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Autor da Semana Stanislaw Ponte Preta / Sérgio Porto

Cantona

Tudo é História
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Stanislaw Ponte Preta / SÉRGIO Marcos Rangel PORTO
(11.01.1923 - 29.09.1968)
Esse é um tópico duplo. Aqui, vocês terão dois autores: Sérgio Porto e Stanislaw Ponte Preta. A biografia é semelhante: ambos nasceram no Rio de Janeiro, em 1923 e pelas ruas e praias cariocas viveram intensamente. Jogaram futebol com Heleno de Freitas, beberam de tudo, cantaram madrugada adentro e amaram mais mulheres do que podemos lembrar. Foram “jornalista, radialista, televisista (o termo não existe, mas a profissão sim), teatrólogo, humorista, publicista e bancário”.

Eles se gostavam. “Stanislaw Ponte Preta foi criado junto comigo e, praticamente, é meu irmão de criação”, dizia Sérgio Porto sobre o pseudônimo famoso que terminou por ser uma personalidade autônoma, só faltando RG e CPF próprio.

Numa análise rasa, dá pra distinguir as crônicas de um e do outro pelo tom: a de Sérgio era pontuada por nostalgia. Esta aí a coletânea “A casa demolida” que não me deixa mentir. A de Stanislaw transbordava humor, seja para relatar casos cotidianos, seja para expor as mazelas de um país excludente e de uma elite fodida como a nossa.

Vamos passear pelos dois. Primeiro pelo mais famoso, que Sérgio Porto “brincava falando sério quando dizia que seu primo Stanislaw Ponte Preta lhe roubara todos os empregos”.

Stanislaw Ponte Preta:

É perigoso, mas vou arriscar: todos nós, em algum momento da nossa vida de leitores, já nos deparamos com algum texto de Stanislaw Ponte Preta. Esse senhor que apagou a luz jovem, aos 45 anos, foi e continua sendo o responsável, quando não pela iniciação, pela pavimentação do caminho literário de muita gente. Vou dar um exemplo que me é importante e caro: o meu.

Eu não adquiri o hábito de ler na escola, como inúmeros brasileirinhos. Foi em casa que a coisa se deu. Dentre as primeiras leituras que me lembro, destacam-se a da velhinha e sua lambreta, no contrabando por algum ponto de nossas fronteiras, e a de um padre, todo disciplinador, que num término de recreio se esquece da batina e sai driblando adversários imaginários e comemora como ídolo da seleção seu gol fantasioso. Tudo com muita graça, como é a tônica Ponte Pretana. Ambas encontravam-se numa série, se não engano da Editora Ática, intitulada Pra gostar de ler. Impossível ser indiferente ao universo que os livros iam abrindo e agora com um novo ingrediente: o humor. Evidente que à época muito da sutileza do Stanislaw passava ao largo, pois inexistia a vivência e por consequência a malícia, necessárias para risos não palermas. Cito, também, a ausência da capacidade de contextualização, mas com ressalvas: embora as crônicas do Stanislaw ainda pipoquem atualíssimas por aqui, principalmente o FEBEAPÁ, já que esse país tem aquele raro dom do “quanto mais muda, mais igual fica”, a situação no momento histórico permite conhecer pedaços da nossa História cujos personagens principais somos nós mesmos, não os heróis que ditam destinos.

Apaixonei-me por livros via Stanislaw (tudo bem que tive o Paulo Coelho desempenhando um papel fundamental nesse processo. Foi o mago das letras que me solidificou como leitor. Numa analogia entre a descoberta da literatura e a descoberta do sexo oposto, posso dizer que o primeiro beijo foi Stanislaw Ponte Preta e a primeira transa foi Paulo Coelho). E que coincidência é o amor, não é verdade? Na graduação, numa aula de Educação, FEBEAPÁ foi assunto como uma boa forma de se iniciar a abordagem do período militar brasileiro. Eu, que me casei com a História, e que sempre que posso pulo a cerca com Letras, encontrei a situação perfeita.

