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Sobre a Poesia Contemporânea

Li um texto lá no Todoprosa que, falando sobre Drummond, fala da literatura contemporânea de modo geral. Que bacana!:

E AGORA, JOSÉ?

O poeta morreu no dia 17 de agosto de 1987. Do ponto de vista de um novo século, é tentador afirmar que a própria poesia – como a literatura em geral – não demoraria a seguir seus passos. Essa afirmativa, por conter um exagero, requer explicação. Uma reportagem de capa como a que VEJA fez quando da morte de Carlos Drummond de Andrade (foto) dificilmente será reeditada com um de seus colegas de ofício quando lhe chegar a “indesejada das gentes” (para usar a expressão de outro monumento poético brasileiro, Manuel Bandeira). Ou mesmo, para citar um gênero mais próximo do gosto popular, com um de nossos romancistas.

Poemas e romances ainda são escritos, claro, em quantidade inédita e, em certos casos, com boa qualidade. Contudo, já não ocupam na cultura a posição central e ressoante que permitiu a Drummond entranhar imagens e bordões na linguagem comum de todo um povo: “Tinha uma pedra no meio do caminho”, “E agora, José?”, “Seria uma rima, não seria uma solução”. Ou elaborar, numa voz ambiciosa e menos acessível ao grande público, mas não menos impressionante, um poema filosófico como “A máquina do mundo”, do livro Claro enigma, de 1951. Nesse candidato ao pódio poético da língua portuguesa em qualquer época, o poeta caminha por uma estrada de Minas quando vê se abrir à sua frente “essa total explicação da vida,/ esse nexo primeiro e singular/ que nem concebes mais, pois tão esquivo/ se revelou ante a pesquisa ardente/ em que te consumiste…”. Todos esses exemplos são citados no necrológio de VEJA.

Procurar no século XXI o “novo Drummond” seria como esperar pelo “novo Pelé”: um despautério. Se a constatação é indiscutível, críticas simplistas que a atribuem à suposta decadência da cultura (e do futebol) no país deixam de levar em conta o fato de que, em cada época, a máquina do mundo fabrica não apenas seus produtos, mas também a balança com que se deve avaliá-los. Na cultura globalizada, informatizada, pós-industrial, o peso da literatura diminuiu tanto que apregoar sua morte tem sido um dos estratagemas preferidos de críticos acadêmicos e midiáticos em busca de uma aura radical e provocadora que, pela repetição, acaba provocando apenas bocejos. O fenômeno não se restringe ao Brasil. Se não temos mais um escritor do tamanho de Carlos Drummond de Andrade ou Guimarães Rosa, também não surgiu na literatura francesa um novo Albert Camus, nem na Argentina um Jorge Luis Borges internético ou nos EUA um William Faulkner redivivo.

Em 2010, a revista semanal americana Time estampou na capa uma foto do escritor Jonathan Franzen, que então lançava o romance Liberdade, com o seguinte título: “Grande romancista americano”. Pela primeira vez em dez anos, para pasmo geral, um profissional das letras ia parar na cobiçada vitrine da revista. Franzen tinha então 50 anos, a mesma idade de John Updike em 1982, ao chegar à capa da mesmíssima Time. Não era por falta de experiência ou talento que sua presença ali provocava um estranhamento que a de Updike não provocara. É que, naquelas três décadas, a máquina do mundo tinha alterado as especificações da balança.

Uma das melhores reflexões sobre esse rebaixamento cultural da literatura é do crítico e escritor italiano Claudio Magris. “Desde seu nascimento – ou seja, desde o romantismo ou já no final do século XVIII –, a literatura contemporânea é marcada pelo sentimento de uma ferida profunda que a história parece ter infligido ao indivíduo, impedindo-o de realizar plenamente a própria personalidade em acordo com a evolução social e fazendo-o sentir a impossibilidade e a ausência da vida verdadeira, o exílio dos deuses e a fragmentação de sua própria existência”, escreve Magris, parecendo falar do próprio Drummond. E conclui: “Agora tudo isso parece findo; um karaokê em diversos níveis suplantou toda utopia e toda revolução e, como previra Nietzsche, o próprio homem está mudando radicalmente”. O pior é que o maior poeta brasileiro já não pode traduzir para nós todo esse burburinho.

http://veja.abril.com.br/blog/todoprosa/vida-literaria/e-agora-jose/

Essa citação do Magris é muito boa... Gostei também do peso que ele deu à divulgação em contrapartida da construção de um grande nome. Isto é: não temos um novo Guimarães Rosa pois não se interessam midiaticamente em construir um nome assim. (Se bem que a demão que estão dando no Leminski prove algo contrário...)

E talvez nesse sentido o teor geral seja o de construírem em blocos, mais ou menos no estilo Granta. Claro que, com o tempo, e como o século XX bem mostrou, esses blocos vão se desfazendo e alguns artistas vão evoluindo inegavelmente mais em suas obras. E aí aquela coisa dos escritores tenderem a se reunir não por afinidades estéticas ou estruturais íntimas, mas por uma questão de sobrevivência ou de propulsão, não sei...

Sábado não é um bom dia pra pensar nisso.

Mas, aproveitando que falamos de poesia lá fora, e aproveitando que falei da americana, na revista modo de usar tem alguns nomes publicados e traduzidos:

http://revistamododeusar.blogspot.de/search/label/poesia contemporânea americana
 
Andei lendo tanta coisa de uns tempos pra cá sobre poesia de modo geral que estou em crise. Muito do que eu disse nas páginas passadas mudou... Basicamente, três coisas: 1) aquela discussão do isso-é-arte?; 2) letra de música é poesia?; 3) poesia existe fora da literatura?

(Mas muita coisa também só se afirmou, como o afastar a balela de que a poesia está em crise etc etc)

Acabei também que não pude pegar tudo o que li e fui descobrindo de novo. Vou só mesmo destacar um texto do Paulo Scott que li hoje, sobre poesia australiana contemporânea:

(...)

Em quarto — e talvez aqui esteja a grande proximidade com a poesia contemporânea brasileira —, as abordagens que partem da noção de estar a sociedade australiana, com todo seu sucesso econômico, na periferia de um mundo que se edificou a partir dos interesses de determinadas sociedades ditas centrais dominantes, um mundo cujas certezas e hierarquias foram tremendamente abaladas e ameaçadas nos últimos anos, mas que permanecem.

(...)

http://www.blogdacompanhia.com.br/2013/11/poesia-australiana-primeira-parte/
 
E aí, letra de música é poesia? rsrs

rsrs

Minha resposta pra isso continua sendo a de páginas atrás: não precisa ser. Mas como li algumas coisas que seguem na esteira das descobertas do Roman Jakobson sobre a função poética da linguagem, poderia responder também que a poesia não se manifesta apenas na literatura. Acho que até aqui eu, digamos, até aceito esse extrapolamento da poesia. Um pouco mais além já acho que fica difícil, no sentido de querer ver poesia, por exemplo, num quadro pois o quadro possui sua linguagem e essa linguagem usa-se predominantemente de uma função poética.

Nesses casos eu já não gosto de considerar que é poesia pois acho que a pintura, a escultura, o cinema, o quadrinho e enfim; essas outras manifestações não-literárias devem ser o que são, em todas as suas potencialidades, não por serem poéticas, mas por serem utilizações espetaculares de seus instrumentos constituintes. Utilizações exuberantes de suas linguagens, utilizações não-instrumentais e contra-instrumentais. E aí eu acho que o Jakobson talvez tenha sido infeliz ao denominar a tal função poética como poética, quando, a meu ver, melhor seria se ele denominasse como função artística ou algo do tipo.

No âmbito da letra de música, disse que pode ser pois, de fato, pode ser. A música não precisa de uma letra pra ser música. E mesmo que ela tenha um enredo ou um substrato desse tipo, não concordo que reduzi-lo a termos literários seja justo. A letra de música seria uma espécie de adorno que, é claro, não é descartável. Se o artista decide usar uma letra pr'aquilo, essa letra vai passar a possuir suas significações no corpo artístico, do mesmo modo que as variações tipográficas no corpo de um poema concretista podem também ser fontes de significações.

E enfim. Eu disse TALIVEZ.

______________________________________

Palestra sobre o sujeito na poesia contemporânea, pela Viviana Bosi. Conheço-a de sua tradução comentada de John Ashbery. Uma ótima palestra.

 
Última edição:
Esbocei uma lista com livros de poesia contemporânea que a meu ver delineiam nossa produção. Dei uma ênfase a textos publicados recentemente e busquei conciliar a qualidade dos poemas com sua importância e coerência para com a obra do poeta. Ainda está pequena, mas tentarei aumentar com o tempo. É de se notar também que muitos desses livros/poemas eu li pela internet ou em livrarias (e alguns não foram integralmente), de modo que a lista pode ser questionada -- a natureza dela é essa mesmo.

LIVRO -- AUTOR, EDITORA.
  • Um útero é do tamanho de um punho -- Angélica de Freitas, Cosac Naify;
  • Porventura -- Antonio Cicero, Record;
  • Formas do Nada -- Paulo Henriques Britto, Cia das Letras;
  • Sentimental -- Eucanaã Ferraz, Cia das Letras;
  • Esquimó -- Fabrício Corsaletti, Cia das Letras;
  • Cigarros na Cama -- Ricardo Domeneck, download gratuito;
  • Da arte das armadilhas -- Ana Martins Marques, Cia das Letras;
  • 20 poemas para seu walkman -- Marília Garcia, 7letras;
  • Monodrama -- Carlito Azevedo, 7letras;
  • Icterografia -- Dirceu Villa, Hedra;
  • Lira do Lixo -- Adriano Scandolara, Patuá;
  • Brasa enganosa -- Guilherme Gontijo Flores, Patuá;
  • A idade das chuvas -- André Ricardo Aguiar, Patuá;
  • Vário som -- Elisa Andrade Buzzo, Patuá;
  • Todas as coisas pequenas -- Noemi Jaffe, Hedra;
  • Rua da Padaria -- Bruna Beber, 7letras;
  • O beijo do relâmpago -- Daniel Perico Graciano, Multifoco;
  • O Amor e Depois -- Mariana Ianelli, Iluminuras;
  • Trans -- Age de Carvalho, Cosac Naify;
  • Sanguínea -- Fabiano Calixto, 34;
  • Interior Via Satélite -- Marcos Siscar, Ateliê;
 
Sobre a questão se letra-de-música é poesia, pra mim, caso encerrado:

LETRA DE CANÇÃO E POESIA

COMO ESCREVO poemas e letras de canções, freqüentemente perguntam-me se acho que as letras de canções são poemas. A expressão "letra de canção" já indica de que modo essa questão deve ser entendida, pois a palavra "letra" remete à escrita. O que se quer saber é se a letra, separada da canção, constitui um poema escrito.

