Cantona
Tudo é História
Stanislaw Ponte Preta / SÉRGIO Marcos Rangel PORTO
(11.01.1923 - 29.09.1968)
Eles se gostavam. “Stanislaw Ponte Preta foi criado junto comigo e, praticamente, é meu irmão de criação”, dizia Sérgio Porto sobre o pseudônimo famoso que terminou por ser uma personalidade autônoma, só faltando RG e CPF próprio.
Numa análise rasa, dá pra distinguir as crônicas de um e do outro pelo tom: a de Sérgio era pontuada por nostalgia. Esta aí a coletânea “A casa demolida” que não me deixa mentir. A de Stanislaw transbordava humor, seja para relatar casos cotidianos, seja para expor as mazelas de um país excludente e de uma elite fodida como a nossa.
Vamos passear pelos dois. Primeiro pelo mais famoso, que Sérgio Porto “brincava falando sério quando dizia que seu primo Stanislaw Ponte Preta lhe roubara todos os empregos”.
Stanislaw Ponte Preta:
É perigoso, mas vou arriscar: todos nós, em algum momento da nossa vida de leitores, já nos deparamos com algum texto de Stanislaw Ponte Preta. Esse senhor que apagou a luz jovem, aos 45 anos, foi e continua sendo o responsável, quando não pela iniciação, pela pavimentação do caminho literário de muita gente. Vou dar um exemplo que me é importante e caro: o meu.
Eu não adquiri o hábito de ler na escola, como inúmeros brasileirinhos. Foi em casa que a coisa se deu. Dentre as primeiras leituras que me lembro, destacam-se a da velhinha e sua lambreta, no contrabando por algum ponto de nossas fronteiras, e a de um padre, todo disciplinador, que num término de recreio se esquece da batina e sai driblando adversários imaginários e comemora como ídolo da seleção seu gol fantasioso. Tudo com muita graça, como é a tônica Ponte Pretana. Ambas encontravam-se numa série, se não engano da Editora Ática, intitulada Pra gostar de ler. Impossível ser indiferente ao universo que os livros iam abrindo e agora com um novo ingrediente: o humor. Evidente que à época muito da sutileza do Stanislaw passava ao largo, pois inexistia a vivência e por consequência a malícia, necessárias para risos não palermas. Cito, também, a ausência da capacidade de contextualização, mas com ressalvas: embora as crônicas do Stanislaw ainda pipoquem atualíssimas por aqui, principalmente o FEBEAPÁ, já que esse país tem aquele raro dom do “quanto mais muda, mais igual fica”, a situação no momento histórico permite conhecer pedaços da nossa História cujos personagens principais somos nós mesmos, não os heróis que ditam destinos.
Apaixonei-me por livros via Stanislaw (tudo bem que tive o Paulo Coelho desempenhando um papel fundamental nesse processo. Foi o mago das letras que me solidificou como leitor. Numa analogia entre a descoberta da literatura e a descoberta do sexo oposto, posso dizer que o primeiro beijo foi Stanislaw Ponte Preta e a primeira transa foi Paulo Coelho). E que coincidência é o amor, não é verdade? Na graduação, numa aula de Educação, FEBEAPÁ foi assunto como uma boa forma de se iniciar a abordagem do período militar brasileiro. Eu, que me casei com a História, e que sempre que posso pulo a cerca com Letras, encontrei a situação perfeita.
É lendo Garoto Linha Dura e FEBEAPÁ 1, 2 e 3, publicados por Stanislaw pós golpe de 64, que a gente tem a certeza de que Deus é Brasileiro (vá lá, vendo a Ísis Valverde, também). Etâ povinho sortudo, esse nosso! Afinal, foram tantos os mandos e desmandos da "REDENTORA" - também conhecida como Ditadura - que isso daqui era pra ser muito mais bagunçado do que já é.
