenha dito.

E agora eu gostaria que o pessoal do Fórum falasse de suas opiniões acerca dos dois russos-maravilha.

Abração para todos.

Matheus:traça:
 
"A morte de Ivan Ilitch" é terrífico. Li a primeira vez aos 23 anos de idade, em estado de saúde física mas no meio de uma depressão muito forte. A pior crise que tive foi nessa época, e parecia que eu só atraía esse tipo de literatura/filme pra mim.

Mas "a morte de Ivan Ilitch" é sobre um câncer? Não foi uma "trombada" que ele levou ao subir num local e que acabou causando uma hemorragia interna, algo assim?

De qqr forma sua descrição do câncer me assustou. Duas primas minhas (mais velhas) e um avô morreram de câncer. Foram de fato mortes terríveis. Espero morrer como minha avó paterna - de infarto fulminante, algo bem rápido.
 

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