É lendo Garoto Linha Dura e FEBEAPÁ 1, 2 e 3, publicados por Stanislaw pós golpe de 64, que a gente tem a certeza de que Deus é Brasileiro (vá lá, vendo a Ísis Valverde, também). Etâ povinho sortudo, esse nosso! Afinal, foram tantos os mandos e desmandos da "REDENTORA" - também conhecida como Ditadura - que isso daqui era pra ser muito mais bagunçado do que já é.

Li muita coisa sobre o Regime Militar Brasileiro. Muita obra historiográfica, carregada de linguagem acadêmica, que de certa forma limita a função do historiador aos muros universitários e terminam por abrir o mercado para jornalistas, alguns com livros apenas ruins, como o Laurentino Gomes e seu 1808, outros com livros escrotos do começo ao fim, como a série Guia do Politicamente Incorreto da História do Brasil, da América Latina e da Puta que os Pariu... enfim, divaguei. Deixa eu retomar o raciocínio. Como ia dizendo, li muitos historiadores que tratam do período, de modo que Stanislaw complementou a visão metodológica: ali, nas páginas Ponte Pretanas, beirando a ficção, o cotidiano dos comuns - o meu, o seu e o do dono da banca de jornal. Nada da investigação acadêmica, apenas estórias revelando a história. Até no inventado, a mentalidade do período transborda, como na crônica que batiza Garoto Linha Dura:

Deu-se que Pedrinho estava jogando bola no jardim e, ao emendar a bola de bico por cima do travessão, a dita foi de contra uma vidraça e despedaçou tudo. Pedrinho botou a bola debaixo do braço e sumiu até a hora do jantar, com medo de ser espinafrado pelo pai.
Quando o pai chegou, perguntou à mulher quem quebrara o vidro e a mulher disse que foi Pedrinho, mas que o menino estava com medo de ser castigado, razão pela qual ela temia que a criança não confessasse o seu crime.
O pai chamou Pedrinho e perguntou:
— Quem quebrou o vidro, meu filho?
Pedrinho balançou a cabeça e respondeu que não tinha a mínima idéia. O pai achou que o menino estava ainda sob o impacto do nervosismo e resolveu deixar para depois.
Na hora em que o jantar ia para a mesa, o pai tentou de novo:
— Pedrinho, quem foi que quebrou a vidraça, meu filho? — E, ante a negativa reiterada do filho, apelou: — Meu filhinho, pode dizer quem foi que eu prometo não castigar você.
Diante disso, Pedrinho, com a maior cara-de-pau, pigarreou e lascou:
— Quem quebrou foi o garoto do vizinho.
— Você tem certeza?
— Juro.
Aí o pai se queimou e disse que, acabado o jantar, os dois iriam ao vizinho esclarecer tudo. Pedrinho concordou que era a melhor solução e jantou sem dar a menor mostra de remorso. Apenas — quando o pai fez ameaça — Pedrinho pensou um pouquinho e depois concordou.
Terminado o jantar o pai pegou o filho pela mão e — já chateadíssimo — rumou para a casa do vizinho. Foi aí que Pedrinho provou que tinha idéias revolucionárias. Virou-se para o pai e aconselhou:
— Papai, esse menino do vizinho é um subversivo desgraçado. Não pergunte nada a ele não. Quando ele vier atender a porta, o senhor vai logo tacando a mão nele.

Sobre Febeapá, Stanislaw começa:

É difícil ao historiador precisar o dia em que o Festival de Besteira começou a assolar o Páis. Pouco depois da "redentora", cocorocas de diversas classes sociais e algumas autoridades que geralmente se dizem "otoridades", sentindo a oportunidade de aparecer, já que a "redentora", entre outras coisas, incentivou a política do dedurismo (corruptela de dedo-durismo, isto é, a arte de apontar com o dedo um colega, um vizinho, o próximo enfim, como corrupto ou subversivo - alguns apontavam dos dedos duros, para ambas as coisas) iniciaram essa feia prática, advindo daí cada besteira que eu vou te contar.
Lembrem-se que notei o alastramento do Festival de Besteira depois que uma inspetora de ensino no interior de São Paulo, portanto uma senhora de um nível intelectual mais elevado pouquinha coisa, ao saber que seu filho tirara zero numa prova de Matemática, embora sabendo que o filho era um debilóide, não vacilou em apontar às autoridades o professor da criança como perigoso agente comunista.