Li muita coisa sobre o Regime Militar Brasileiro. Muita obra historiográfica, carregada de linguagem acadêmica, que de certa forma limita a função do historiador aos muros universitários e terminam por abrir o mercado para jornalistas, alguns com livros apenas ruins, como o Laurentino Gomes e seu 1808, outros com livros escrotos do começo ao fim, como a série Guia do Politicamente Incorreto da História do Brasil, da América Latina e da Puta que os Pariu... enfim, divaguei. Deixa eu retomar o raciocínio. Como ia dizendo, li muitos historiadores que tratam do período, de modo que Stanislaw complementou a visão metodológica: ali, nas páginas Ponte Pretanas, beirando a ficção, o cotidiano dos comuns - o meu, o seu e o do dono da banca de jornal. Nada da investigação acadêmica, apenas estórias revelando a história. Até no inventado, a mentalidade do período transborda, como na crônica que batiza Garoto Linha Dura:
Deu-se que Pedrinho estava jogando bola no jardim e, ao emendar a bola de bico por cima do travessão, a dita foi de contra uma vidraça e despedaçou tudo. Pedrinho botou a bola debaixo do braço e sumiu até a hora do jantar, com medo de ser espinafrado pelo pai.
Quando o pai chegou, perguntou à mulher quem quebrara o vidro e a mulher disse que foi Pedrinho, mas que o menino estava com medo de ser castigado, razão pela qual ela temia que a criança não confessasse o seu crime.
O pai chamou Pedrinho e perguntou:
— Quem quebrou o vidro, meu filho?
Pedrinho balançou a cabeça e respondeu que não tinha a mínima idéia. O pai achou que o menino estava ainda sob o impacto do nervosismo e resolveu deixar para depois.
Na hora em que o jantar ia para a mesa, o pai tentou de novo:
— Pedrinho, quem foi que quebrou a vidraça, meu filho? — E, ante a negativa reiterada do filho, apelou: — Meu filhinho, pode dizer quem foi que eu prometo não castigar você.
Diante disso, Pedrinho, com a maior cara-de-pau, pigarreou e lascou:
— Quem quebrou foi o garoto do vizinho.
— Você tem certeza?
— Juro.
Aí o pai se queimou e disse que, acabado o jantar, os dois iriam ao vizinho esclarecer tudo. Pedrinho concordou que era a melhor solução e jantou sem dar a menor mostra de remorso. Apenas — quando o pai fez ameaça — Pedrinho pensou um pouquinho e depois concordou.
Terminado o jantar o pai pegou o filho pela mão e — já chateadíssimo — rumou para a casa do vizinho. Foi aí que Pedrinho provou que tinha idéias revolucionárias. Virou-se para o pai e aconselhou:
— Papai, esse menino do vizinho é um subversivo desgraçado. Não pergunte nada a ele não. Quando ele vier atender a porta, o senhor vai logo tacando a mão nele.
Sobre Febeapá, Stanislaw começa:
É difícil ao historiador precisar o dia em que o Festival de Besteira começou a assolar o Páis. Pouco depois da "redentora", cocorocas de diversas classes sociais e algumas autoridades que geralmente se dizem "otoridades", sentindo a oportunidade de aparecer, já que a "redentora", entre outras coisas, incentivou a política do dedurismo (corruptela de dedo-durismo, isto é, a arte de apontar com o dedo um colega, um vizinho, o próximo enfim, como corrupto ou subversivo - alguns apontavam dos dedos duros, para ambas as coisas) iniciaram essa feia prática, advindo daí cada besteira que eu vou te contar.
Lembrem-se que notei o alastramento do Festival de Besteira depois que uma inspetora de ensino no interior de São Paulo, portanto uma senhora de um nível intelectual mais elevado pouquinha coisa, ao saber que seu filho tirara zero numa prova de Matemática, embora sabendo que o filho era um debilóide, não vacilou em apontar às autoridades o professor da criança como perigoso agente comunista.
E de muitas besteiras, mais algumas para atiçar a vontade:
“ (...) Era dos mais democratizadores o caso criado pelo Coronel Comandante do Batalhão de Carros de Combate, sediado em Valença (RJ), que cerceou Barra do Piraí com 800 soldados e exigiu que a Câmara de Vereadores local elegesse os membros da mesa conforme listinha que entregou ao presidente da Assembleia. Dizem que foi a eleição “democrática” mais rápida que já houve.”
