POESIA BRASILEIRA HOJE
Paulo Henriques Britto
24 de novembro de 2013
PARA QUEM VIVEU a maior parte da vida num período de exceção, a volta da normalidade pode causar estranheza. Nas últimas décadas, diversos poetas novos e promissores têm surgido na cena literária brasileira, cada um investindo na sua própria abordagem pessoal, publicando de início em revistas literárias (ou blogues), lançando depois plaquetas e por fim livros de verdade; alguns desses poetas ganham prêmios e bolsas, lecionam em oficinas de escrita criativa e autografam seus livros em lançamentos. Eles tendem a acreditar que, enquanto poetas, sua meta principal não é reinventar a linguagem da poesia nem determinar o curso da evolução do discurso poético pelos próximos cem anos, nem tampouco contribuir para a derrubada do capitalismo e do imperialismo, e sim simplesmente escrever poemas bons. Esses poetas querem ser lidos e discutidos pelo público leitor (o qual, no caso da poesia, consiste basicamente em críticos, professores universitários e outros poetas). E a alguns deles escrevem — além do verso livre que se tornou a língua franca da poesia contemporânea — poemas em metros tradicionais, inclusive sonetos. Tudo como devia ser, certo?
Não para um certo número de críticos e professores universitários que formaram seu gosto e forjaram seu instrumental ideológico nos anos sessenta. Para eles, esses poetas mais jovens são todos uns vendidos; para eles, o dever de todo poeta brasileiro digno do nome é encontrar uma linguagem poética que exprima as contradições do capitalismo no terceiro mundo, ou dê continuidade às conquistas deste ou daquele movimento vanguardista de cinquenta ou sessenta anos atrás — ou, talvez, uma combinação das duas coisas. Assim, há um fosso cada vez mais largo separando a poesia produzida nas últimas décadas de um setor importante do discurso acadêmico sobre poesia.
De certo modo, a maior parte da história da literatura brasileira decorreu em períodos de exceção. Desde seus primórdios, os escritores, tal como os críticos, de modo geral acreditavam que o fim verdadeiro da literatura não era a própria literatura, e sim a construção e afirmação de uma identidade brasileira. Esta sensação de urgência, de se estar vivendo em tempos de crise que exigem uma atitude construtiva por parte dos escritores, já pode ser vislumbrada na poesia do período colonial, mas ela se torna mais evidente a partir de 1822, com o advento da independência e, pouco depois, do romantismo. Os artistas e intelectuais brasileiros julgavam ter a obrigação moral de afirmar a existência de uma nação brasileira que fosse mais do que um rebento de Portugal; mas para afirmar tal nação era necessário criá-la antes. A qualidade da arte produzida no país sempre foi julgada em termos da sua possível contribuição para o projeto sempre inacabado de construir o Brasil. Desse modo, os povos nativos do Brasil foram elevados à posição de símbolos de brasilidade, aquela intangível qualidade que nos tornaria diferentes de Portugal e da América Hispânica. O indianismo, tal como praticado por poetas como Gonçalves Dias e romancistas como José de Alencar, apresentava índios que se comportavam com uma bravura natural e observavam protocolos exigentes de cavalheirismo, verdadeiros cavaleiros-andantes que por algum motivo haviam nascido do lado errado do Atlântico. Pouco importava que essa visão idealizada do índio tivesse suas raízes em Chateaubriand: todas as modas intelectuais brasileiras eram importadas da França. No último quartel do século XIX, realismo, simbolismo, parnasianismo e naturalismo tinham cada um seus seguidores, e eram frequentes as desavenças literárias (principalmente entre o establishment parnasiano e o underground simbolista). Nessa atmosfera afrancesada, porém, alguns escritores criaram obras de mérito genuíno que eram também inconfundivelmente brasileiras, como a poesia de Cruz e Sousa, de longe nosso melhor simbolista, e a ficção do maior escritor de nosso cânone, Machado de Assis. (Aliás, Gonçalves Dias e Machado de Assis eram mestiços, e Cruz e Souza era afrodescendente sem misturas. Ao contrário do que repete o discurso oficial, o Brasil é e sempre foi um país racista, mas nosso cânone literário nunca o foi.)