"Letra de canção é poema?" Essa formulação é inadequada. Desde que as vanguardas mostraram que não se pode determinar a priori quais são as formas lícitas para a poesia, qualquer coisa pode ser um poema. Se um poeta escreve letras soltas na página e diz que é um poema, quem provará o contrário?

Neste ponto, parece-me inevitável introduzir um juízo de valor. A verdadeira questão parece ser se uma letra de canção é um bom poema. Entretanto, mesmo esta última pergunta ainda não é suficientemente precisa, pois pode estar a indagar duas coisas distintas: 1) Se uma letra de canção é necessariamente um bom poema; e 2) Se uma letra de canção é possivelmente um bom poema.

Quanto à primeira pergunta, é evidente que deve ter uma resposta negativa. Nenhum poema é necessariamente um bom poema; nenhum texto é necessariamente um bom poema; logo, nenhuma letra é necessariamente um bom poema. Mas talvez o que se deva perguntar é se uma boa letra é necessariamente um bom poema. Ora, também a essa pergunta a resposta é negativa. Quem já não teve a experiência, em relação a uma letra de canção, de se emocionar com ela ao escutá-la cantada e depois considerá-la insípida, ao lê-la no papel, sem acompanhamento musical?

Não é difícil entender a razão disso. Um poema é um objeto autotélico, isto é, ele tem o seu fim em si próprio. Quando o julgamos bom ou ruim, estamos a considerá-lo independentemente do fato de que, além de ser um poema, ele tenha qualquer utilidade. O poema se realiza quando é lido: e ele pode ser lido em voz baixa, interna, aural. Já uma letra de canção é heterotélica, isto é, ela não tem o seu fim em si própria. Para que a julguemos boa, é necessário e suficiente que ela contribua para que a obra lítero-musical de que faz parte seja boa. Em outras palavras, se uma letra de canção servir para fazer uma boa canção, ela é boa, ainda que seja ilegível. E a letra pode ser ilegível porque não é feita para ser lida, mas ouvida, de modo que as questões que preocupam o letrista dizem respeito à prosódia isto é, à adaptação da letra à melodia, e ao diálogo daquela com a harmonia, o ritmo, o tom, o colorido da peça musical em questão: dizem respeito, isto é, não ao texto escrito, mas à ligação orgânica do discurso oral com a música da canção.

Mas isso, em última análise, ainda não é tudo. A letra se realiza na canção, mas a canção só se realiza plenamente quando interpretada, isto é, quando cantada e ouvida. Ora, como Luiz Tatit mostra em seu belíssimo livro "O Cancionista", "no mundo dos cancionistas não importa tanto o que é dito, mas a maneira de o dizer, e a maneira é essencialmente melódica". Será sem dúvida por isso que podemos perfeitamente apreciar cantores a cantar canções em línguas que não entendemos. E Tatit observa que, para João Gilberto, por exemplo, "o texto ideal é levemente dessemantizado, quase um pretexto para se percorrer os contornos melódicos dizendo alguma coisa (afinal, a voz, por ser voz, deve sempre dizer alguma coisa)". Em suma, uma boa letra de canção não é necessariamente um bom poema.

A resposta para a segunda pergunta, por outro lado -isto é, se uma letra de canção é possivelmente um bom poema- é evidentemente positiva. Os poemas líricos da Grécia antiga e dos provençais eram letras de canções. Perderam-se as músicas que os acompanhavam, de modo que só os conhecemos na forma escrita. Ora, muitos deles são considerados grandes poemas; alguns são enumerados entre os maiores que já foram feitos. Além disso, nada impede que um bom poema, quando musicado, se torne uma boa letra de canção.

Para dizer a verdade, o que nos intriga hoje é que haja tantos grandes poemas entre as letras gregas e provençais e tão poucos entre as modernas. Entretanto, a leitura do livro "Letra Só", de Caetano Veloso -que contém tantos grandes poemas que são também letras de canções-, fez-me pensar melhor sobre essa questão. Para o punhado de poemas de Safo, por exemplo, que nos chegaram, dentre os quais meia dúzia de obras-primas, quantos milhares de letras de canções não tiveram que ser escritos e esquecidos na Grécia antiga?

http://antoniocicero.blogspot.com.br/2007/06/publiquei-o-seguinte-texto-na-minha.html

@Calib Kérberos Kupo

Numa entrevista, há uma boa resposta do Cicero a respeito disso:

Você passou a ser conhecido do grande público através das letras de músicas escritas para sua irmã Marina Lima. Como você diferencia letra de música e poema?

A obra de arte em que a letra é normalmente apreciada é a canção, composta de letra e música. A letra é boa se contribuir para a composição de uma bela canção. No que me diz respeito, como não componho música, faço letras para composições musicais que me são enviadas pelos meus parceiros. Por isso, ao fazer uma letra, levo em conta a música à qual ela se associará, o parceiro que a enviou e o cantor ou a cantora a que se destina. Já quando faço um poema, não penso senão nas exigências dele mesmo. Contudo, é possível que uma letra seja um excelente poema, e é possível que um poema se converta numa excelente letra, quando algum compositor faz uma música para acompanhá-la. Nem o poema é automaticamente melhor do que a canção, nem vice-versa. Toda obra de arte deve ser julgada enquanto indivíduo, e não enquanto membro de uma espécie.

http://tribunadonorte.com.br/noticia/antonio-cicero-um-homem-entre-a-razao-e-a-poesia/236652

Por fim, numa outra entrevista em que o Cicero volta também ao tema das vanguardas:

A.C. - Os primeiros poemas meus que foram musicados não haviam sido feitos para isso. Minha irmã, Marina, subtraiu-os de uma gaveta e os musicou, sem o meu consentimento. Entretanto, gostei muito de ouvi-los musicados. Depois, comecei a fazer versos especificamente para virarem canções. Ademais, passei a fazer versos para melodias previamente feitas por Marina ou por outros compositores. As melodias, nesses casos, funcionavam como espécies de formas fixas para os versos.

Paralelamente, continuei a escrever poemas para serem somente lidos. São os trabalhos em que me reconheço mais inteiramente. Como não sou cantor nem compositor, nem músico, as letras que escrevo sempre fazem parte de alguma obra de outra pessoa. Elas são mediadas por outras pessoas. Não acho que o resultado dessa mediação seja ruim: ao contrário, tenho meus parceiros como grandes artistas. Entretanto, as composições que fizemos juntos não são obras totalmente minhas, ao contrário dos poemas que faço para serem lidos. Incluí no Guardar algumas letras, seja porque já eram poemas antes de serem musicadas, seja porque constituem unidades autônomas, mesmo independentemente das melodias a que estão associadas; mas constituem exceções. A verdade é que nem todos os versos musicados ficam bem, quando despidos da música. Por outro lado, nem todos os poemas escritos ficam bem, quando musicados.

A questão da relação entre letra de música e poesia é muito discutida no Brasil, principalmente porque alguns compositores que nunca publicaram livros de poemas são, apesar disso, geralmente reconhecidos como grandes poetas. É o caso de Caetano Veloso. A questão é normalmente posta do seguinte modo: "letra de música é poema"? Acho essa formulação inadequada. Desde que as vanguardas mostraram que não se pode determinar ex ante que formas são lícitas para a poesia, qualquer coisa pode ser um poema. Se um poeta escreve letras soltas na página e diz que é um poema, quem provará que não o seja? A verdadeira pergunta é, portanto, se uma letra de música é um bom poema. Entretanto, mesmo esta última pergunta ainda não é suficientemente precisa, pois, do ponto de vista modal, pode estar a perguntar três coisas distintas: (1) se é necessário que uma letra de música seja um bom poema; (2) se é impossível que uma letra de música seja um bom poema; e (3) se é possível que uma letra de música seja um bom poema. Ora, a resposta para (1) é evidentemente negativa. Não só letra alguma, mas poema algum é necessariamente um bom poema. A resposta para (2) também é negativa. Os poemas líricos da Grécia antiga e dos provençais eram letras de músicas. Perderam-se as músicas que os acompanhavam, de modo que só os conhecemos na forma escrita. Pois bem, muitos deles são considerados grandes poemas; alguns são enumerados entre os maiores que já foram feitos. Assim, a resposta para (3) é positiva. Uma letra de música pode ser um bom - ou mesmo um grande - poema.

Apesar disso, pouquíssimas letras contemporâneas chegam a ser bons poemas; mas também, de maneira geral, a verdade é que pouquíssimos poemas - contemporâneos ou não - chegam a ser bons. A poesia aspira ao nec plus ultra. O medíocre lhe é tão intolerável quanto o ruim. Horácio é quem melhor o diz: Mediocribus esse poetis non homines, non di, non concessere columnae ("que sejam medíocres os poetas, nem os homens, nem os deuses, nem as colunas concedem"). Quem não é poeta acha fácil fazer poesia. O verdadeiro poeta é aquele para quem fazer poesia é extremamente difícil.

http://www.revista.agulha.nom.br/ag28cicero.htm

Acerca do tema das vanguardas, com o qual o Cicero muito se ocupa, recomendo: O sentido da Vanguarda, as entrevistas anteriormente citadas e uma conversa com a Folha de São Paulo.

Sobre sua provocação de escrever-qualquer-coisa e dizer que é poema, e não podermos afirmar o contrário, penso que possuímos alguns critérios sim de verificação que, tênues ou questionáveis, podem ser válidos para os casos de pura iconoclastia. Se a obra depende apenas de um contexto estritamente específico, se suas fontes semânticas não se renovam... Talvez o Cicero esteja sendo muito radical em emitir opiniões assim, ou em dizer que não existirão mais novidades mesmo formais para a literatura ou um novo Shakespeare, um novo Camões.
 
Postagem interessante na Modo de Usar que lança luz sobre uma faceta da produção contemporânea:

CRISPIN BEST.

Crispin Best é um poeta britânico, nascido em 1983. Ativo basicamente na internet, o que é parte integral de sua poética como poderão ver abaixo, tem textos em prosa e poemas publicados em revistas (digitais) como Robot Melon, Ha Ha Clever, Eye Shot, Abjective, e Clinic, entre outras.

