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Saga Cidade

gmourao

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Parte 1 - O cenário

São Paulo é feita de toneladas e toneladas de carne, ferro e concreto. Cada porçãozinha disso não é uma célula, como exigiria a metáfora, não é um pedaço do todo, são todos eus, eus, eus. Por isso a cidade é tão grande e horrível, porque cada prédio é eu, cada muro é eu e todos os eus se fecham dos outros, se escondem, se expõem enquanto eus.
São Paulo tem muros demais e eles falam. Não são as buzinas, não são os motores nem os gritos, não são as risadas que ainda hoje se ouve, são os muros que falam por São Paulo. É o concreto liso que escurece impotente quando as motos zunem, é o tijolo exposto sob a tinta seca que envelhece com a gente, que se repinta porque mente, em que mijam os cães e os bêbados, em que se apóiam as velhinhas e os que esperam o ônibus, tudo isso é grito. Como são grito os desenhos, uns mais bonitos que tudo, outros assim como sujeiras de letras de pontas agudas anunciando amores e ódios.
São Paulo tem carros demais e eles não andam. Os fluxos são orgânicos, os caminhos são os mesmos, os destinos também. Em São Paulo, é assim: o destino ou é Centro ou é Bairro. E sempre demora.
São Paulo tem gente demais e, falem o que falarem, humanidade demais, também. A cidade tolera todo mundo, pena que até os intolerantes. Gente, tem de monte; às vezes, falta gentileza.
São Paulo tem comidas demais e elas vêm de toda parte. E elas ficam por aqui, crescem, se misturam como tudo se mistura em São Paulo, como receitas que nascem e morrem umas nas outras e de que nos orgulhamos como nos envergonhamos de nossa fome, que São Paulo também tem demais.
São Paulo tem males demais e eles são tão nossos quanto o resto. Outras cidades também têm seus problemas, seus Godzilas, suas invasões alienígenas, suas invasões por nazistas, suas invasões por turistas sexuais, suas invasões por ladrões de bicicletas, seus pervertidos no metrô ou o que quer que seja que as outras cidades têm, mas a gente tem nossa pequenez imensa, nossa fartura de miséria, nosso individualismo coletivo, nosso orgulho vira-lata, enfim, nossos oximoros maleducados.
São Paulo tem mais coisas, também, mas são coisas demais.
 
Parte 2 – A história das pessoas que não são eu

Pedro toca saxofone. Quando ele tinha 11 anos, algum tio de gostos estranhos chegou para o natal com uma caixa preta aveludada e lha entregou animado. Quando o menino destravou os trincos e tirou o instrumento – muito mais bonito que qualquer brinquedo que já tivesse tido –, os pais foram tomados de desespero. Violões, flautas-doces, harmônicas, são todos instrumentos chatos e barulhentos nas mãos de uma criança, mas o saxofone, além de mais chato e barulhento, é também muito mais caro.
Mas Pedro tinha jeito. Depois de algumas semanas em que a casa parecia ter se transformado em uma imensa orgia de gatos, as notas foram se acertando e em pouco tempo ficou óbvio que ele havia nascido para aquilo.
Quando a família se mudou para um condomínio e os vizinhos os viram chegando com aquela caixa, logo começaram as reclamações. Já na primeira noite, o síndico tocou no interfone avisando que não era permitido barulho após certo horário.
Mas assim que Pedro começou a tocar, ninguém mais reclamou. As músicas que ele tocava, fossem quais fossem, soavam mais lindas que qualquer outra coisa que os vizinhos já tivessem ouvido e a decepção geral era tamanha quando chegavam as 22h e o menino paravam que, na semana seguinte, o síndico teve que interfonar de novo, avisando que a restrição de horário não se aplicava às músicas que Pedro tocava.
E Pedro tocava. Quando Pedro estava muito feliz, ele ia para a varanda e tocava o sax para a noite. E quando ele estava muito triste, como no dia em que seu tio morreu doente, ele se trancava no quarto e tocava versões de jazz e umas composições novas que ninguém sabia bem o que eram, além de lindas.

Amanda saía todas as noites. Ela trabalhava cedo e dormia pouco, mas isso não a impedia de sair sempre com gente nova, para lugares novos. Amanda tinha vinte e cinco anos e eram muito poucos para se cansar e demais para ficar parada.
Numa segunda, alguém talvez a encontrasse numa festa que ainda não tinha acabado em algum sítio no interior, buscando alguma carona que a deixasse direto no trabalho, que tempo não teria nem pra um banho. Na terça, amanheceria na casa de alguém que conheceu na noite anterior, vestiria uma camisa dele e sorriria enquanto saía pra rua ainda fechando o zíper. E ainda com a camisa dele ela iria para uma balada friendly, onde se manteria totalmente sóbria e riria até o diafragma doer com seus amigos bichas que encontrava e fazia por ali. Na quarta, um samba-rock num teatro, na quinta, tem festa na USP e na sexta ela vai pra Augusta e só volta na segunda ou quando alguém chamar ela pra um sítio, pra uma festa. E sempre que alguém vir ela, ela vai estar rindo e linda, e sempre em boa companhia.