E de muitas besteiras, mais algumas para atiçar a vontade:

“ (...) Era dos mais democratizadores o caso criado pelo Coronel Comandante do Batalhão de Carros de Combate, sediado em Valença (RJ), que cerceou Barra do Piraí com 800 soldados e exigiu que a Câmara de Vereadores local elegesse os membros da mesa conforme listinha que entregou ao presidente da Assembleia. Dizem que foi a eleição “democrática” mais rápida que já houve.”
“(...) Em Tenente Portela (RS) um policial chamado Neider Madruga, prendeu toda a Câmara de Vereadores porque o candidato da sua curriola não foi eleito na renovação da mesa diretora. Mesmo com o “habeas-corpus” aos vereadores, dado pelo juiz local, o Madruga levou todos em cana para Porto Alegre, preferindo fazer democracia com as próprias mãos.”

" ... Quando se desenhou a perspectiva de uma seca no interior cearense, as autoridades dirigiam uma circular aos prefeitos, solicitando informações sobre a situação local depois da passagem do equinócio. Um prefeito enviou a seguinte resposta, à circular: " Doutor Equinócio ainda não passou por aqui. Se chegar será recebido como amigo, com foguetes, passeata e festas... "

"... O Sr. Joaquim, porém, deve ter mudado de técnica, porque - meses mais tarde - quando agiu da mesma maneira, deixando que a Polícia baixasse o porrete nas professoras primárias do Estado (elas protestavam contra o não pagamento de seus vencimentos que estavam atrasados de vários meses), o Secretário de Segurança mineiro não espalhou mais o boato de que não tinha mandado bater. Disse apenas que seus homens bateram nas professoras "porque elas tentaram me agredir."
Antigamente a escola era risonha e franca, mas houve uma certa evolução e as professoras apanharam. " No meu tempo" - dizia-me o distraído Rosamundo, comentando as lamentáveis ocorrências - " ninguém levantava a mão para a professora. A gente, no máximo, levantava o dedo e, assim mesmo, quando estava apertado pra ir lá dentro..."

E quem não se lembra da família Ponte Preta? Tia Zulmira, a sábia da Boca do Mato, Rosamundo, o distraído Rosamundo, e Primo Altamirando, o canalha:

Primo Altamirando é nosso consanguíneo apenas por parte de pai, como aliás devem ser todos os parentes. Porque consanguíneo por parte de pai e mãe, só mesmo irmãos, pois primos que casam com primos, dá sempre em bronca. Tia Zulmira costuma dizer: Padres Primos e Pombos – os dois primeiros não servem pra casar, os dois últimos só servem para sujar a casa. Como sempre a velha tem razão.
Assim, o nosso abominável parente é primo por parte de pai (Gumercindo Tenório Ponte Preta), mesmo porque, nunca teve mãe. Um dia Gumercindo entrou em casa com um embrulho debaixo do braço, um embrulho de jornal se não nos falha a História, o jornal era o O dia – e disse pra Tia Zulmira:
- Trouxe isto pra você, Mamãe.
Como Gumercindo nunca fora de dar nada a ninguém, todos correram para ver o que era. Desembrulharam o presente – era Mirinho.

Em tempo, Sérgio Porto batizou-se Stanislaw Ponte Preta inspirado pelo personagem Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade.