O poeta está ligado ao movimento que vem sendo chamado de Alt Lit, sobre o qual escreveu um texto "Guide to Alt Lit", para a revista Dazed & Confused, da qual é colaborador.

Ainda está sendo escrita a narrativa sobre as transformações que a internet tem trazido para a prática poética. Como venho escrevendo há tempos, muito além da teleologia de esperar necessariamente novas formas de novas tecnologias, a era digital tem nos levado não apenas a reavaliar e praticar formas arcaicas, como tem transformado mesmo a nossa mentalidade ao abordar a poesia.

Em vários poetas jovens o bastante para crescerem com a internet, isso tem levado a um retorno à tradição oral, como podemos ver na poesia do argentino Mariano Blatt (Buenos Aires, 1983) e do brasileiro Victor Heringer (Rio de Janeiro, 1988), entre outros, com seus vídeos e gravações vocais.

No âmbito da poesia anglófona, vemos uma transformação interessante: se se retém a escrita, através de memes, gifs e twits, parece-se abandonar a noção de cânone inamovível e retornar a um ideário da poesia oral: pois se os poemas de Crispin Best e outros não se difundem pelo "boca a boca", como a obra de Gregório de Matos e de alguns trovadores, ela se difunde pelo "clique a clique". Trata-se deveras de um trobar leu e de uma forma digital para a poesia popular, a meu ver. Não sinto neles tampouco a obsessão com a permanência, seu pensamento parece ser o de uma história cíclica. Afinal, amanhã haverá sempre novos poemas.

Não deixem de visitar seu website:
i hope crispin best is still alive.

http://revistamododeusar.blogspot.com.br/2013/12/crispin-best.html

No seu livro sobre Poesia Trovadoresca, Segismundo Spina explica que, como o trobar leu é simples, claro e acessível, "este estilo, a fim de que a poesia não descambe para a vulgaridade e sensaboria, exige grandes qualidades artísticas do poeta." (p. 15 do PDF)

É uma observação muito pertinente por parte do Domeneck a comparação entre o trobar leu e o que vem sido feito pela internet... Apesar de achar que no Brasil isso ainda não tem muita força. Nossa crítica ainda está empedernida, e nossos poetas ainda nutrem anseios livro-impresso bem como parecem rejeitar manifestações performáticas de interpretação, quando não criação, do poema. E quando falo em rejeitar, é rejeitar mesmo: rejeitar no sentido de discriminar o poeta que opta por um caminho assim.

Via de regra, aqueles que fazem um contato com essas vias de escrita são os poetas anônimos, essa miríade de autores que escrevem seus poemas e os repassam em textos do Facebook como se fossem correntes. Claro que nem sempre eles o fazem de maneira séria, e muitas vezes eles adicionam imagens de fundo ou fazem leituras meramente mecânicas do que escrevem. Mas, do contato que tenho, parecem perceber a necessidade de que assim seja feito.
 
O movimento do qual o Best faz parte é o chamado Alt Lit. Literatura Alternativa. O texto da wikipedia está até completo. Até onde li, recentemente tem levantado poeira no cenário britânico. 10 melhores autores de AAlt Lit, segundo Crispin Best. Um "guia" de A a Z dela. Um artigo no The Guardian, por hora, reitera minha opinião a respeito:

http://www.theguardian.com/books/booksblog/2013/jun/06/alt-lit-alternatives-tao-lin

Acho que se tivesse que explicar o que é o Alt Lit, eu diria que é a tentativa de estourar a boiada da poesia na internet.
 
Pra quem quiser entender poesia contemporânea brasileira:

POESIA BRASILEIRA HOJE
Paulo Henriques Britto
24 de novembro de 2013

PARA QUEM VIVEU a maior parte da vida num período de exceção, a volta da normalidade pode causar estranheza. Nas últimas décadas, diversos poetas novos e promissores têm surgido na cena literária brasileira, cada um investindo na sua própria abordagem pessoal, publicando de início em revistas literárias (ou blogues), lançando depois plaquetas e por fim livros de verdade; alguns desses poetas ganham prêmios e bolsas, lecionam em oficinas de escrita criativa e autografam seus livros em lançamentos. Eles tendem a acreditar que, enquanto poetas, sua meta principal não é reinventar a linguagem da poesia nem determinar o curso da evolução do discurso poético pelos próximos cem anos, nem tampouco contribuir para a derrubada do capitalismo e do imperialismo, e sim simplesmente escrever poemas bons. Esses poetas querem ser lidos e discutidos pelo público leitor (o qual, no caso da poesia, consiste basicamente em críticos, professores universitários e outros poetas). E a alguns deles escrevem — além do verso livre que se tornou a língua franca da poesia contemporânea — poemas em metros tradicionais, inclusive sonetos. Tudo como devia ser, certo?

Não para um certo número de críticos e professores universitários que formaram seu gosto e forjaram seu instrumental ideológico nos anos sessenta. Para eles, esses poetas mais jovens são todos uns vendidos; para eles, o dever de todo poeta brasileiro digno do nome é encontrar uma linguagem poética que exprima as contradições do capitalismo no terceiro mundo, ou dê continuidade às conquistas deste ou daquele movimento vanguardista de cinquenta ou sessenta anos atrás — ou, talvez, uma combinação das duas coisas. Assim, há um fosso cada vez mais largo separando a poesia produzida nas últimas décadas de um setor importante do discurso acadêmico sobre poesia.

De certo modo, a maior parte da história da literatura brasileira decorreu em períodos de exceção. Desde seus primórdios, os escritores, tal como os críticos, de modo geral acreditavam que o fim verdadeiro da literatura não era a própria literatura, e sim a construção e afirmação de uma identidade brasileira. Esta sensação de urgência, de se estar vivendo em tempos de crise que exigem uma atitude construtiva por parte dos escritores, já pode ser vislumbrada na poesia do período colonial, mas ela se torna mais evidente a partir de 1822, com o advento da independência e, pouco depois, do romantismo. Os artistas e intelectuais brasileiros julgavam ter a obrigação moral de afirmar a existência de uma nação brasileira que fosse mais do que um rebento de Portugal; mas para afirmar tal nação era necessário criá-la antes. A qualidade da arte produzida no país sempre foi julgada em termos da sua possível contribuição para o projeto sempre inacabado de construir o Brasil. Desse modo, os povos nativos do Brasil foram elevados à posição de símbolos de brasilidade, aquela intangível qualidade que nos tornaria diferentes de Portugal e da América Hispânica. O indianismo, tal como praticado por poetas como Gonçalves Dias e romancistas como José de Alencar, apresentava índios que se comportavam com uma bravura natural e observavam protocolos exigentes de cavalheirismo, verdadeiros cavaleiros-andantes que por algum motivo haviam nascido do lado errado do Atlântico. Pouco importava que essa visão idealizada do índio tivesse suas raízes em Chateaubriand: todas as modas intelectuais brasileiras eram importadas da França. No último quartel do século XIX, realismo, simbolismo, parnasianismo e naturalismo tinham cada um seus seguidores, e eram frequentes as desavenças literárias (principalmente entre o establishment parnasiano e o underground simbolista). Nessa atmosfera afrancesada, porém, alguns escritores criaram obras de mérito genuíno que eram também inconfundivelmente brasileiras, como a poesia de Cruz e Sousa, de longe nosso melhor simbolista, e a ficção do maior escritor de nosso cânone, Machado de Assis. (Aliás, Gonçalves Dias e Machado de Assis eram mestiços, e Cruz e Souza era afrodescendente sem misturas. Ao contrário do que repete o discurso oficial, o Brasil é e sempre foi um país racista, mas nosso cânone literário nunca o foi.)

Mesmo dentro desse contexto maior, o meio século compreendido entre a década de 1920 e o final dos anos sessenta foi, para a poesia brasileira tanto quanto para o país, um período de exceção particularmente excepcional. Embora a geração anterior já desse sinais de uma modernidade incipiente, tudo começou — segundo a história ensinada às crianças nas escolas de todo o país — com a mítica Semana de Arte Moderna de 1922. O evento foi realizado não no Rio, então a capital, e sim em São Paulo, onde estava (e ainda está) concentrado o dinheiro: com o apoio de mecenas ricos, um punhado de poetas, ficcionistas, pintores, escultores e músicos apresentou ao público uma seleção de obras novas e revolucionárias. Ainda que alguns dos participantes fossem cariocas — como o compositor Villa-Lobos e o pintor Di Cavalcanti — em sua maioria eles eram paulistas, dois dos quais viriam a tornar-se os intelectuais mais influentes do modernismo brasileiro: Mário de Andrade e Oswald de Andrade. A Semana assinalou o início de um período de meio século caracterizado por muitos “ismos”, movimentos e defecções e contra-movimentos. Durante esse período revolucionário, os prêmios literários e o reconhecimento oficial eram rejeitados por muitos; resenhas demolidoras assinadas por críticos conservadores eram motivo de orgulho, como cicatrizes de batalhas; e uma parte desproporcional da melhor poesia já escrita no Brasil foi produzida. A maioria de nossos poetas canônicos — Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Vinicius de Moraes, João Cabral de Melo Neto, Augusto de Campos e Ferreira Gullar — para citar apenas os melhores e/ou mais influentes — escreveram e publicaram seus poemas mais duradouros entre o lançamento de Pauliceia desvairada de Mário de Andrade, em 1922 (um livro que não representa o melhor de Mário, mas que deu a largada inicial), e o das Poesias completas (1940-1965) de João Cabral de Melo Neto, em 1968. O clima emocional de boa parte da grande poesia do período era francamente rebelde. Ser poeta, para muitos, implicava ser contra uma série de coisas. Acima de tudo, os modernistas eram contra a poesia convencional do final do século XIX e início do XX, marcada pela sintaxe tortuosa, o vocabulário recherché, a retórica bombástica; mas eram também contra a situação sociopolítica das primeiras décadas do período republicano, a miséria revoltante em que vivia a maioria esmagadora da população, a venalidade dos políticos, a insensibilidade da classe dominante (infelizmente, algumas coisas não mudaram muito de lá para cá). De algum modo, parecia haver uma ligação íntima entre a superfície polida dos alexandrinos rigidamente metrificados dos sonetos compostos pelos parnasianos que dominavam o establishment literário e a indiferença fria da elite em relação aos horrores da situação social. Nesse contexto, o verso livre lançado por Mário na Pauliceia era mais do que uma simples inovação formal: a rejeição do metro e da rima parecia um ato de virtude republicana, um compromisso com o Brasil real, do qual a cidade de São Paulo era uma metonímia viva e vibrante. O verso inicial de “Inspiração”, poema de abertura de Paulicea desvairada — “São Paulo! comoção de minha vida...” — é repetido no final da peça:

São Paulo! comoção de minha vida...
Galicismo a berrar nos desertos da América.