Mesmo dentro desse contexto maior, o meio século compreendido entre a década de 1920 e o final dos anos sessenta foi, para a poesia brasileira tanto quanto para o país, um período de exceção particularmente excepcional. Embora a geração anterior já desse sinais de uma modernidade incipiente, tudo começou — segundo a história ensinada às crianças nas escolas de todo o país — com a mítica Semana de Arte Moderna de 1922. O evento foi realizado não no Rio, então a capital, e sim em São Paulo, onde estava (e ainda está) concentrado o dinheiro: com o apoio de mecenas ricos, um punhado de poetas, ficcionistas, pintores, escultores e músicos apresentou ao público uma seleção de obras novas e revolucionárias. Ainda que alguns dos participantes fossem cariocas — como o compositor Villa-Lobos e o pintor Di Cavalcanti — em sua maioria eles eram paulistas, dois dos quais viriam a tornar-se os intelectuais mais influentes do modernismo brasileiro: Mário de Andrade e Oswald de Andrade. A Semana assinalou o início de um período de meio século caracterizado por muitos “ismos”, movimentos e defecções e contra-movimentos. Durante esse período revolucionário, os prêmios literários e o reconhecimento oficial eram rejeitados por muitos; resenhas demolidoras assinadas por críticos conservadores eram motivo de orgulho, como cicatrizes de batalhas; e uma parte desproporcional da melhor poesia já escrita no Brasil foi produzida. A maioria de nossos poetas canônicos — Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Vinicius de Moraes, João Cabral de Melo Neto, Augusto de Campos e Ferreira Gullar — para citar apenas os melhores e/ou mais influentes — escreveram e publicaram seus poemas mais duradouros entre o lançamento de Pauliceia desvairada de Mário de Andrade, em 1922 (um livro que não representa o melhor de Mário, mas que deu a largada inicial), e o das Poesias completas (1940-1965) de João Cabral de Melo Neto, em 1968. O clima emocional de boa parte da grande poesia do período era francamente rebelde. Ser poeta, para muitos, implicava ser contra uma série de coisas. Acima de tudo, os modernistas eram contra a poesia convencional do final do século XIX e início do XX, marcada pela sintaxe tortuosa, o vocabulário recherché, a retórica bombástica; mas eram também contra a situação sociopolítica das primeiras décadas do período republicano, a miséria revoltante em que vivia a maioria esmagadora da população, a venalidade dos políticos, a insensibilidade da classe dominante (infelizmente, algumas coisas não mudaram muito de lá para cá). De algum modo, parecia haver uma ligação íntima entre a superfície polida dos alexandrinos rigidamente metrificados dos sonetos compostos pelos parnasianos que dominavam o establishment literário e a indiferença fria da elite em relação aos horrores da situação social. Nesse contexto, o verso livre lançado por Mário na Pauliceia era mais do que uma simples inovação formal: a rejeição do metro e da rima parecia um ato de virtude republicana, um compromisso com o Brasil real, do qual a cidade de São Paulo era uma metonímia viva e vibrante. O verso inicial de “Inspiração”, poema de abertura de Paulicea desvairada — “São Paulo! comoção de minha vida...” — é repetido no final da peça:
São Paulo! comoção de minha vida...
Galicismo a berrar nos desertos da América.
Assim foi que surgiram a Antropofagia, o Pau-Brasil e tantos outros movimentos dos anos vinte e trinta, cada um propondo uma visão específica do projeto de construção de nação visto como a verdadeira razão de ser da literatura. Houve um período de calmaria em meados do século, que incluiu uma reação contra o modernismo — a chamada “geração de 45”, que pregava a volta a uma dicção elevada e ao sublime — seguido por uma onda antiantimodernista, as chamadas neovanguardas dos anos cinquenta e sessenta, das quais a mais importante foi o concretismo, lançado (mais uma vez, em São Paulo) pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari. Os poetas concretistas não se limitaram a abolir o metro e a rima: eles decretaram sumariamente a morte do verso como unidade do discurso poético; doravante a poesia seria mais que tudo uma forma de arte visual, retomando os avanços de Mallarmé e Ezra Pound — heróis do movimento, vistos como concretistas avant la lettre.