“(...) Em Tenente Portela (RS) um policial chamado Neider Madruga, prendeu toda a Câmara de Vereadores porque o candidato da sua curriola não foi eleito na renovação da mesa diretora. Mesmo com o “habeas-corpus” aos vereadores, dado pelo juiz local, o Madruga levou todos em cana para Porto Alegre, preferindo fazer democracia com as próprias mãos.”
" ... Quando se desenhou a perspectiva de uma seca no interior cearense, as autoridades dirigiam uma circular aos prefeitos, solicitando informações sobre a situação local depois da passagem do equinócio. Um prefeito enviou a seguinte resposta, à circular: " Doutor Equinócio ainda não passou por aqui. Se chegar será recebido como amigo, com foguetes, passeata e festas... "
"... O Sr. Joaquim, porém, deve ter mudado de técnica, porque - meses mais tarde - quando agiu da mesma maneira, deixando que a Polícia baixasse o porrete nas professoras primárias do Estado (elas protestavam contra o não pagamento de seus vencimentos que estavam atrasados de vários meses), o Secretário de Segurança mineiro não espalhou mais o boato de que não tinha mandado bater. Disse apenas que seus homens bateram nas professoras "porque elas tentaram me agredir."
Antigamente a escola era risonha e franca, mas houve uma certa evolução e as professoras apanharam. " No meu tempo" - dizia-me o distraído Rosamundo, comentando as lamentáveis ocorrências - " ninguém levantava a mão para a professora. A gente, no máximo, levantava o dedo e, assim mesmo, quando estava apertado pra ir lá dentro..."
E quem não se lembra da família Ponte Preta? Tia Zulmira, a sábia da Boca do Mato, Rosamundo, o distraído Rosamundo, e Primo Altamirando, o canalha:
Primo Altamirando é nosso consanguíneo apenas por parte de pai, como aliás devem ser todos os parentes. Porque consanguíneo por parte de pai e mãe, só mesmo irmãos, pois primos que casam com primos, dá sempre em bronca. Tia Zulmira costuma dizer: Padres Primos e Pombos – os dois primeiros não servem pra casar, os dois últimos só servem para sujar a casa. Como sempre a velha tem razão.
Assim, o nosso abominável parente é primo por parte de pai (Gumercindo Tenório Ponte Preta), mesmo porque, nunca teve mãe. Um dia Gumercindo entrou em casa com um embrulho debaixo do braço, um embrulho de jornal se não nos falha a História, o jornal era o O dia – e disse pra Tia Zulmira:
- Trouxe isto pra você, Mamãe.
Como Gumercindo nunca fora de dar nada a ninguém, todos correram para ver o que era. Desembrulharam o presente – era Mirinho.
Em tempo, Sérgio Porto batizou-se Stanislaw Ponte Preta inspirado pelo personagem Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade.
Sérgio Porto
Sérgio Porto foi um cronista da cidade. Com o nome de batismo publicou “A casa demolida”, onde suas lembranças dão o tom à mudança urbanística no Rio de Janeiro, com suas casas de pomares e varandas dando lugar aos “feios edifícios”. Temos também a boêmia, as relações de amor e amizade e a convivência com personalidades, como Heleno de Freitas, Dolores Duran, o palhaço Benjamim.
A moça e a varanda
Quem dobrasse à esquerda encontraria logo o portão. Abrindo-os, estaria no jardim - modesto jardim, onde outrora houvera uma roseira que morreu de solidão. Do jardim saía a alameda das samambaias que daria acesso à varanda. Em dias de domingo — que os havia plenos de luz e de azul — já a meio caminho, entre as samambaias, um ouvido mais familiarizado conosco, os de lá, poderia distinguir facilmente os risos da gente. Ríamos muito, naquele tempo.
Da varanda, que dizer? Algumas cadeiras de vime, a mesinha que tinha um pé mais curto que os outros e dois jarrões, um em cada canto, cujas plantas (nunca lhe soubemos o nome) davam umas florzinhas amarelas e cheirosas no mês de abril, para contrariar o outono.
A entrada era uma apenas, pela direita, subindo-se a escada de mármore de três degraus. O resto da varanda era rodeado pelo patamar onde havia, no centro, uma jardineira. Depois que o último de nós ficou mais crescido e menos travesso, ali floriram gerânios.