Sérgio Porto

Sérgio Porto foi um cronista da cidade. Com o nome de batismo publicou “A casa demolida”, onde suas lembranças dão o tom à mudança urbanística no Rio de Janeiro, com suas casas de pomares e varandas dando lugar aos “feios edifícios”. Temos também a boêmia, as relações de amor e amizade e a convivência com personalidades, como Heleno de Freitas, Dolores Duran, o palhaço Benjamim.

A moça e a varanda

Quem dobrasse à esquerda encontraria logo o portão. Abrindo-os, estaria no jardim - modesto jardim, onde outrora houvera uma roseira que morreu de solidão. Do jardim saía a alameda das samambaias que daria acesso à varanda. Em dias de domingo — que os havia plenos de luz e de azul — já a meio caminho, entre as samambaias, um ouvido mais familiarizado conosco, os de lá, poderia distinguir facilmente os risos da gente. Ríamos muito, naquele tempo.

Da varanda, que dizer? Algumas cadeiras de vime, a mesinha que tinha um pé mais curto que os outros e dois jarrões, um em cada canto, cujas plantas (nunca lhe soubemos o nome) davam umas florzinhas amarelas e cheirosas no mês de abril, para contrariar o outono.

A entrada era uma apenas, pela direita, subindo-se a escada de mármore de três degraus. O resto da varanda era rodeado pelo patamar onde havia, no centro, uma jardineira. Depois que o último de nós ficou mais crescido e menos travesso, ali floriram gerânios.

Hoje, quem me vê não diz que eu já morei numa casa onde as cotovias faziam ninhos. Deus não me deixa mentir. No telhado da varanda, durante anos e anos, elas se hospedavam, para alegria nossa e inveja dos outros garotos da redondeza. Quando, pela primeira vez, falou-se em demolir a casa para construir o prédio feio que lá está até hoje, meu primeiro pensamento foi para os ninhos das cotovias.

Vejam só que menino puro o mundo perdeu!

Os grandes dias da varanda eram os já citados domingos, quando toda a família se reunia para alegres almoços. Dessa época restam somente dolorosas fotografias.

Já as grandes noites vieram mais tarde, quando Luizinha apareceu. Chegava - como sempre chegou - assustada com a possibilidade do irmão tê-la seguido. Perfeito o Eduardo (para ela Duá) na sua providencial vagotonia.

Só depois que Luizinha se certificava que ninguém a seguira pela alameda das samambaias (“Foi o vento, Luizinha, que balançou as folhas.”) é que vinha o primeiro chamar de "meu bem", o primeiro beijo, morno beijo que nunca devia ter esfriado.

No dia em que ela não veio, pensei uma porção de vinganças impossíveis e votei-lhe um ódio de morte que durou quase um minuto. Era a decepção que sempre nos deixa o pecado irrealizado, logo apagada pela idéia de que não nos faltará tempo para pecar. De fato, na outra noite — hora de sempre — lá veio ela, fugindo de uma sombra para outra, para enganar o irmão. Nesse encontro nos juramos uma eterna fidelidade amorosa e fomos mais dramáticos em nossas palavras, gestos, atitudes.

Pra quê, Luizinha? Seguisses o juramente e eu te enganaria, não o seguindo, como o fizeste, enganaste-me primeiro, para confessares depois. Choraste então, e eu também chorei sem nenhuma convicção.

Vejam vocês que rapaz fingido o mundo consertou!

Num mês de abril, de 1947, demoliram a varanda. Eu vi. Parado na rua, lá da calçada em frente, esperei que os operários derrubassem o último tijolo da última parede e voltei para o apartamento com a sensação de que, dentro de mim, algo também fora demolido.

Quanto a Luizinha, resistiu mais tempo, deixou-se demolir aos poucos. Foi preciso mais do que um simples dia de abril, foi preciso toda uma mocidade para deixá-la tal como ontem a vi.

Vocês nunca saberão que excelente moça o mundo estragou!

É dele um conjunto de novelas, “As cariocas” que a Rede Globo recentemente levou às telas. Destaque para “A desinibida do Grajaú”, tanto no livro quanto na série televisiva, uma vez que é a boazuda da Grazi Massafera quem interpreta a personagem.