Partindo do princípio de que a forma é determinada pela função, a os concretistas queriam nada menos do que escrever hoje a poesia do futuro. Foram atacados com ferocidade por inimigos diversos — entre eles, os defensores da poesia tradicional, pré-modernista, é claro, mas também mais de uma tribo rival de vanguardistas, para quem a poesia tinha de ser revolucionária tanto na forma quanto no conteúdo ideológico. A poesia-práxis de Mário Chamie dava uma inflexão marxista às estratégias concretistas, e vociferava muito mais contra os concretos do que contra o inimigo capitalista, em conformidade com a tradição marxista. O que concretistas e praxistas — bem como João Cabral, que não pertencia a escola alguma — tinham em comum era uma poética severa, quase puritana, que via o subjetivismo como o pecado sem perdão: a verdadeira poesia deveria ser objetiva, fria, cerebral, voltada para objetivos claros.
¤
Se tivéssemos que escolher um ano para assinalar o final desse período de exceção que durou meio século, a melhor opção talvez fosse 1968. E não apenas por ser o ano em que Cabral lançou pela primeira vez sua obra reunida: foi esse também o ano das rebeliões estudantis em todo o mundo, vistas por Octavio Paz como anunciadoras de uma nova era na história do Ocidente, o fim do tempo das utopias.
No Brasil, 1968 foi, além disso, o ano do AI-5, o “golpe dentro do golpe” que transformou uma ditadura militar até então relativamente moderada num regime brutal, que assumia como práticas rotineiras o sequestro, o exílio, a prisão arbitrária, a tortura e o assassinato. Por fim, foi também o ano da tropicália, que pode ser vista tanto como o último dos grandes movimentos modernistas quanto como o arauto da nova era pós-ismos, ou talvez as duas coisas. E o fato de que na tropicália quem ocupava a posição central era a música popular e não a poesia, as artes plásticas, o cinema nem o teatro — embora todas essas manifestações artísticas estivessem envolvidas — sem dúvida era uma de suas características mais relevantes. Os líderes do movimento, Caetano Veloso e Gilberto Gil, eram cancionistas e cantores; o nome “Tropicália” foi colhido numa instalação do artista Hélio Oiticica, que havia causado forte impressão em Caetano. Outra experiência estética formativa para ele fora a montagem de O rei da vela, peça escrita por Oswald de Andrade décadas antes, levada à cena pela primeira vez nos anos sessenta pelo Grupo Oficina, uma companhia experimental liderada por José Celso Martinez Corrêa. Foi também crucial o impacto sobre o movimento do rock inovador inaugurado pelos Beatles, bem como as letras das canções de Bob Dylan; os músicos populares “sérios” até então tendiam a ver o rock como lixo comercial, na melhor das hipóteses, e como uma estratégia ianque para “alienar” a juventude brasileira, na pior delas. Com essa abundância de influências, a tropicália, ao contrário de todos os movimentos anteriores, caracterizava-se não por aquilo a que se opunha, e sim por sua inclusividade. Para os artistas do movimento, a arte brasileira não deveria temer as contradições, e sim abraçá-las, para engrandecer-se: a racionalidade de Cabral e dos concretos e o sentimentalismo da poesia pré-modernista; a oposição politicamente consciente ao regime militar e a celebração ingênua do esplendor tropical do Brasil; a sensibilidade cool de João Gilberto e o camp de Carmen Miranda; o hedonismo relax do Rio e o industrialismo frenético de São Paulo; a música folclórica do Nordeste e o pop sofisticado de Sergeant Pepper e Blonde on Blonde; e — talvez o mais importante para a poesia — a elaboração formal e o subjetivismo desavergonhado. Em “Tropicália”, uma das canções-manifestos de Caetano, o Brasil é ao mesmo tempo a Brasília modernista e as favelas onde grassava a mortalidade infantil:
O monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga
Estreita e torta
E no joelho uma criança
Sorridente, feia e morta
Estende a mão
Todo esse animado cenário cultural foi destruído pelo AI-5. Um grande número de lideranças políticas acabou na prisão; pessoas foram torturadas e mortas; muitas foram para o exílio, como o poeta Ferreira Gullar, concretista que se tornou neoconcretista e em seguida rompeu com toda a vanguarda para escrever poesia agitprop; os tropicalistas Caetano e Gil, líderes do movimento; e Chico Buarque de Holanda, o principal criador de canções políticas da época, para citar apenas alguns. E assim teve início a pior fase da ditadura, os “anos de chumbo”, como foram rotulados posteriormente, um período de exceção dentro do período de exceção.