Assim foi que surgiram a Antropofagia, o Pau-Brasil e tantos outros movimentos dos anos vinte e trinta, cada um propondo uma visão específica do projeto de construção de nação visto como a verdadeira razão de ser da literatura. Houve um período de calmaria em meados do século, que incluiu uma reação contra o modernismo — a chamada “geração de 45”, que pregava a volta a uma dicção elevada e ao sublime — seguido por uma onda antiantimodernista, as chamadas neovanguardas dos anos cinquenta e sessenta, das quais a mais importante foi o concretismo, lançado (mais uma vez, em São Paulo) pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari. Os poetas concretistas não se limitaram a abolir o metro e a rima: eles decretaram sumariamente a morte do verso como unidade do discurso poético; doravante a poesia seria mais que tudo uma forma de arte visual, retomando os avanços de Mallarmé e Ezra Pound — heróis do movimento, vistos como concretistas avant la lettre.

Partindo do princípio de que a forma é determinada pela função, a os concretistas queriam nada menos do que escrever hoje a poesia do futuro. Foram atacados com ferocidade por inimigos diversos — entre eles, os defensores da poesia tradicional, pré-modernista, é claro, mas também mais de uma tribo rival de vanguardistas, para quem a poesia tinha de ser revolucionária tanto na forma quanto no conteúdo ideológico. A poesia-práxis de Mário Chamie dava uma inflexão marxista às estratégias concretistas, e vociferava muito mais contra os concretos do que contra o inimigo capitalista, em conformidade com a tradição marxista. O que concretistas e praxistas — bem como João Cabral, que não pertencia a escola alguma — tinham em comum era uma poética severa, quase puritana, que via o subjetivismo como o pecado sem perdão: a verdadeira poesia deveria ser objetiva, fria, cerebral, voltada para objetivos claros.

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Se tivéssemos que escolher um ano para assinalar o final desse período de exceção que durou meio século, a melhor opção talvez fosse 1968. E não apenas por ser o ano em que Cabral lançou pela primeira vez sua obra reunida: foi esse também o ano das rebeliões estudantis em todo o mundo, vistas por Octavio Paz como anunciadoras de uma nova era na história do Ocidente, o fim do tempo das utopias.

No Brasil, 1968 foi, além disso, o ano do AI-5, o “golpe dentro do golpe” que transformou uma ditadura militar até então relativamente moderada num regime brutal, que assumia como práticas rotineiras o sequestro, o exílio, a prisão arbitrária, a tortura e o assassinato. Por fim, foi também o ano da tropicália, que pode ser vista tanto como o último dos grandes movimentos modernistas quanto como o arauto da nova era pós-ismos, ou talvez as duas coisas. E o fato de que na tropicália quem ocupava a posição central era a música popular e não a poesia, as artes plásticas, o cinema nem o teatro — embora todas essas manifestações artísticas estivessem envolvidas — sem dúvida era uma de suas características mais relevantes. Os líderes do movimento, Caetano Veloso e Gilberto Gil, eram cancionistas e cantores; o nome “Tropicália” foi colhido numa instalação do artista Hélio Oiticica, que havia causado forte impressão em Caetano. Outra experiência estética formativa para ele fora a montagem de O rei da vela, peça escrita por Oswald de Andrade décadas antes, levada à cena pela primeira vez nos anos sessenta pelo Grupo Oficina, uma companhia experimental liderada por José Celso Martinez Corrêa. Foi também crucial o impacto sobre o movimento do rock inovador inaugurado pelos Beatles, bem como as letras das canções de Bob Dylan; os músicos populares “sérios” até então tendiam a ver o rock como lixo comercial, na melhor das hipóteses, e como uma estratégia ianque para “alienar” a juventude brasileira, na pior delas. Com essa abundância de influências, a tropicália, ao contrário de todos os movimentos anteriores, caracterizava-se não por aquilo a que se opunha, e sim por sua inclusividade. Para os artistas do movimento, a arte brasileira não deveria temer as contradições, e sim abraçá-las, para engrandecer-se: a racionalidade de Cabral e dos concretos e o sentimentalismo da poesia pré-modernista; a oposição politicamente consciente ao regime militar e a celebração ingênua do esplendor tropical do Brasil; a sensibilidade cool de João Gilberto e o camp de Carmen Miranda; o hedonismo relax do Rio e o industrialismo frenético de São Paulo; a música folclórica do Nordeste e o pop sofisticado de Sergeant Pepper e Blonde on Blonde; e — talvez o mais importante para a poesia — a elaboração formal e o subjetivismo desavergonhado. Em “Tropicália”, uma das canções-manifestos de Caetano, o Brasil é ao mesmo tempo a Brasília modernista e as favelas onde grassava a mortalidade infantil:

O monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga
Estreita e torta
E no joelho uma criança
Sorridente, feia e morta
Estende a mão

Todo esse animado cenário cultural foi destruído pelo AI-5. Um grande número de lideranças políticas acabou na prisão; pessoas foram torturadas e mortas; muitas foram para o exílio, como o poeta Ferreira Gullar, concretista que se tornou neoconcretista e em seguida rompeu com toda a vanguarda para escrever poesia agitprop; os tropicalistas Caetano e Gil, líderes do movimento; e Chico Buarque de Holanda, o principal criador de canções políticas da época, para citar apenas alguns. E assim teve início a pior fase da ditadura, os “anos de chumbo”, como foram rotulados posteriormente, um período de exceção dentro do período de exceção.

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Alguns anos depois do AI-5, no Rio de Janeiro, começaram a aparecer poetas jovens que distribuíam ou vendiam seus escritos em cópias mimeografadas, nos barzinhos da moda ou nas filas das cinematecas, teatros e shows; alguns deles faziam parte de grupos, revistas ou coletivos de artistas, enquanto outros eram independentes. O fenômeno logo se espalhou para outras cidades. Quando, em 1976, a crítica Heloísa Buarque de Hollanda organizou uma antologia de poemas produzidos por esses autores, a que deu o nome de 26 poetas hoje, eles passaram a ser vistos como integrantes de um movimento, a chamada “poesia marginal” ou “geração mimeógrafo”, mas na verdade formavam um grupo bastante heterogêneo: alguns, como Chacal e Charles Peixoto, faziam o gênero bicho-grilo; outros, como Ana Cristina Cesar e Cacaso, eram sofisticados estudantes de letras; havia entre eles poetas que também escreviam letras de canções, como Torquato Neto e Capinan (ambos egressos da tropicália); e dois deles — Chico Alvim e Zuca Sardhan — eram diplomatas de carreira. O que mais os unia era o fato de que a poesia por eles escrita fazia oposição direta aos dogmas do concretismo e dos outros movimentos formalistas: era bem humorada, coloquial, despretensiosa; falava de paixões amorosas, festas, medo da polícia, a dor e a delícia de ser jovem durante um período de ditadura militar. Em seus momentos mais leves, havia nela um elemento contracultural que lembrava o movimento hippie norte-americano, mas o clima político opressivo também deixava nela marcas profundas. Além disso, os marginais, ao contrário dos concretistas e praxistas, não queriam criar a poesia do futuro: estavam ligados no aqui e agora. Seu tema era a sobrevivência durante os “anos de chumbo”, a transformação da vivência privada num pequeno mundo que de algum modo permanecesse imune, ainda que apenas por um triz, da violência e repressão que o cercava. Escrevia Francisco Alvim:

Minha namorada cocainômana
me procura nas madrugadas
para dizer que me ama
Fico olhando as olheiras dela
(tão escuras quanto a noite lá fora)

Havia outra característica comum aos membros da geração mimeógrafo que os punha em nítida oposição aos poetas das duas décadas anteriores: eles não acreditavam na existência de uma fórmula única e excludente para a poesia. Sob esse aspecto, os novos poetas comungavam da visão pluralista do Brasil proposta pelos tropicalistas; e, de modo geral, esta é a atitude que vem prevalecendo desde então. De lá para cá, os poetas vêm experimentando uma ampla gama de recursos poéticos, nenhum dos quais é tabu, nenhum dos quais é obrigatório. Ainda que a maioria dos poetas jovens tenda a preferir o tipo de verso livre picado, marcado por fortes enjambements, que teve William Carlos Williams como pioneiro na poesia de língua inglesa, não há mais o sentimento de que o verso livre é de rigueur, de que as formas métricas e estróficas tradicionais (com frequência usadas de modos criativos e inovadores) implicam necessariamente uma postura reacionária de rejeição da modernidade. É o que ficou claro quando, no final dos anos oitenta, Augusto Massi, um jovem poeta e editor paulistano, lançou a coleção Claro Enigma: treze volumes, cada um assinado por um poeta contemporâneo. (Informação relevante: o autor destas linhas foi um deles.) Alguns desses poetas estavam em atividade desde os anos sessenta, a era cada vez mais remota da neovanguarda, e um era membro da geração marginal; outros haviam começado a publicar apenas no início dos anos oitenta. A diversidade visível na coleção era muito maior do que a encontrada na antologia 26 poetas hoje: os poemas concisos e epigramáticos do livro de José Paulo Paes, que lembravam os poemas-piada de Oswald de Andrade dos anos vinte, eram totalmente diversos das peças líricas solenes e nobres de Orides Fontela; e os versos quebrados de Age de Carvalho nada tinham em comum com os poemas de Maria Lúcia Alvim, em sua maioria metrificados e rimados. Se Sebastião Uchoa Leite era claramente tributário dos concretistas, também estava claro que Francisco Alvim não lhes devia coisa alguma. E em alguns dos livros da coleção, como o de Rubens Rodrigues Torres Filho, dicção elevada e sermo humilis, verso livre e soneto, meditação filosófica e humor escatológico apareciam lado a lado. Para se ter uma ideia dessa diversidade, vejamos dois exemplos breves. Eis o primeiro, de José Paulo Paes:

ODE AOS DILUIDORES

invenção
co-invenção
convenção

Contraste-se esse poema com a primeira estrofe de um soneto de Maria Lúcia Alvim:

Que este resto de vida por viver
Seja à prova de sonhos e porfia —
O corpo é uma forma de prazer
E a alma tem a tez crispada e fria.

