Eu revi esse hoje pela quarta vez (eu acho), subiu 1 ponto.
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Eu não lembro do que eu já falei nesse tópico, e o filme já foi bastante discutido, então eu vou me concentrar numa coisa que eu percebi agora, o fato desse filme ser meio Cristão, mais ainda que o filme do Tarkovsky. Estranho, vindo do Soderbergh, e talvez a obra do Lem tenha também esse subtexto cristão, mas está lá, claramente. Solaris é Deus, não um "homem de barba branca" como coloca Gibarian, mas uma forma superior de inteligência, como coloca Rheya (a visão que o filme obviamente defende), uma fonte de poder tão enorme que faz qualquer tentativa de tentar entendê-la ou desvendá-la inútil. O poema do filme, o (absolutamente fantástico) "And Death Shall Have No Dominion", do Dylan Thomas, tem versos sobre amantes que se perderam, e que levantarão novamente, e que o amor não se perderá; Morte é irrelevante em Solaris, no Paraíso. Não é uma questão de estar vivo ou morto ("Nós não precisamos pensar assim mais", diz Rheya no final), é uma questão de existir. A visão do Paraíso de Soderbergh (e talvez Lem) é algo solipsista, construído a partir da memória de Kelvin, visto do seu jeito (um paraíso pessoal), representado visualmente com um foco superficial nos flashbacks (a memória dele) e representado na realização de Rheya de que ela não é ela, ela é a versão que o Kelvin lembra dela (a memória dele). Mas o fato dela entender isso ("de estar consciente da própria mortalidade", Rheya diz num flashback) não o faz dela humana? O que é ser humano, anyway? Os paralelos entre o flashback e o tempo real ficaram mais claros: é tudo uma questão de Kelvin evitar que o que aconteceu com Rheya se repita (ela se matar); sem falar no sentimento de culpa, pois é culpa dele ter lembrado dela como uma suicída -- uma culpa que é redimida no final ("Todos os seus pecados estão perdoados", Rheya diz, novamente, no final). "O que Solaris quer?"; "Por que você acha que ele quer alguma coisa?"; mais um paralelo com Deus, e outro ainda mais claro: "Solaris (aka Deus) me criou, mas eu não consigo me comunicar com ele. Mas eu imagino que ele me escute", dizendo Rheya, ajoelhada no chão, em posição de oração, olhando pela janela para o planeta. Outra imagem religiosa: Kelvin deitado no chão, tocando na mão do Menino (aka Deus) à sua frente, como aquela imagem de Michelangelo da Capela Sistina ("Genesis", é isso?). Coisas intrigantes, potentes, profundas, mas é tudo bastante óbvio e sublinhado, não dando muito espaço pra interpretações ou variações (meio que tirando a sensação de mistério). Mas... ainda existem alguns "mistérios" (ou seriam incoerências), como: o visitante de Snow, que matou o original logo depois de nascer. Como ele permanece existindo? Ele não depende de Snow? Não é tudo parte da construção da memória do Snow? Será que Solaris realmente constrói pessoas a partir de memórias, e não são só imaginárias? Faz sentido, se todos podem ver os clones dos outros. Mas isso não é mais motivo ainda pra acreditar que eles são reais? Será que Solaris representa um Deus infantil (aka O Menino), que cria e brinca de criar? Uma criança sozinha no Universo, dando o que as pessoas querem, para que fiquem com ele? Estranho... Além de tudo isso, Soderbergh dirige, monta e fotografa esse filme como se ele fosse um Deus, pois eu poderia assistir o filme para sempre; é puro prazer visual e sonoro (com uma trilha maravilhosa do Cliff Martinez), lindo de se olhar, ocasionalmente transcendental -- como no flashback da primeira cena de amor entre o casal.
PS: Quando eu crescer, eu quero dirigir igual o Soderbergh.