¤
Alguns anos depois do AI-5, no Rio de Janeiro, começaram a aparecer poetas jovens que distribuíam ou vendiam seus escritos em cópias mimeografadas, nos barzinhos da moda ou nas filas das cinematecas, teatros e shows; alguns deles faziam parte de grupos, revistas ou coletivos de artistas, enquanto outros eram independentes. O fenômeno logo se espalhou para outras cidades. Quando, em 1976, a crítica Heloísa Buarque de Hollanda organizou uma antologia de poemas produzidos por esses autores, a que deu o nome de 26 poetas hoje, eles passaram a ser vistos como integrantes de um movimento, a chamada “poesia marginal” ou “geração mimeógrafo”, mas na verdade formavam um grupo bastante heterogêneo: alguns, como Chacal e Charles Peixoto, faziam o gênero bicho-grilo; outros, como Ana Cristina Cesar e Cacaso, eram sofisticados estudantes de letras; havia entre eles poetas que também escreviam letras de canções, como Torquato Neto e Capinan (ambos egressos da tropicália); e dois deles — Chico Alvim e Zuca Sardhan — eram diplomatas de carreira. O que mais os unia era o fato de que a poesia por eles escrita fazia oposição direta aos dogmas do concretismo e dos outros movimentos formalistas: era bem humorada, coloquial, despretensiosa; falava de paixões amorosas, festas, medo da polícia, a dor e a delícia de ser jovem durante um período de ditadura militar. Em seus momentos mais leves, havia nela um elemento contracultural que lembrava o movimento hippie norte-americano, mas o clima político opressivo também deixava nela marcas profundas. Além disso, os marginais, ao contrário dos concretistas e praxistas, não queriam criar a poesia do futuro: estavam ligados no aqui e agora. Seu tema era a sobrevivência durante os “anos de chumbo”, a transformação da vivência privada num pequeno mundo que de algum modo permanecesse imune, ainda que apenas por um triz, da violência e repressão que o cercava. Escrevia Francisco Alvim:
Minha namorada cocainômana
me procura nas madrugadas
para dizer que me ama
Fico olhando as olheiras dela
(tão escuras quanto a noite lá fora)
Havia outra característica comum aos membros da geração mimeógrafo que os punha em nítida oposição aos poetas das duas décadas anteriores: eles não acreditavam na existência de uma fórmula única e excludente para a poesia. Sob esse aspecto, os novos poetas comungavam da visão pluralista do Brasil proposta pelos tropicalistas; e, de modo geral, esta é a atitude que vem prevalecendo desde então. De lá para cá, os poetas vêm experimentando uma ampla gama de recursos poéticos, nenhum dos quais é tabu, nenhum dos quais é obrigatório. Ainda que a maioria dos poetas jovens tenda a preferir o tipo de verso livre picado, marcado por fortes enjambements, que teve William Carlos Williams como pioneiro na poesia de língua inglesa, não há mais o sentimento de que o verso livre é de rigueur, de que as formas métricas e estróficas tradicionais (com frequência usadas de modos criativos e inovadores) implicam necessariamente uma postura reacionária de rejeição da modernidade. É o que ficou claro quando, no final dos anos oitenta, Augusto Massi, um jovem poeta e editor paulistano, lançou a coleção Claro Enigma: treze volumes, cada um assinado por um poeta contemporâneo. (Informação relevante: o autor destas linhas foi um deles.) Alguns desses poetas estavam em atividade desde os anos sessenta, a era cada vez mais remota da neovanguarda, e um era membro da geração marginal; outros haviam começado a publicar apenas no início dos anos oitenta. A diversidade visível na coleção era muito maior do que a encontrada na antologia 26 poetas hoje: os poemas concisos e epigramáticos do livro de José Paulo Paes, que lembravam os poemas-piada de Oswald de Andrade dos anos vinte, eram totalmente diversos das peças líricas solenes e nobres de Orides Fontela; e os versos quebrados de Age de Carvalho nada tinham em comum com os poemas de Maria Lúcia Alvim, em sua maioria metrificados e rimados. Se Sebastião Uchoa Leite era claramente tributário dos concretistas, também estava claro que Francisco Alvim não lhes devia coisa alguma. E em alguns dos livros da coleção, como o de Rubens Rodrigues Torres Filho, dicção elevada e sermo humilis, verso livre e soneto, meditação filosófica e humor escatológico apareciam lado a lado. Para se ter uma ideia dessa diversidade, vejamos dois exemplos breves. Eis o primeiro, de José Paulo Paes:
ODE AOS DILUIDORES
invenção
co-invenção
convenção
Contraste-se esse poema com a primeira estrofe de um soneto de Maria Lúcia Alvim:
Que este resto de vida por viver
Seja à prova de sonhos e porfia —
O corpo é uma forma de prazer
E a alma tem a tez crispada e fria.