Realmente, havia algo de muito novo no cenário poético brasileiro. Esse estado de coisas preocupava aqueles que viam a poesia em termos de categorias como progresso, modernidade e evolução das formas, e também os que acreditavam que a tarefa central do poeta brasileiro era criticar o capitalismo e seus males. Alguns dos poetas ligados ao concretismo simplesmente ignoraram a nova poesia, alfinetando-a com o xingamento mais pesado de seu vocabulário: “ecletismo”. Para pessoas como Décio Pignatari, havia apenas um único caminho rumo à poesia do futuro, e todo aquele que dele se desviasse não deveria ser levado a sério; além disso, já não estava mais do que demonstrado, desde os manifestos concretistas dos anos cinquenta, que o verso estava morto e enterrado? (O plano-piloto do movimento dava “por encerrado o ciclo histórico do verso”.) Por outro lado, os críticos que viam a arte principal ou exclusivamente por um ângulo sociopolítico passaram a atacar a nova poesia em artigos longos e veementes. Iumna Maria Simon e Vinicius Dantas têm sido os críticos mais agressivos de quase toda a poesia produzida no Brasil nas últimas décadas. Sua visão da poesia marginal é bem simples: de um país como o Brasil, que não conseguiu criar uma nova sociedade e aderiu do modo mais submisso ao sistema imperialista e capitalista global, não se podia mesmo esperar nada melhor do que aqueles balbucios de poetastros semianalfabetos que jorravam dos mimeógrafos no Rio; o título de um famoso (ou infame) artigo assinado pelos dois em 1985 diz tudo: “Poesia ruim, sociedade pior”. Um ano depois, Dantas criticou um punhado de poetas — alguns dos quais poucos anos depois seriam incluídos na Claro Enigma — por escreverem com o intento de ganhar prêmios literários. Mais recentemente, em 2011, Iumna Simon concluiu um artigo com um tom esperançoso:

Atualmente há sinais de que o complexo cultural do neoliberalismo foi abalado em sua hegemonia, que o pensamento único perdeu a autoridade de nos condenar a um modelo inapelável de sociedade, embora não despontem alternativas relevantes ao capitalismo, mesmo após uma crise sistêmica de proporções ainda não reveladas de todo, como a que atravessamos desde 2008. Falando da experiência brasileira, é verdade que raras são até agora as reações propriamente artísticas, no campo da poesia, a esta conjuntura. Mas elas existem e estarão fundadas na insatisfação com o paradigma retradicionalizador, o qual, como vimos, não passa de um parasitismo do cânone.

Em outras palavras, o fracasso de neoliberalismo internacional (infraestrutura) virá a ter um impacto positivo sobre a poesia (parte da superestrutura), “embora não despontem alternativas relevantes ao capitalismo”. (E pensar que Elizabeth Bishop afirmou que o brasileiro era incapaz de entender o conceito de understatement!) O que, porém, mais chama a atenção nos ataques dos dois críticos não é o previsível mecanicismo de seus argumentos marxistas, e sim o tom que empregam: vitriólico, transbordando repulsa e indignação moral. Se o leitor acha que “parasitismo” não é tão forte assim, em outro texto Simon refere-se aos críticos e estudiosos da poesia que aprovam os poetas contemporâneos como “gangues ou lobbies que infestam a universidade e a mídia.” Parasitismo, infestações: temos aqui o tipo de vitupério que normalmente se reserva não a maus escritores, e sim a inimigos ideológicos, ou — pior ainda — traidores de uma causa sagrada. Pelo visto, enquanto o Brasil permanecer na malévola órbita da ordem global capitalista, os poetas brasileiros serão necessariamente maus, em todos os sentidos concebíveis da palavra “mau”, a menos que forjem um idioma que constitua uma rejeição explícita do status quo.

Nem toda a crítica, porém, tem sido hostil. E aqui o nome mais inesperado é o de Haroldo de Campos, um dos fundadores do concretismo; já em 1984 ele publicou um artigo importante em que reconhecia que os tempos haviam mudado. Citando Octavio Paz, ele reconhecia que o modernismo dos anos cinquenta e sessenta não era mais uma força motriz: “Sem perspectiva utópica, o movimento de vanguarda perde o seu sentido.” Naturalmente, os críticos mais jovens, como Celia Pedrosa e Marcos Siscar, estão ainda mais afinados com o novo Zeitgeist, mesmo não aprovando tudo o que leem. Um deles, o poeta e professor de literatura Italo Moriconi, afirmou em 1997 detectar em alguns dos poemas recentes uma “volta ao sublime”; porém, ainda que ele próprio preferisse a tradição modernista de dicção coloquial e realidade cotidiana, não havia como negar o mérito de um Carlito Azevedo, mesmo com todo seu suposto esteticismo fin de siècle. No mesmo artigo, Moriconi cunhava uma expressão perfeita para caracterizar o novo período da poesia brasileira: “normalização pós-vanguardista dos circuitos” — ou seja, dos contextos acadêmicos, econômicos e sociais em que circulam as obras literárias. Em outras palavras, a situação atual da poesia brasileira, por mais que escandalize sensibilidades pretéritas, é na verdade nada menos que o estado de coisas normal; as cinco décadas revolucionárias entre modernismo e tropicália, que todos já haviam naturalizado, é que tinham sido um período de exceção, um tempo que havia terminado, para não voltar nunca mais.

A essa análise de Moriconi eu acrescentaria uma observação: o fim da era da vanguarda está intimamente ligado à percepção mais ou menos geral de que a tarefa de construir a cultura brasileira por fim foi concluída. Claro está que toda cultura é sempre uma entidade em transformação e não um construto estático; nesse sentido, a cultura brasileira é e será sempre um processo em andamento. O que estou afirmando é que chega um momento na história de uma nação em que artistas e intelectuais já não sentem a necessidade de afirmar constantemente que sua nação é uma nação de fato, com uma cultura própria. Para países muito antigos, como Portugal ou Grã-Bretanha, esse tipo de preocupação não ocorre a ninguém (já os alemães viveram uma insegurança semelhante durante boa parte do século XIX); no Novo Mundo, porém, o problema é sério — até mesmo nos EUA, durante parte do período romântico: pensemos nas afirmações de americanismo de Whitman e Emerson.

No caso do Brasil, pode-se afirmar agora que a tropicália foi o momento em que uma parte significativa da nossa intelligentsia finalmente se deu conta de que a cultura brasileira estava madura. Não era mais necessário atacar o rock para proteger a “pureza” da nossa música, que estaria sendo ameaçada pela indústria de entretenimento norte-americana em conluio com a CIA. Os brasileiros agora deveriam sentir-se seguros de si o bastante para reconhecer tranquilamente que nunca houve nada de puro na nossa música, nem na nossa cultura, para começo de conversa — mais ainda, que nossa força provém justamente da mistura de correntes diversas: folclore indígena, língua e literatura portuguesas, música e sensibilidade africanas, modas intelectuais francesas, a múltipla contribuição dos imigrantes italianos, alemães, árabes e judeus; mas nesse caso, por que não incluir nessa lista a cultura popular estadunidense? Quando digo a meus alunos de literatura na universidade que nos anos sessenta havia uma visão generalizada de que era preciso proteger a cultura brasileira do rock anglo-americano e do cinema de Hollywood, percebo que para eles tal ideia chega a ser um tanto insólita. Para os jovens de agora, pode-se ser brasileiro e gostar de rock americano ou cinema francês ou lá o que seja sem o menor sentimento de culpa; ser brasileiro agora tornou-se algo tão pouco problemático, tão normal, quanto ser francês ou espanhol. E o fato de que não conseguimos romper com o capitalismo internacional, qualquer que seja nossa posição em relação a isso, também faz parte dessa normalidade; pois sob esse aspecto estamos no mesmo barco que praticamente todos os países do mundo.

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Da virada do século até hoje, a normalidade tem prevalecido, de modo geral. Os poetas mais jovens leem e traduzem poesia com sofreguidão, emulando este ou aquele contemporâneo mais velho ou precursor canonizado; os poetas de prestígio reconhecido publicam em editoras reconhecidas, disputando prêmios literários e até mesmo — horribile dictu! — um lugar na Academia Brasileira de Letras, o que seria impensável para muitos escritores de respeito há não muito tempo atrás, quando a veneranda instituição, fundada por ninguém menos que Machado de Assis, era vista como símbolo de tudo que havia de errado na literatura brasileira. No novo clima de normalidade, os poetas já não integram seitas literárias que se excomungam mutuamente. A agressiva rivalidade entre concretistas, neoconcretistas, praxistas e defensores da poesia participante só volta à tona hoje em dia quando representantes desses movimentos, agora na faixa dos setenta e muito ou oitenta anos, são entrevistados por suplementos literários. Os poetas mais jovens sentem-se livres para lançar mão dos repertórios técnicos deste ou daquele movimento histórico: elementos da prática concretista abundam em toda a obra de Ricardo Aleixo, são claramente visíveis no primeiro livro de Carlito Azevedo e sutilmente presentes em uma fase de outra poeta importante que estreou nos anos noventa, Claudia Roquette-Pinto; mas ninguém rotularia nenhum desses poetas de concretista. Podemos classificar tranquilamente Alexei Bueno como um tradicionalista em dicção, opções formais e visão de mundo; mas o que dizer de um Érico Nogueira, que traduz Teócrito e escreve poesia original experimentando com metros quantitativos e usando um idioma bem coloquial, que não exclui os palavrões?

As categorias dos estudos culturais tampouco funcionam muito bem: pode-se falar em “poesia afro-brasileira” em relação a Salgado Maranhão, Waldo Motta, Ricardo Aleixo e Edimilson de Almeida Pereira, mas o fato é que a única coisa que os quatro têm em comum é a tematização da condição de negro em alguns de seus poemas. Do mesmo modo, a categoria “poesia gay” parece muito pouco apropriada para colocar lado a lado o decoro clássico e a serenidade filosófica das peças líricas finamente elaboradas de Antonio Cicero, a grossura bem-humorada e escancarada dos sonetos impecavelmente decassilábicos de Glauco Mattoso e o humor delicado e autodepreciativo do verso livre de Ismar Tirelli Neto.