Hoje, quem me vê não diz que eu já morei numa casa onde as cotovias faziam ninhos. Deus não me deixa mentir. No telhado da varanda, durante anos e anos, elas se hospedavam, para alegria nossa e inveja dos outros garotos da redondeza. Quando, pela primeira vez, falou-se em demolir a casa para construir o prédio feio que lá está até hoje, meu primeiro pensamento foi para os ninhos das cotovias.
Vejam só que menino puro o mundo perdeu!
Os grandes dias da varanda eram os já citados domingos, quando toda a família se reunia para alegres almoços. Dessa época restam somente dolorosas fotografias.
Já as grandes noites vieram mais tarde, quando Luizinha apareceu. Chegava - como sempre chegou - assustada com a possibilidade do irmão tê-la seguido. Perfeito o Eduardo (para ela Duá) na sua providencial vagotonia.
Só depois que Luizinha se certificava que ninguém a seguira pela alameda das samambaias (“Foi o vento, Luizinha, que balançou as folhas.”) é que vinha o primeiro chamar de "meu bem", o primeiro beijo, morno beijo que nunca devia ter esfriado.
No dia em que ela não veio, pensei uma porção de vinganças impossíveis e votei-lhe um ódio de morte que durou quase um minuto. Era a decepção que sempre nos deixa o pecado irrealizado, logo apagada pela idéia de que não nos faltará tempo para pecar. De fato, na outra noite — hora de sempre — lá veio ela, fugindo de uma sombra para outra, para enganar o irmão. Nesse encontro nos juramos uma eterna fidelidade amorosa e fomos mais dramáticos em nossas palavras, gestos, atitudes.
Pra quê, Luizinha? Seguisses o juramente e eu te enganaria, não o seguindo, como o fizeste, enganaste-me primeiro, para confessares depois. Choraste então, e eu também chorei sem nenhuma convicção.
Vejam vocês que rapaz fingido o mundo consertou!
Num mês de abril, de 1947, demoliram a varanda. Eu vi. Parado na rua, lá da calçada em frente, esperei que os operários derrubassem o último tijolo da última parede e voltei para o apartamento com a sensação de que, dentro de mim, algo também fora demolido.
Quanto a Luizinha, resistiu mais tempo, deixou-se demolir aos poucos. Foi preciso mais do que um simples dia de abril, foi preciso toda uma mocidade para deixá-la tal como ontem a vi.
Vocês nunca saberão que excelente moça o mundo estragou!
É dele um conjunto de novelas, “As cariocas” que a Rede Globo recentemente levou às telas. Destaque para “A desinibida do Grajaú”, tanto no livro quanto na série televisiva, uma vez que é a boazuda da Grazi Massafera quem interpreta a personagem.
Publicou, também, Pequena História do Jazz.
Muito ainda pode ser dito. Apesar de viver apenas 45 anos, Sérgio teve uma grande produção. Cobriu, como Stanislaw, a Copa de 62, mandando do Chile crônicas impagáveis sobre os jogos do Brasil. Bolou As Certinhas do Lalau, uma variedade de boas mulheres que encantavam seus leitores, polemizou com o colunista social Ibrahim Sued – a quem dizia ser “a ignorância mais bem paga do pais” e deixou “O Transplante”, um romance incompleto.
Eis os homens que até hoje fazem o país rir das suas misérias. Porém, não um riso tonto, imbecil. Mas um riso fruto do humor que foi sua arma para sacudir algumas estruturas arcaicas que ainda estão aí, nos subjugando.
Bibliografia:
Sérgio Porto
Pequena história do jazz, 1953
A Casa Demolida, 1963
As Cariocas, 1967
Stanislaw Ponte Preta
Tia Zulmira e eu, 1961
Primo Altamirando e elas, 1962
Rosamundo e os outros, 1963
Garoto Linha Dura, 1964
Febeapá 1, 1966
Febeapá 2, 1967
Febeapá 3 / Na terra do crioulo doido / A máquina de fazer doido, 1968
Póstumo:
A Revista do Lalau, 2008 - organização de inéditos por Luís Pimentel, incluindo o romance inacabado "O Transplante".
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