Realmente, havia algo de muito novo no cenário poético brasileiro. Esse estado de coisas preocupava aqueles que viam a poesia em termos de categorias como progresso, modernidade e evolução das formas, e também os que acreditavam que a tarefa central do poeta brasileiro era criticar o capitalismo e seus males. Alguns dos poetas ligados ao concretismo simplesmente ignoraram a nova poesia, alfinetando-a com o xingamento mais pesado de seu vocabulário: “ecletismo”. Para pessoas como Décio Pignatari, havia apenas um único caminho rumo à poesia do futuro, e todo aquele que dele se desviasse não deveria ser levado a sério; além disso, já não estava mais do que demonstrado, desde os manifestos concretistas dos anos cinquenta, que o verso estava morto e enterrado? (O plano-piloto do movimento dava “por encerrado o ciclo histórico do verso”.) Por outro lado, os críticos que viam a arte principal ou exclusivamente por um ângulo sociopolítico passaram a atacar a nova poesia em artigos longos e veementes. Iumna Maria Simon e Vinicius Dantas têm sido os críticos mais agressivos de quase toda a poesia produzida no Brasil nas últimas décadas. Sua visão da poesia marginal é bem simples: de um país como o Brasil, que não conseguiu criar uma nova sociedade e aderiu do modo mais submisso ao sistema imperialista e capitalista global, não se podia mesmo esperar nada melhor do que aqueles balbucios de poetastros semianalfabetos que jorravam dos mimeógrafos no Rio; o título de um famoso (ou infame) artigo assinado pelos dois em 1985 diz tudo: “Poesia ruim, sociedade pior”. Um ano depois, Dantas criticou um punhado de poetas — alguns dos quais poucos anos depois seriam incluídos na Claro Enigma — por escreverem com o intento de ganhar prêmios literários. Mais recentemente, em 2011, Iumna Simon concluiu um artigo com um tom esperançoso:
Atualmente há sinais de que o complexo cultural do neoliberalismo foi abalado em sua hegemonia, que o pensamento único perdeu a autoridade de nos condenar a um modelo inapelável de sociedade, embora não despontem alternativas relevantes ao capitalismo, mesmo após uma crise sistêmica de proporções ainda não reveladas de todo, como a que atravessamos desde 2008. Falando da experiência brasileira, é verdade que raras são até agora as reações propriamente artísticas, no campo da poesia, a esta conjuntura. Mas elas existem e estarão fundadas na insatisfação com o paradigma retradicionalizador, o qual, como vimos, não passa de um parasitismo do cânone.
Em outras palavras, o fracasso de neoliberalismo internacional (infraestrutura) virá a ter um impacto positivo sobre a poesia (parte da superestrutura), “embora não despontem alternativas relevantes ao capitalismo”. (E pensar que Elizabeth Bishop afirmou que o brasileiro era incapaz de entender o conceito de understatement!) O que, porém, mais chama a atenção nos ataques dos dois críticos não é o previsível mecanicismo de seus argumentos marxistas, e sim o tom que empregam: vitriólico, transbordando repulsa e indignação moral. Se o leitor acha que “parasitismo” não é tão forte assim, em outro texto Simon refere-se aos críticos e estudiosos da poesia que aprovam os poetas contemporâneos como “gangues ou lobbies que infestam a universidade e a mídia.” Parasitismo, infestações: temos aqui o tipo de vitupério que normalmente se reserva não a maus escritores, e sim a inimigos ideológicos, ou — pior ainda — traidores de uma causa sagrada. Pelo visto, enquanto o Brasil permanecer na malévola órbita da ordem global capitalista, os poetas brasileiros serão necessariamente maus, em todos os sentidos concebíveis da palavra “mau”, a menos que forjem um idioma que constitua uma rejeição explícita do status quo.