Publicou, também, Pequena História do Jazz.

Muito ainda pode ser dito. Apesar de viver apenas 45 anos, Sérgio teve uma grande produção. Cobriu, como Stanislaw, a Copa de 62, mandando do Chile crônicas impagáveis sobre os jogos do Brasil. Bolou As Certinhas do Lalau, uma variedade de boas mulheres que encantavam seus leitores, polemizou com o colunista social Ibrahim Sued – a quem dizia ser “a ignorância mais bem paga do pais” e deixou “O Transplante”, um romance incompleto.

Eis os homens que até hoje fazem o país rir das suas misérias. Porém, não um riso tonto, imbecil. Mas um riso fruto do humor que foi sua arma para sacudir algumas estruturas arcaicas que ainda estão aí, nos subjugando.

Bibliografia:

Sérgio Porto

Pequena história do jazz, 1953
A Casa Demolida, 1963
As Cariocas, 1967

Stanislaw Ponte Preta

Tia Zulmira e eu, 1961
Primo Altamirando e elas, 1962
Rosamundo e os outros, 1963
Garoto Linha Dura, 1964
Febeapá 1, 1966
Febeapá 2, 1967
Febeapá 3 / Na terra do crioulo doido / A máquina de fazer doido, 1968

Póstumo:

A Revista do Lalau, 2008 - organização de inéditos por Luís Pimentel, incluindo o romance inacabado "O Transplante".
 
Última edição:
Uma crônicazinha de Paulo Mendes de Campos, truta aí, do nosso Stanislaw, na ocasião do seu falecimento:

SÉRGIO E STANISLAW PONTE PRETA

O diabo o é que todo mundo pensa que sou um cínico; ninguém acredita que sou um sentimentalão que não agüenta uma gata pelo rabo.

Sérgio me dizia isso a milhares de metros de altitude, copo de uísque na mão, rumo a Buenos Aires. Ao saber que eu tinha resolvido assistir ao jogo Brasil e Uruguai, no Campeonato Pan-Americano de 1959, veio procurar-me com uma ansiedade incomum: precisava afastar-se do Rio de qualquer jeito, me disse, tinha decisivos assuntos íntimos sobre os quais queria pensar.

Sendo assim, por que ir a Buenos Aires? Não fiz a pergunta por entendê-lo: Sérgio possuía o talento de viver em diversas faixas ao mesmo tempo; Buenos Aires lhe calhava numa instância de decisões pessoais porque o recolhimento do hotel se somava aos benefícios do torneio de futebol, da companhia dos amigos, das anedotas jornalísticas e até mesmo dos restaurantes portenhos.

Já dentro do avião, nessa ou em qualquer outra viagem, desligado de suas duras obrigações, transformava-se: mesmo roído por dentro, a gratuidade do instante era boa demais para não ser aproveitada. Sempre que uma aeromoça lhe perguntava se queria um sanduíche ou um refrigerante, respondia alegremente com uma frase que ouviu de Billy Blanco: "Quero tudo a que eu tenha direito." E era verdade.

Na chegada a Buenos Aires, houve uma dessas súbitas situações cômicas criadas por aquele homem carregado de conflitos: avião estacionado, entrou nele um médico da saúde pública, um homem ruivo e bastante calvo. Pedindo aos passageiros que exibissem o atestado de vacina, o médico estendeu a mão para Sérgio, ao mesmo tempo que dizia em tom cavo e impessoal: "Vacunación, señor." Como se estivesse recebendo um cumprimento de boas-vindas, Stanislaw (aí era ele), muito grave, apertou a mão do médico, falando claro e efusivo: "Vacunación para usted también?" O médico, rubro de indignação, expulsou-nos do avião, sem mais exigir o documento sanitário e, enquanto eu explodia de rir, ele sussurrava-me entre os dentes: "Agüenta a mão, se não a gente acaba em cana."