Sem dúvida, é sempre difícil entender uma situação quando se está no meio dela. Daqui a vinte ou trinta anos, muita coisa que deixa perplexos os observadores do cenário poético atual naturalmente vai se constelar em tendências nítidas e padrões evidentes. É bem possível que os poetas de hoje que virão a ser canonizados pelas gerações futuras não sejam os que agora são considerados os melhores. Tudo isso é verdade. O fato, porém, é que trinta anos depois da Semana de 1922 já havia uma certa visão geralmente aceita, ainda que não um consenso propriamente dito, a respeito do significado do modernismo e da importância relativa de poetas e obras individuais; já a antologia de Heloísa completou trinta anos em 2006, e até agora não há quase nada que seja ponto pacífico entre críticos e acadêmicos no que diz respeito à importância e ao significado da geração marginal — e menos ainda da poesia que vem sendo produzida de lá para cá. Talvez isso seja consequência de estarmos vivendo tempos “normais”, findo o período de exceção: rotular poetas de modo mais ou menos mecânico em termos de seu posicionamento quanto a questões formais e ideológicas não é mais visto como uma forma relevante de crítica literária. A proliferação de vozes e poéticas distintas desde os anos setenta exige uma atitude mais sofisticada e analítica; mais do que nunca, hoje o crítico precisa estudar poetas individuais e ler poemas individuais pelo que são, e não como representantes deste ou daquele “movimento”. O crítico que acha possível desqualificar um poeta ou toda uma geração tachando-os de meros epifenômenos do “neoliberalismo” está simplesmente vivendo no passado. Argumentar com essas pessoas é provavelmente perda de tempo; tudo que se pode dizer a elas é: estamos do século XXI, gostando ou não gostando. Quanto a mim, eu gosto.

https://lareviewofbooks.org/essay/brazilian-poetry-today-2/
 
Curti. Vou compartilhar lá na Lira. :P
E não critique mais os meus sonetos parnasianos. HUE HUE BR BR
 
@Mavericco ! Ontem vi uma matéria no jornal (que depois me pareceu divulgação, mas enfim...) sobre uma tal Clarice Freire (sobrinha, acho, do Marcelino Freire, daí também a desconfiança com a divulgação) e seus trabalhos no Pó de Lua que me lembrou do Eu me chamo Antônio, publicado agora.

O que você acha? É poesia? (determinar isso importa?) Eu diria que mais do que a poesia oral (é possível), uma tendência possível para a poesia seria algo mais visual. Nosso mundo é o das imagens e blablabla. O que me levou a pensar se a poesia já não estaria há tempo demais sendo "preto no branco". Não conheço poetas contemporâneos que façam uso consistente nem de cores no texto escrito, por exemplo. Alguém tinha que aproveitar melhor a visualidade da coisa... Essa ênfase na visualidade diminui a importância do texto?

Essa poesia de Facebook me parece também superficial (e, sendo pessimista, dá para dizer que a superficialidade finalmente chegou na poesia?) Tudo em volta dela. A ideia de "compartilhar" ou "curtir" com um clique (analisando, dá para dizer que seria "curti e esqueci"), a brevidade dos poemas, o sentimentalismo (quem disse que ele morreu estava muito enganado) (quanto mais sentimental/meloso o texto mais compartilhado, por exemplo), o escapismo. Sendo mais compreensivo, diria que a superficialidade não é necessariamente ruim ou que a ideia de que a superficialidade chegou agora na poesia é falsa. É coincidência também que os dois sejam formados em publicidade?
 
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Não conhecia nem um nem outro trabalho... Mas acho que pude me inteirar.

A meu ver, são poemas sim! (Mas, como você disse, às vezes determinar isso pode não importar muito...)

Claro que é sempre muito complicado você dizer o que é ou não poesia... Mas, como diz o Paulo Henriques Britto numa entrevista que citei acho que na página anterior, um bom método pra você buscar saber se um texto é ou não poesia é o de você ver se ele tem semelhanças com tudo o que já foi feito anteriormente e que é sem dúvidas poesia. Ou seja: um soneto de Camões vai ser sempre reconhecido como poesia. Assim sendo, se eu tenho dúvidas em relação a um texto X, e se eu encontro pontos de contato fundamentais entre os dois, dá pra dizer que X é também poesia. (Claro que não é um método 100%, pois você tem que saber o quê comparar, mas a ideia do método é boa e afasta algumas atrocidades.)

No caso dos poemas dessa menina do Pó de Lua, foi exatamente o que você disse: poesia foi pensada durante alguns séculos como preto no branco. Especificamente, depois de Gutemberg. Como diz o Paulo Leminski, nesse momento o que rolou foi que a poesia foi raptada pela literatura, passando a ser concebida como a letra comportada e emudecida na página.

Porque o funcionamento da poesia não é bem esse. O funcionamento da poesia é basicamente o do trabalho com a linguagem pra valer, em todos os seus sentidos. É um trabalho muito mais vivo que o da prosa; o signo linguístico na poesia é trabalhado enquanto signo, enquanto coisa até certo ponto palpável, bem mais que a mera referência dita pela prosa.

Assim, é comum que o poeta, nesse trabalho vivo com a linguagem, queira trabalhar a sonoridade, a forma, comece a manejar aquelas letras e chegue, por exemplo, ao colorido da grafia medieval ou chegue à conjunção entre poesia e pintura, poesia e música, poesia e performance. Historicamente sempre foi assim. Como dito, só depois de Gutemberg que a coisa começou a arrefecer. Os simbolistas ajudaram muito nesse sentido; por exemplo, o ato de grafar "y" ao invés do "i" possui seus significados muito mais que mero capricho. E isso foi evoluindo até o ponto da vanguarda concretista pregar pelo trabalho da concretude linguística como um trabalho primordial, o que os levou a desancar de vez nessa concepção bastante questionável de que poesia = literatura, quando, na prática, ela vai muito além.

Aí você pega esse poema dela:

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A meu ver, poesia, perfeitamente. Se por um lado parece ser verdade o fato de que muitos poetas hoje não trabalham com a visualidade do poema, isso aí pode ser problematizado se nos perguntarmos: que poetas? Poesia de internet trabalha muito com isso... Não de forma até bem feita como a autora faz; mas é muito comum você ver poemas ao lado de imagens.

Além do quê, poesia e performance é algo que tem sido posto em questão de uns tempos pra cá. No Brasil essa discussão ainda é inóspita, infelizmente; as pessoas ainda perdem tempo discutindo se letra de música é poesia ou não; mas a, digamos, necessidade performática de um poema é uma questão que está a um só tempo próxima e eu digo até além da questão da visualidade. Próximas pois nascem do real funcionamento da poesia: palavra viva, linguagem viva, palpitante. E além pois costumam envolver um algo a mais, se avizinham de uma conjunção de artes que vão além do visual e agregam o musical, o corporal...

No âmbito do poema dessa menina que citei, acho que basta citar, por exemplo, o fundo amarelo na palavra "Acende" pra mostrar que a visualidade táí pra justamente enriquecer. São detalhes da composição do texto que não dá pra passar por cima. Por exemplo, por que ela colocou "Ele prende" entre colchetes e o "Acende" entre chaves? Por que colocou "O amor" com essas gotas ao lado? (Me parece que é mais uma marca dela; mas isso também tem seus significados.) E por aí vai. Não podemos olhar pro poema e só porquê ele está, digamos, desenhadinho, acharmos que isso daí é firula pra esconder pobreza semântica. O trabalho concreto com a linguagem de um poema assim vai desde a coloração de fundo para algumas palavras até a estilização de determinadas letras (como em "Reter", que pode querer simbolizar algo quase-cheio) até o trocadilho "Reter - Re-ter". Afinal de contas, isso é algo mais antigo do que aparenta ser...

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Agora quanto à superficialidade da poesia... Superficialidade sempre existiu. Sempre existiram poetas que não encararam a questão poética em todos os níveis, tanto no da inventividade formal, quanto no da força de conteúdo. Apesar de tudo o que apontei no poema da Pó de Lua, confesso que não o achei lá essas coisas. E, do que li da autora, também não vi nada de mais.

Mas não chego ao ponto de apontar superficialidade na poesia... Isso pra mim é um pisar em ovos. Primeiro porque tem gente muito boa fazendo coisa muito boa. Por exemplo, estive lendo alguns trechos do Quadras Paulistanas do Corsaletti e gostei do que li. Ele trabalhou de modo muito bacana uma área da poesia bastante clássica, que é a das quadras. É gente fazendo trabalho bom; e olha que eu nunca fui muito fã do Corsaletti...

Além do mais, acho que são poesias e poesias. Essa poesia que ela faz é válida também; tá na jogada e cumpre seu papel. Ou será mesmo que podemos querer partir do princípio que ela quer ser uma grande poeta, canônica, quando, sei lá, vai que ela quer mesmo é só adicionar poesia na vida das pessoas? Afinal de contas, é um trabalho importante o dela também. É válido, tem sua pertinência. Não sei nem dizer se concordo com a ideia de que essa poesia dela, a meu ver claramente algo de entretenimento, deve ser visto só como estepe pra poesia inventiva, questionadora...

A diferença é que esse segundo tipo de poesia perdura (se bem feito, é claro). O primeiro tipo tende a ser apagado com a maré do tempo...

Ou não, vai saber.

Mas isso não é propriamente uma novidade. Por exemplo, como citei posts atrás, lá fora há uma forte corrente chamada Alt Lit. Basicamente, literatura alternativa na internet que quer estourar a boiada. E a maior parte desses autores de Alt Lit não quer saber de posteridade. Querem fazer sua poesia hoje de modo que tudo o que tenham a se preocupar do amanhã é, ora essa, escrever amanhã também.

O resto do que você disse, dessas características desse tipo de poesia, aí são casos e casos. Sou sempre muito otimista a respeito disso; mas, mesmo que resulte apenas num clique-a-clique, num curtir-a-curtir que amanhã já seja esquecido... Bem. Amanhã tem mais. Por que temos que partir do princípio que ela quer que amanhã os mesmos poemas sejam lidos, afinal? (Mesmo porque, como diz o Ashbery, amanhã é fácil: o hoje é inexplorado. Me parece até um pouco ridículo falarem no "amanhã" da literatura sempre em três dígitos, por exemplo...)