Nem toda a crítica, porém, tem sido hostil. E aqui o nome mais inesperado é o de Haroldo de Campos, um dos fundadores do concretismo; já em 1984 ele publicou um artigo importante em que reconhecia que os tempos haviam mudado. Citando Octavio Paz, ele reconhecia que o modernismo dos anos cinquenta e sessenta não era mais uma força motriz: “Sem perspectiva utópica, o movimento de vanguarda perde o seu sentido.” Naturalmente, os críticos mais jovens, como Celia Pedrosa e Marcos Siscar, estão ainda mais afinados com o novo Zeitgeist, mesmo não aprovando tudo o que leem. Um deles, o poeta e professor de literatura Italo Moriconi, afirmou em 1997 detectar em alguns dos poemas recentes uma “volta ao sublime”; porém, ainda que ele próprio preferisse a tradição modernista de dicção coloquial e realidade cotidiana, não havia como negar o mérito de um Carlito Azevedo, mesmo com todo seu suposto esteticismo fin de siècle. No mesmo artigo, Moriconi cunhava uma expressão perfeita para caracterizar o novo período da poesia brasileira: “normalização pós-vanguardista dos circuitos” — ou seja, dos contextos acadêmicos, econômicos e sociais em que circulam as obras literárias. Em outras palavras, a situação atual da poesia brasileira, por mais que escandalize sensibilidades pretéritas, é na verdade nada menos que o estado de coisas normal; as cinco décadas revolucionárias entre modernismo e tropicália, que todos já haviam naturalizado, é que tinham sido um período de exceção, um tempo que havia terminado, para não voltar nunca mais.
A essa análise de Moriconi eu acrescentaria uma observação: o fim da era da vanguarda está intimamente ligado à percepção mais ou menos geral de que a tarefa de construir a cultura brasileira por fim foi concluída. Claro está que toda cultura é sempre uma entidade em transformação e não um construto estático; nesse sentido, a cultura brasileira é e será sempre um processo em andamento. O que estou afirmando é que chega um momento na história de uma nação em que artistas e intelectuais já não sentem a necessidade de afirmar constantemente que sua nação é uma nação de fato, com uma cultura própria. Para países muito antigos, como Portugal ou Grã-Bretanha, esse tipo de preocupação não ocorre a ninguém (já os alemães viveram uma insegurança semelhante durante boa parte do século XIX); no Novo Mundo, porém, o problema é sério — até mesmo nos EUA, durante parte do período romântico: pensemos nas afirmações de americanismo de Whitman e Emerson.
No caso do Brasil, pode-se afirmar agora que a tropicália foi o momento em que uma parte significativa da nossa intelligentsia finalmente se deu conta de que a cultura brasileira estava madura. Não era mais necessário atacar o rock para proteger a “pureza” da nossa música, que estaria sendo ameaçada pela indústria de entretenimento norte-americana em conluio com a CIA. Os brasileiros agora deveriam sentir-se seguros de si o bastante para reconhecer tranquilamente que nunca houve nada de puro na nossa música, nem na nossa cultura, para começo de conversa — mais ainda, que nossa força provém justamente da mistura de correntes diversas: folclore indígena, língua e literatura portuguesas, música e sensibilidade africanas, modas intelectuais francesas, a múltipla contribuição dos imigrantes italianos, alemães, árabes e judeus; mas nesse caso, por que não incluir nessa lista a cultura popular estadunidense? Quando digo a meus alunos de literatura na universidade que nos anos sessenta havia uma visão generalizada de que era preciso proteger a cultura brasileira do rock anglo-americano e do cinema de Hollywood, percebo que para eles tal ideia chega a ser um tanto insólita. Para os jovens de agora, pode-se ser brasileiro e gostar de rock americano ou cinema francês ou lá o que seja sem o menor sentimento de culpa; ser brasileiro agora tornou-se algo tão pouco problemático, tão normal, quanto ser francês ou espanhol. E o fato de que não conseguimos romper com o capitalismo internacional, qualquer que seja nossa posição em relação a isso, também faz parte dessa normalidade; pois sob esse aspecto estamos no mesmo barco que praticamente todos os países do mundo.