O dom mais surpreendente de Sérgio era esse trânsito livre entre as manifestações da vida. Ainda no dia de nossa chegada a Buenos Aires, eu o veria em atitudes múltiplas: durante o jogo dramático entre o Brasil e o Uruguai (o três a um da briga), ele deu um empurrão nos peitos dum argentino que insultava os brasileiros, chorou quando Paulo Valentim fez o terceiro gol, riu-se às gargalhadas quando o Garrincha passou indiferente entre uruguaios e entrou no ônibus com um sanduíche enorme na boca e outro na mão; e ainda conversou longamente comigo sobre suas aflições, depois de cear com entusiasmo.

Quando acordei, ele já andava pelo saguão, depois de ler os jornais todos, à cata de histórias do Mendonça Falcão - a máquina já destampada no quarto.

Fiquei seu amigo há mais de vinte anos, quando ele escrevia crônicas de música popular para a revista Sombra. Bonito, forte, elegante, inteligente, alegre, simpático - era um privilegiado sem ostentação. Só lhe faltava o dinheiro, como de resto ao grupo todo: mesmo mal pagos, tínhamos de aceitar as ofertas que a imprensa nos fazia como um favor, bicando aqui e ali, sofrendo na carne os atrasos do caixa, brigando pelo dinheirinho de cada dia. Mas o clima não era de miséria nem de tristeza: bebíamos crepuscularmente nosso uísque escocês no Pardellas da Rua México, dançávamos no Vogue, andávamos de táxi. Já que o dinheiro era pouco, o jeito era gastá-lo no essencial: o apartamento próprio que esperasse.

Eustáquio Duarte, Lúcio Rangel, Luís Jardim, Cássio Fonseca, Jarbas Duarte eram diariamente pontuais no Pardellas; Zé Lins do Rego, Rosário Fusco, Santa Rosa, Jaime Adour da Câmara, Flávio de Aquino, Simeão Leal, Luis Santa Cruz e outros apareciam com freqüência. O jazz negro era o nosso alimento: Sérgio e seu tio Lúcio Rangel ensinaram ao resto da turma o que era puro nesse setor e o que se contaminara.

Por um momento, numa fase financeira mais dura, quase o acompanhei num gesto até certo ponto desesperado: o de escrever programas de rádio. Para ele foi o início duma vida de sucesso profissional e cruel desgaste físico. Na imprensa, no rádio e na televisão do Brasil a ascensão se confunde com a queda. Sucesso nesse terreno não é poder trabalhar menos e ganhar o suficiente: é trabalhar sempre mais. Vitorioso no Brasil é o jornalista que sempre encontra mercado de trabalho; e não preços mais altos. Só chega ao chamado certo nível de vida somando diversas atividades corrosivas.

O humorista começou a surgir no semanário Comício, excelente escola de descontração do estilo jornalístico, dirigido por Rubem Braga, e Joel Silveira, onde escreviam ainda Clarice Lispector, Millôr Fernandes, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Rafael Correia de Oliveira, Carlos Castelo Branco, Edmar Morel, onde também apareceram as primeiras crônicas de Antônio Maria e as primeiras reportagens de Pedro Gomes.

Digo o humorista profissional, porque o da convivência com os amigos vinha do tempo das peladas em Copacabana: Sandro Moreira, João Saldanha, Mauricinho Porto, George Rangel, Máriozinho de Oliveira, Carlos Peixoto e Carlinhos Niemeyer são alguns que se lembram das histórias engraçadas de Sérgio, o Bolão.

Sua vivacidade era tão instantânea que sempre a aceitei com naturalidade. Espantava-me, isto sim, seu discernimento, agudo, preciso, a respeito de tudo: uma canção, um cantor, um vestido, um quadro, uma atmosfera, uma situação complicada. Dizia em cima a palavra exata, a observação certa, o julgamento justo.