A questão da brevidade dos poemas, do sentimentalismo... Até mesmo da visualidade... É interessante notar como estamos num panorama cosmopolita da produção atual, além de mostrar como essa mesma produção absorveu conquistas de correntes anteriores. Em muitos casos, são heranças das poesias marginais da década de 70, 80. Lá você já encontra a brevidade, o sentimentalismo... Em muitos casos, até visualidade na produção desses caras. É uma absorção. A popularidade dum cara como o Leminski, por exemplo, é perfeitamente esperada se você manjar o que tem sido produzido agora, com essa questão de despojamento, de trabalho vivo, de "Diminuir a gravidade das coisas", como a autora pôs na sua página.

(O artigo do Paulo Henriques Britto que citei no meu último post fala disso; pro Britto, isso é reflexo de uma situação normalizada da produção atual [e do país], e a faceta inventiva da poesia tem justamente o dever de romper com isso, pôr pra ferver, colocar pra mexer, o que tem sido feito com um Corsaletti ou uma Angélica Freitas [e, no plano real, as manifestações ano passado mostraram que tá ficando difícil falar em normalidade].)

E por fim, quanto ao lance dos dois serem formados em publicidade... Não sei. Talvez não seja coincidência não. Poesia e publicidade é algo que já vinha sendo reivindicado desde os concretistas -- muito antes, aliás, remetendo a um nome como Maiakóvski. E o próprio Leminski era publicitário também. (Estou citando muito o Leminski mas nem sei quais as leituras dela; na prática, é um partir-do-princípio.)
 
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Não conhecia nem um nem outro trabalho... Mas acho que pude me inteirar.
Tinha esquecido de perguntar se você não conhece mais páginas como essas por aí.

A meu ver, poesia, perfeitamente. Se por um lado parece ser verdade o fato de que muitos poetas hoje não trabalham com a visualidade do poema, isso aí pode ser problematizado se nos perguntarmos: que poetas? Poesia de internet trabalha muito com isso... Não de forma até bem feita como a autora faz; mas é muito comum você ver poemas ao lado de imagens.
Digo poetas mais "canônicos", publicados em livros, pelo menos dos que tenho visto no Brasil. Eles não trabalham bem nem a oportunidade de mudança de fontes, negritos e itálicos, cores e "firulas" básicas que computadores já permitem faz tempo. E a questão de publicar em livro se torna um problema também se a poesia vai além do preto no branco.

É verdade, muita gente coloca poemas ao lado de imagens no Facebook e dá para fazer como apresentação de slides também e transformar em vídeo, até comum no Youtube, mas não sei se é a mesma coisa.A não ser que as imagens também sejam produzidas pelo poeta, sei lá (não sei se fica muito claro).

Além do quê, poesia e performance é algo que tem sido posto em questão de uns tempos pra cá. No Brasil essa discussão ainda é inóspita, infelizmente; as pessoas ainda perdem tempo discutindo se letra de música é poesia ou não; mas a, digamos, necessidade performática de um poema é uma questão que está a um só tempo próxima e eu digo até além da questão da visualidade. Próximas pois nascem do real funcionamento da poesia: palavra viva, linguagem viva, palpitante. E além pois costumam envolver um algo a mais, se avizinham de uma conjunção de artes que vão além do visual e agregam o musical, o corporal...
Você está falando de performance como oralização de poemas? (era isso que tinha entendido antes) ou seria como o relacionamento da poesia com outras artes? Acho que esse é um caminho sim e fico pensando que o poeta agora (agora?) tem que ser um artista mais amplo também, não se limitando mais a lidar só com palavras.

Quer dizer, se ele quiser só lidar com elas, não acho que seja rejeitado, mas a tendência me parece ser a mistura com artes visuais, plásticas (e cênicas?) Será que isso não é uma questão de comércio também? De criar uma "marca" que diferencie seu trabalho/produto do de outros artistas?

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Agora quanto à superficialidade da poesia... Superficialidade sempre existiu. Sempre existiram poetas que não encararam a questão poética em todos os níveis, tanto no da inventividade formal, quanto no da força de conteúdo. Apesar de tudo o que apontei no poema da Pó de Lua, confesso que não o achei lá essas coisas. E, do que li da autora, também não vi nada de mais.

Mas não chego ao ponto de apontar superficialidade na poesia... Isso pra mim é um pisar em ovos. Primeiro porque tem gente muito boa fazendo coisa muito boa. Por exemplo, estive lendo alguns trechos do Quadras Paulistanas do Corsaletti e gostei do que li. Ele trabalhou de modo muito bacana uma área da poesia bastante clássica, que é a das quadras. É gente fazendo trabalho bom; e olha que eu nunca fui muito fã do Corsaletti...

Além do mais, acho que são poesias e poesias. Essa poesia que ela faz é válida também; tá na jogada e cumpre seu papel. Ou será mesmo que podemos querer partir do princípio que ela quer ser uma grande poeta, canônica, quando, sei lá, vai que ela quer mesmo é só adicionar poesia na vida das pessoas? Afinal de contas, é um trabalho importante o dela também. É válido, tem sua pertinência. Não sei nem dizer se concordo com a ideia de que essa poesia dela, a meu ver claramente algo de entretenimento, deve ser visto só como estepe pra poesia inventiva, questionadora...

A diferença é que esse segundo tipo de poesia perdura (se bem feito, é claro). O primeiro tipo tende a ser apagado com a maré do tempo...

Ou não, vai saber.

Mas isso não é propriamente uma novidade. Por exemplo, como citei posts atrás, lá fora há uma forte corrente chamada Alt Lit. Basicamente, literatura alternativa na internet que quer estourar a boiada. E a maior parte desses autores de Alt Lit não quer saber de posteridade. Querem fazer sua poesia hoje de modo que tudo o que tenham a se preocupar do amanhã é, ora essa, escrever amanhã também.

O resto do que você disse, dessas características desse tipo de poesia, aí são casos e casos. Sou sempre muito otimista a respeito disso; mas, mesmo que resulte apenas num clique-a-clique, num curtir-a-curtir que amanhã já seja esquecido... Bem. Amanhã tem mais. Por que temos que partir do princípio que ela quer que amanhã os mesmos poemas sejam lidos, afinal? (Mesmo porque, como diz o Ashbery, amanhã é fácil: o hoje é inexplorado. Me parece até um pouco ridículo falarem no "amanhã" da literatura sempre em três dígitos, por exemplo...)
É, talvez seja precipitado tirar o geral e as possibilidades que o Facebook (ou redes sociais em geral) oferece de dois exemplos particulares, mas eu sou pessimista (talvez resquício de marxismo ainda, não sei). Pode-se contra-argumentar que o compartilhamento se baseia em uma identificação mais profunda. O que curto me define?

Não confio muito também que haja artistas que não pensem na posteridade. Até a arte baseada em performances e happenings deixa seus registros em fotos ou escritos (imprensa, por exemplo). Às vezes isso é uma forma de valorizar financeiramente a obra e o artista também, né? A partir da ideia de que será "uma vez só". Mas talvez esteja errado.

A questão da brevidade dos poemas, do sentimentalismo... Até mesmo da visualidade... É interessante notar como estamos num panorama cosmopolita da produção atual, além de mostrar como essa mesma produção absorveu conquistas de correntes anteriores. Em muitos casos, são heranças das poesias marginais da década de 70, 80. Lá você já encontra a brevidade, o sentimentalismo... Em muitos casos, até visualidade na produção desses caras. É uma absorção. A popularidade dum cara como o Leminski, por exemplo, é perfeitamente esperada se você manjar o que tem sido produzido agora, com essa questão de despojamento, de trabalho vivo, de "Diminuir a gravidade das coisas", como a autora pôs na sua página.
Talvez sejam características coincidentes. Vejo semelhanças também com os concretistas, mas não acho que seja influência. Como eu tinha dito em algum lugar, o problema de não conhecer o passado é achar que está inventando as coisas (foi o que você quis dizer no final do post?)

E as coisas estão plurais, sim. Mas é uma consequência da democracia, valorização de individualidade talz. Por outro lado, tenho notado a influência dos norte-americanos recentes como Mariane Moore, Hart Crane etc em alguns brasileiros como o Britto e o Domeneck.

Engraçado como eles também sempre escrevem coisas em inglês, como se fosse natural, talvez meio como os modernistas no Brasil (e os românticos) escreviam em francês... Me incomoda a naturalização. Ou seria tentativa de alcançar um público maior? (me parece ser no caso do Domeneck já que escreve na internet).

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Ah! Sobre o livro novo do Corsaletti (não sei se me animo muito a ler...) saiu um vídeo na TV Cultura (que só consegui encontrar no UOL).
 
Última edição:
Tinha esquecido de perguntar se você não conhece mais páginas como essas por aí.

Pois é, até que não... Um trabalho que vi ontem mesmo foi o do Tazio Zambi. Ele é até famoso nesse lance de edição de revistas virtuais (última vez que li, fez alguns trampos na revista Pitomba)... Lançou livro recentemente: Cerco. Assim que tiver uma graninha, vou dar uma lida. Acho que nesse site, em específico, não dá pra ter uma ideia do alcance que ele tem disso de poesia e, digamos, novas mídias...

E no final das contas, trabalhar apenas a teleologia da relação poesia e internet talvez seja pouco. Nessas horas, faço coro com Ricardo Domeneck, num texto citado acho que nessa página mesmo:

Ainda está sendo escrita a narrativa sobre as transformações que a internet tem trazido para a prática poética. Como venho escrevendo há tempos, muito além da teleologia de esperar necessariamente novas formas de novas tecnologias, a era digital tem nos levado não apenas a reavaliar e praticar formas arcaicas, como tem transformado mesmo a nossa mentalidade ao abordar a poesia.

http://revistamododeusar.blogspot.com.br/2013/12/crispin-best.html

Digo poetas mais "canônicos", publicados em livros, pelo menos dos que tenho visto no Brasil. Eles não trabalham bem nem a oportunidade de mudança de fontes, negritos e itálicos, cores e "firulas" básicas que computadores já permitem faz tempo. E a questão de publicar em livro se torna um problema também se a poesia vai além do preto no branco.

É verdade, muita gente coloca poemas ao lado de imagens no Facebook e dá para fazer como apresentação de slides também e transformar em vídeo, até comum no Youtube, mas não sei se é a mesma coisa.A não ser que as imagens também sejam produzidas pelo poeta, sei lá (não sei se fica muito claro).

Tem muita coisa que é arbitrária... Muita mesmo. Talvez eu tenha dado a entender que é uma tendência geral; é uma possibilidade, talvez até um pouco arrefecida pois está ligada a um trabalho mais concreto com a linguagem, algo que não raro se aproximou de proposições de impessoalidade criadora: os concretistas, numa fase mais desenvolvida de seus artigos, chegavam até mesmo a propor poesia e matemática!... E como hoje a coisa está mudando...

