Glorwendel
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Ao invés de criar um tópico para cada artigo interessante que encontrar, achei por bem criar um só, onde todos poderão postar e comentar textos e/ou citações interessantes que acharem por aí.
Hoje no jornal O Globo o jornalista, ensaísta, etc Affonso Romano de Sant'anna escreveu algo interessante sobre a percepção do que é e de quem é artista. Pra quem não o conhece, ele também é o autor do texto "TolkienXPotter", que está disponível no site da Valinor.
Hoje no jornal O Globo o jornalista, ensaísta, etc Affonso Romano de Sant'anna escreveu algo interessante sobre a percepção do que é e de quem é artista. Pra quem não o conhece, ele também é o autor do texto "TolkienXPotter", que está disponível no site da Valinor.
Affonso Romano de Sant'anna disse:Quem cria o criador?
Estaríamos diante de um paradoxo: nunca tanta gente se disse artista
Um respeitável publicitário me dizia que existem mecanismos para se saber, no mesmo dia, se as pessoas estão (ou não) absorvendo os anúncios lançados na mídia e que há como medir quais notícias e matérias nos jornais são preferencialmente lidas. Isto é equivalente ao ibope monitorado pela televisão, capaz de anotar, minuto a minuto, o que o espectador está preferindo ver. É de se supor, portanto, que existe uma pesquisa científica do gosto e do hábito. E como vivemos na sociedade do consumo, os produtores crêem estar satisfazendo o gosto e as necessidades da audiência. Agindo assim se dispensam até de ter remorsos.
Só que estudos têm sido feitos para se demonstrar que o gosto, o hábito e as preferências são também inoculados e disseminados. E como vivemos numa cultura espetacular e especular acabamos tomando como verdadeira, autêntica e concreta a imagem que projetamos, como ilustram filmes tipo “Matrix”. Não faltam, aliás, estudos, na linha de Baudrillard, considerando a sociedade virtual como prisioneira de um jogo de espelhos, onde já não se sabe mais quem reflete quem ou o quê.
Ionesco, em “A cantora careca”, ironicamente vai dizendo que, se você toma um círculo e o acaricia, ele acaba virando um círculo vicioso. O círculo vicioso, então, é isso: é algo que construímos, a que nos afeiçoamos e a que, redondamente enganados, continuamos ligados. Para se sair das artimanhas do virtual e romper o círculo vicioso talvez se devesse passar a algo que alguém, também ironicamente, poderia chamar de círculo virtuoso.
“Quem cria o criador?” — indaga-se Pierre Bourdieu.
O mais comum e universal dos pensamentos humanos é este. “Alguém deve ter criado tudo isto”. Os que creditam isto a um Deus explícito se tranqüilizam. Os que não acreditam em deus algum, por sua vez, concordam que alguma coisa continua a criar as coisas. Portanto, existe uma certa noção de mistério em relação à criação. Mas se isto é um fato, outro fato inevitável do comportamento humano é tentar decifrar o mistério. Por isto que nossa história talvez não seja mais que a seqüência de tentativas, através da arte, da religião e da ciência, de representar, reverenciar ou decifrar o mistério da criação.
Bourdieu continua indagando: “O que cria a autoridade com a qual o autor se autoriza?”. Ou seja: quem ou que sistema legitima a autoridade e o prestígio de um autor e criador?
Para responder a isto ele retoma a questão do “valor” antes e depois de Marx, mostrando como as sociedades estabelecem acordos em torno de valores éticos, artísticos e econômicos. É o que chama de “círculo de crenças”, que, é claro, teria muito a ver com o “circulo vicioso” que Ionesco ironicamente acariciava. E com Marcel Mauss lembra que temos um comportamento religioso em relação aos valores. A qualquer valor. Por exemplo, os valores artísticos. E na religião artística, segundo ele, também há “boa-fé” e “má-fé”. Há atitudes “sacrílegas” e “consagradoras”. E entre os paradoxos está o fato de que o iconoclasta de ontem pode virar ídolo reverenciado hoje.
Bourdieu sai do blá-blá teórico e desenvolve pesquisas de campo para mostrar como o gosto francês se criou em torno de livros, peças de teatros e obras plásticas. É uma maneira de ir decifrando o mistério da “autoria” e de saber quem autoriza e legitima alguém a ser autor. O criador, mais que uma pessoa, é um feixe de relações.
Mais longe ainda vai Raymonde Moulin em “L’artiste, l’institution et le marché” (Flammarion), um dos mais densos e competentes livros sobre o mercado de arte. Usando estatísticas e gráficos, faz um exaustivo levantamento do consumo da arte. Estuda os investimentos públicos e privados, as importações e exportações, o comportamento das classes sociais, concessão de prêmios, formação dos artistas, rendimentos de diversos tipos de artistas, etc. E acaba fazendo a mesma pergunta de Bourdieu: “Quem é artista?”. Avalia, então, os quatro critérios disponíveis para responder a essa pergunta: 1) independência econômica (viver de sua profissão); autodefinição (se declarar artista); competência específica (ser diplomado por uma escola de arte); reconhecimento do meio artístico (dado por pessoas de seu grupo). Mas acaba reconhecendo que hoje, diante da relatividade de todos os critérios, são o “marketing” e o carisma pessoal que decidem “quem” é artista.
No entanto, lembra que na Idade Média uma pessoa, aos 12 anos, entrava para uma corporação como aprendiz de um mestre por cinco anos, passando nos quatro anos seguintes ao estágio de companheiro e só então podia aventurar-se à confecção de uma obra-mestra. Na Renascença, esperava-se que o artista dominasse vários campos do conhecimento, reunindo, como Michelangelo, tanto o “saber” quanto o “saber fazer”. A partir da exacerbação do individualismo romântico chegou-se, diz Moulin, no século XX, sobretudo a partir dos anos 60, não só à “autodestruição da arte e à desprofissionalização, no sentido de desespecifização e depreciação”. Chegou-se ao que chama de “autodidaxia” e à “anomia estética”.
Numa sociedade em que qualquer pessoa pode se declarar artista, Moulin, que há quarenta anos estuda o mercado de arte na França, mostra que entre 1964 e 1982 houve um aumento de 52% de artistas no país, enquanto a população cresceu apenas 17%. Já Robert Hughes havia anotado que os 35 mil artistas que surgem anualmente nos Estados Unidos equivalem à população de Florença no Renascimento. Onde estão os Da Vinci, Rafael, Michelangelo e Celini dessas safras?
Estaríamos, portanto, diante de um paradoxo: nunca tanta gente se declarou artista. No entanto, nunca tanta gente reclamou que não reconhece arte alguma no que é apresentado como tal. Das duas, uma: ou existe uma arte que tem sido desestimulada e reprimida pela religião artística dominante ou a definição de artista está equivocada.