¤
Da virada do século até hoje, a normalidade tem prevalecido, de modo geral. Os poetas mais jovens leem e traduzem poesia com sofreguidão, emulando este ou aquele contemporâneo mais velho ou precursor canonizado; os poetas de prestígio reconhecido publicam em editoras reconhecidas, disputando prêmios literários e até mesmo — horribile dictu! — um lugar na Academia Brasileira de Letras, o que seria impensável para muitos escritores de respeito há não muito tempo atrás, quando a veneranda instituição, fundada por ninguém menos que Machado de Assis, era vista como símbolo de tudo que havia de errado na literatura brasileira. No novo clima de normalidade, os poetas já não integram seitas literárias que se excomungam mutuamente. A agressiva rivalidade entre concretistas, neoconcretistas, praxistas e defensores da poesia participante só volta à tona hoje em dia quando representantes desses movimentos, agora na faixa dos setenta e muito ou oitenta anos, são entrevistados por suplementos literários. Os poetas mais jovens sentem-se livres para lançar mão dos repertórios técnicos deste ou daquele movimento histórico: elementos da prática concretista abundam em toda a obra de Ricardo Aleixo, são claramente visíveis no primeiro livro de Carlito Azevedo e sutilmente presentes em uma fase de outra poeta importante que estreou nos anos noventa, Claudia Roquette-Pinto; mas ninguém rotularia nenhum desses poetas de concretista. Podemos classificar tranquilamente Alexei Bueno como um tradicionalista em dicção, opções formais e visão de mundo; mas o que dizer de um Érico Nogueira, que traduz Teócrito e escreve poesia original experimentando com metros quantitativos e usando um idioma bem coloquial, que não exclui os palavrões?
As categorias dos estudos culturais tampouco funcionam muito bem: pode-se falar em “poesia afro-brasileira” em relação a Salgado Maranhão, Waldo Motta, Ricardo Aleixo e Edimilson de Almeida Pereira, mas o fato é que a única coisa que os quatro têm em comum é a tematização da condição de negro em alguns de seus poemas. Do mesmo modo, a categoria “poesia gay” parece muito pouco apropriada para colocar lado a lado o decoro clássico e a serenidade filosófica das peças líricas finamente elaboradas de Antonio Cicero, a grossura bem-humorada e escancarada dos sonetos impecavelmente decassilábicos de Glauco Mattoso e o humor delicado e autodepreciativo do verso livre de Ismar Tirelli Neto.
Sem dúvida, é sempre difícil entender uma situação quando se está no meio dela. Daqui a vinte ou trinta anos, muita coisa que deixa perplexos os observadores do cenário poético atual naturalmente vai se constelar em tendências nítidas e padrões evidentes. É bem possível que os poetas de hoje que virão a ser canonizados pelas gerações futuras não sejam os que agora são considerados os melhores. Tudo isso é verdade. O fato, porém, é que trinta anos depois da Semana de 1922 já havia uma certa visão geralmente aceita, ainda que não um consenso propriamente dito, a respeito do significado do modernismo e da importância relativa de poetas e obras individuais; já a antologia de Heloísa completou trinta anos em 2006, e até agora não há quase nada que seja ponto pacífico entre críticos e acadêmicos no que diz respeito à importância e ao significado da geração marginal — e menos ainda da poesia que vem sendo produzida de lá para cá. Talvez isso seja consequência de estarmos vivendo tempos “normais”, findo o período de exceção: rotular poetas de modo mais ou menos mecânico em termos de seu posicionamento quanto a questões formais e ideológicas não é mais visto como uma forma relevante de crítica literária. A proliferação de vozes e poéticas distintas desde os anos setenta exige uma atitude mais sofisticada e analítica; mais do que nunca, hoje o crítico precisa estudar poetas individuais e ler poemas individuais pelo que são, e não como representantes deste ou daquele “movimento”. O crítico que acha possível desqualificar um poeta ou toda uma geração tachando-os de meros epifenômenos do “neoliberalismo” está simplesmente vivendo no passado. Argumentar com essas pessoas é provavelmente perda de tempo; tudo que se pode dizer a elas é: estamos do século XXI, gostando ou não gostando. Quanto a mim, eu gosto.
https://lareviewofbooks.org/essay/brazilian-poetry-today-2/