Afinal de contas, quando eu aproximei a poesia da Pó de Lua com as propostas concretistas, acho que dei a entender que ela é uma neo-neoconcreta, sei lá. Naturalmente, não... Ela só está praticando poesia de um modo que é quase tão antigo quanto a própria poesia. E esse caminho, esse rumo, durante um certo tempo, uma fenda pós-Gutemberg, foi rechaçado, o que os concretistas ajudaram a recuperar.

Afinal de contas, impessoalidade ela definitivamente não tem.

Você está falando de performance como oralização de poemas? (era isso que tinha entendido antes) ou seria como o relacionamento da poesia com outras artes? Acho que esse é um caminho sim e fico pensando que o poeta agora (agora?) tem que ser um artista mais amplo também, não se limitando mais a lidar só com palavras.

A segunda pergunta mesmo: poesia entrando em contato com outras artes. Mesmo porque, como você mesmo deixou implícito na pergunta, isso nem é algo recente; na prática sempre foi assim...

Sim, é isso mesmo. Não lidar apenas com palavras. Ou lidar com palavras mesmo. E o resto da discussão seria citar Drummond hehe.

Quer dizer, se ele quiser só lidar com elas, não acho que seja rejeitado, mas a tendência me parece ser a mistura com artes visuais, plásticas (e cênicas?) Será que isso não é uma questão de comércio também? De criar uma "marca" que diferencie seu trabalho/produto do de outros artistas?

Pode até ser uma questão comercial... Talvez pouco. O espaço pra poesia e performance ainda é muito baixo. Poesia e outras artes. Enfim. Poesia em lato sensu. Se você for ver só os vídeos de apresentações, por exemplo, alemãs, vai notar que a coisa é até um pouco underground... É algo ainda um pouco mal visto; o poeta que se propõe à performance ou à conjunção com outras artes é visto de forma zombeteira, inferior, é o cara que quer fazer palhaçada ou graça pro público justamente porque não é poeta o suficiente pra viver só de texto.

O que é uma besteira, claro.

Mas também não quero dizer que a partir de hoje todo poeta tem que saber fazer performance (ou pintar, fazer música, fazer vídeo, ler bem, interpretar, sei lá). Quero dizer que, no mínimo, esse tem de ser um caminho consolidado de uma vez por todas, tem de ser visto como algo natural e um processo natural do próprio processo poético. Que o poeta, se não quiser se meter com performance, ao menos abra sua obra, seja um entusiasta, permita que saiam por ele do retângulo da folha em branco.

É, talvez seja precipitado tirar o geral e as possibilidades que o Facebook (ou redes sociais em geral) oferece de dois exemplos particulares, mas eu sou pessimista (talvez resquício de marxismo ainda, não sei). Pode-se contra-argumentar que o compartilhamento se baseia em uma identificação mais profunda. O que curto me define?

Rapaz, aí eu pipoco. Peço arrego. A tendência é de responder que sim; mas imagino que a coisa seja muito mais complexa...

Não confio muito também que haja artistas que não pensem na posteridade. Até a arte baseada em performances e happenings deixa seus registros em fotos ou escritos (imprensa, por exemplo). Às vezes isso é uma forma de valorizar financeiramente a obra e o artista também, né? A partir da ideia de que será "uma vez só". Mas talvez esteja errado.

Mas aí já seria uma posteridade além do desejo do poeta. Ele não quer; mas o poema, o papel não deixa.

Enfim. Particularmente, acho possível sim... Um poeta mais comprometido com o hoje ou um amanhã a curto prazo. Falo o sentido de posteridade no sentido que é veiculado: igual a imortalidade, sabe? Daqui a 500 anos, será lido. Sinceramente, não creio que isso seja uma imposição... Todo artista quer. Alguns talvez só queiram vender sua poesia, só queiram suas curtidas, só queiram sua fama agora, aparecer na Fátima Bernardes e comer pizza no Faustão. Ou saber que tem alguém curtindo e tá bom, tá legal, posso voltar a meu trabalho enfadonho.

Talvez sejam características coincidentes. Vejo semelhanças também com os concretistas, mas não acho que seja influência. Como eu tinha dito em algum lugar, o problema de não conhecer o passado é achar que está inventando as coisas (foi o que você quis dizer no final do post?)

Sim, isso é verdade. Creio que posso ter me precipitado ao falar em influência. O que eu queria dizer era que esse foi um caminho que os concretistas "abriram". Isto é, eles mostraram: "olha, gente, aquele caminho ali é bom; vamos seguir nele, estamos num establishment literário; vamos colocar o caldo pra ferver." E hoje o poeta pode contar com essas sendas abertas, re-conhecidas.

E sim, esse lance do passado é bem o que você disse. Se bem que, a verdade seja dita, os concretistas reconheciam bem o passado. Eram discípulos de Pound, né... Paideuma etc. Você lê o Teoria da Poesia Concreta e não tem praticamente um texto em que eles não citem Pound, Joyce, cummings, Mallarmé. O problema é que a coronhada foi forte; a crítica não queria aceitar o concretismo e os concretistas foram aos poucos gostando de provocar. Num texto famoso do Pignatari, ele fala de um poema grego que já trabalhava de uma maneira proto-concreta, um poema grego a partir do qual a poesia concreta podia dizer: "não estamos sozinhos".

E as coisas estão plurais, sim. Mas é uma consequência da democracia, valorização de individualidade talz. Por outro lado, tenho notado a influência dos norte-americanos recentes como Mariane Moore, Hart Crane etc em alguns brasileiros como o Britto e o Domeneck.

Hum... Marianne Moore? Engraçado, não vejo tanto... Você fala em que sentido?

Já o Crane, é possível. Ele foi um contraponto forte à Waste Land do Eliot, aquela coisa, vamos simplificar, despersonalizada que foi contraposta à personalização proposta pelo Crane no The Bridge.

Mas ainda assim não vejo tanto Crane... Acho que, talvez, aquele balaio de gato da poesia americana na década de 60, 70... Poetas confessionais, saca? Uma Anne Sexton, uma Sylvia Plath. Só fazer a ponte: quem é a rainha dos baixinhos da poesia contemporânea hoje? Ana Cristina César. E quem ela gostava muito? (Até traduziu...) A Plath.

Engraçado como eles também sempre escrevem coisas em inglês, como se fosse natural, talvez meio como os modernistas no Brasil (e os românticos) escreviam em francês... Me incomoda a naturalização. Ou seria tentativa de alcançar um público maior? (me parece ser no caso do Domeneck já que escreve na internet).

O Britto provavelmente é porque ele é tradutor. Tanto é que em alguns poemas ele até escreve em inglês e depois traduz. O Domeneck eu não acho que escreva tanto... Pode ser no sentido de alcançar um público maior. O Domeneck tem uma articulação pesada com revistas lá fora... Ele consegue propulsionar muita gente. Tanto traduzindo autores contemporâneos, quanto articulando que outros poetas sejam traduzidos lá fora, sejam divulgados.

Ah! Sobre o livro novo do Corsaletti (não sei se me animo muito a ler...) saiu um vídeo na TV Cultura (que só consegui encontrar no UOL).

Jorge, dá pra encontrar muitas dessas Quadras Paulistanas na internet e na Folha de São Paulo. As que você não encontrar, lê na livraria. Fiz isso. E valeu pela dica!
 
Última edição:
Ideologia da percepção ou algumas considerações sobre a poesia contemporânea no Brasil, de Ricardo Domeneck, escrito em 2005/2006 e publicado em 2008. Certamente, um dos melhores textos sobre poesia contemporânea que você vai ler. Sobre o artigo do Britto lá em cima, ele continua muito válido na hora de problematizar bastante essa animosidade "como-somos-plurais":

http://longoestudo.blogspot.com.br/2013/02/ideologia-da-percepcao.html?spref=fb

Do Domeneck, cito também a série de 3 partes sobre poesia contemporânea. Além do esforço notável, as categorias que ele se valeu pra compilar os poetas são muito interessantes... Em inglês,

http://www.babelsprech.org/tuerme-der-nachbarn-2-brasilien-13/
http://www.babelsprech.org/tuerme-der-nachbarn-2-brasilien-23/
http://www.babelsprech.org/tuerme-der-nachbarn-brasilien-33/
 
Passando só para deixar registrados os finalistas do Jabuti em poesia desse ano. Embora me pareça que o Jabuti tem hoje em dia mais a ver com lobby das editoras que com qualidade propriamente. Alguém conhecido? Representativo do zeitgeist?

Poesia
1. Miserere – Adélia Prado (Record)
2. Bernini - Poemas 2008-2010 - Horácio Costa (Demônio Negro)
3. Ligue os Pontos - Poemas de Amor e Big Bang – Gregório Duvivier (Companhia das Letras)
4. Ar de Arestas – Iacyr Anderson Freitas (Escrituras)
5. Estado Crítico – Régis Bonvicino (Hedra)
6. Ximerix - Zuca Sardan (Cosac Naify)
7. Recife, no Hay – Delmo Montenegro (Cepe)
8. Corpos em Cena - Susanna Busato (Patuá)
9. Dever - Armando Freitas Filho (Companhia das Letras)
10. Jardim das Delícias - Marcus Vinicius Quiroga (Kelps)

Em uma nota não relacionada, uns tempos atrás me dei conta de que a épica tinha migrado para os videogames e para certo tipo de rock hoje em dia, além dos filmes (como discutimos em algum lugar sobre o que Borges diz, e sem discutir aqui as características desse tipo de poesia etc). Acho que é meio óbvio isso, mas não tinha percebido. E achei também engraçado pensar na épica "diminuída" em sua função e passando a ser entretenimento. Quer dizer, sobre aquela discussão da possibilidade dela hoje em dia: ela é possível quando não é levada a sério, mas em poesia não. Consequência dos tempos democráticos? Enfim.

Em outra nota, preciso ler mais coisas deste tópico e reler outras....
 
Só conheço e reconheço valor aí na Adélia Prado.
Os outros nomes nunca ouvi falar (culpa minha, claro), à exceção do Duvivier... O qual, se escrever poesia tão mal quanto escreve crônicas, só estaria nessa lista aí pelo lobby mesmo. Admito que é preconceito: se nunca li seus poemas, nada posso falar. Mas é por assim dizer um preconceito quase científico. :lol:
 

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