O contraditório é que pudesse fazer humorismo uma pessoa que possuía tanto senso das proporções e da verdade escondida. Seu humorismo, bem reparado, não era o usual, pelo contrário, ele fazia humor sem caricaturar o assunto. Bernard Shaw, quando queria fazer graça, dizia a verdade. Ele também fez graça falando verdades, descobrindo verdades, tendo a coragem de ser odiado por dizê-las.

Como todo homem de sensibilidade, precisava de amigos e afeto; mas desprezava os mesquinhos, os medíocres, os debilóides, os cretinos.

Seu gosto era certo. Amava os livros e os discos, milhares de discos, discos que ouvia às vezes enquanto trabalhava, atendendo ao telefone a todo instante, recebendo amigos, contando piadas, e continuando a batucar na máquina, insistindo para que o visitante ficasse, sob a afirmação (verdadeira) de que estava acostumado a escrever no meio da maior confusão.

Eu, que apesar de tarimbado, já começo a ficar afobado no fim deste mal enramado artigo, com a redação querendo saber se já pode mandar buscá-lo, lembro a tranqüilidade de Sérgio no meio do caos, e não entendo o segredo que o dotou ao mesmo tempo de extraordinária capacidade de trabalho e da calma que deve ser a dos monges tibetanos.

De que morreu Sérgio Porto? Do coração e do trabalho.

No fim do ano passado, nas vésperas de Natal, estivemos juntos em Brasília: ele se lamentou o tempo todo no dia da volta, dizendo que ficaria ali, na ociosidade do hotel, por um tempo indeterminado. Foi difícil arrancá-lo da cama ao anoitecer. Este ano viajamos novamente juntos para São Paulo e Belo Horizonte. Foi a mesma coisa. Queria descansar, transfigurando-se no repouso, encarando com horror as atividades que o esperavam no Rio.

Na nossa última noite em Belo Horizonte, ele, Fernando, Rubem, Gérson Sabino e eu jantamos num restaurante muito bonito, que tinha de tudo, menos comida mineira. Sérgio reclamou tristemente durante todo o jantar. Queria arroz, feijão, couve, lingüiça.

Não sei por que essa lembrança me comove e serve para fechar esta página que eu não queria triste. Que a tristeza fique conosco, os amigos que o amavam.

E um trecho do posfácio de Febeapá, pela historiadora Beatriz Cavalcante:

Com estilo bem diverso, os acontecimentos coletados pela Pretapress - a agência de notícias que reunia os casos publicados nos três volumes de Febeapá - compõem um mosaico de episódios, uma coleção de instantâneos do dia-a-dia que flagram personagens de extrações sociais diversas, figuras públicas ou anônimas, obscuros funcionários civis e militares, profissionais liberais e, especialmente, políticos (muitos depufedes) que fizeram por merecer o registro e a triste notoriedade por seus pronunciamentos estapafúrdios, pela demonstração de crassa ignorância, de mesquinharia e, principalmente, pelas atitudes arbitrárias e prepotentes.

Bem diversa das versões oficiais que narravam os acontecimentos do período, esta era, sem dúvida, uma outra história, a começar pela ironia com a qual Stanislaw referia-se à "revolução" de 1964, batizada desde logo como a "redentora". Uma outra história não menos legítima, e nem mesmo menos verdadeira, na qual se combinavam humor, perspicácia e espírito crítico, marcas inconfundíveis do autor.

Vale registrar que, na tradição ocidental, o gênero cômico e o riso que desperta foram estratégias literárias indissociáveis da experiência de liberdade, pois, como fez notar o crítico Bakhtin, o exercício do poder, da violência e do arbítrio jamais utiliza a linguagem do humor. Em contraste, o riso dirigido contra tudo aquilo que inspira medo opera no sentido de criar uma outra realidade, na qual a tirania, a opressão e o autoritarismo não têm lugar

Neste sentido, os fatos narrados no FEBEAPÁ operam numa chave dupla, na qual o nonsense das situações, ao evocar o ridículo de seus protagonistas, desconectava-os dos lugares e códigos que os consagravam, destituindo-os do respeito e da autoridade inerentes aos postos que ocupavam.
 

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