Eduardo organiza ataques DDoS. Ele escolhe sites de empresas com logotipos muito feios ou cujo SAC o tratou mal e os tira do ar. Senão, ele programa aplicativos para celular ou extensões para navegadores. E ele cria contas de e-mail, msn, facebook, ele cria personagens incríveis e conhece gente e cria laços, mas um dia esses personagens somem e só ele fica.
 
Li a primeira parte e achei ela bem compatível com aquilo que acho de São Paulo. Aliás, apesar da mensagem oposta, essa ambientação me lembrou do filme "São Paulo Sinfônia da Metrópole" um filme com técnicas experimentais do começo dos anos 20/30 que mostram uma visão bem otimista da cidade que carregava a alcunha de cidade do futuro.

Esse filme deve ser bem dificil de encontrar e sua narrativa é bem lenta, porque inclusive, nem trilha sonora ele tem (a sinfônia eram as próprias imagens), mas recomendo para quem gosta de São Paulo e de cinema.
 
Eu sei.

Parte 4 - Um dia, eu fui assim

Houve um tempo em que eu dormia tarde e acordava cedo. Pro café da manhã, por preguiça e economia, eu só tinha pão, que eu mantinha congelado, e manteiga boa, ambos guardados com etiquetas com o meu nome, para evitar que fossem usados pelos outros que compartilhavam a cozinha. Nesse tempo, eu fazia o pão na torradeira escutando no ipod qualquer coisa que me lembrasse de casa e eu passava a manteiga nele, e eu me refiro ao pão, claro, não ao ipod, e o segurava, o pão de novo, com a boca enquanto saía correndo, porque eu sempre acordava já meio atrasado.
Quando eu saía, embora fosse verão, estava sempre frio. Eu abria a porta pra rua de uma vez e encarava direto e então eu pegava a minha bicicleta e pedalava pra aula enquanto engolia o pão com manteiga e o frio que batia de frente, o vento que batia de frente.
Tudo era estrangeiro. Meus amigos, minhas aulas, o pão com manteiga, o céu à noite, e até eu, estrangeiro ali, estranho, alheio, alienígena. Todo o tempo era uma procura de defeitos, uma procura de razões pra gostar mais de casa, para querer voltar pra casa. Quando eu estava em Paris, era só Buenos Aires e vice-versa. Mas eu também era dali. Eu conhecia os caminhos, eu tinha meus truques, eu pegava o trem pra Londres e me virava lá, no metrô, nos teatros, nos pubs que não cobravam mais caro e que tinham bandas de rock ao vivo. Eu tinha meu pão inglês, minha manteiga inglesa e, às vezes, um leite inglês com o equivalente inglês do Toddy. Eu ia pra aula e era mais um ali, como todos os outros eram, até comer no refeitório da faculdade, eu comi.
E, porque eu era dali sem ser, eu percebia as coisas; eu não tinha o deslumbre quieto (porque passivo) dos que se chegam a um lugar e veem pela primeira vez a torre Eiffel, o Cristo, o Big Ben ou os desenhos cravados na madeira do portão do Queen's College. Mesmo turista, meus passeios de punting eram só uma liberdade que eu tomava, não eram minha razão de estar ali, assim como um italiano pode um dia pagar o tíquete e entrar no Coliseu e se misturar com todas as outras línguas que se encontram por ali sem por isso ser uma língua a mais. Eu via, claro, tudo o que há de bonito, mas meus olhos eram críticos e, mais que isso, nostálgicos: eles tinham saudades e viam ali a falta de uma padaria, a falta de azeite bom nos restaurantes (menos o português), a falta de sentido das ruas, de calor das pessoas (e, por Deus, do clima), a falta da bagunça e da aleatoriedade que deveriam me nortear. Brazilian way, eu dizia quando saía sem saber pra onde, só acreditando que, indo naquela direção, a gente iria chegar onde quer que fosse.
 
Parte 5 - Depois eu fiquei (chato) assim.

Foram, portanto, a consciência do distante e a inconsciência, também, que escondem essas canções todas, todas elas do exílio, todas elas sobre a palmeira e o sabiá e nunca sobre aquilo que doía, porque o que dói, agora, é essa falta infinita da palmeira e do sabiá, minha primeira visita ao sentir São Paulo, ainda que antes, muito antes eu já vivesse um saber a cidade que devo em grande parte ao namorar uma arquiteta ou urbanista potencial, alguém que olhava para os prédios e me dizia mais do que gosto ou não gosto. Mas saber não é sentir e foi só quando eu primeiro vi no céu a falta do cruzeiro, só quando eu primeiro sonhei numa língua que não era minha pátria e quando me faltaram o pão francês e a mortadela (esses dois que nem nossos são!) e um suco de laranja que prestasse, foi só então que eu senti além de saber, muito embora sentisse pouco e soubesse menos.

Foi lá, também, que eu aprendi a sentir uma cidade (assim, genericamente) ou a me sentir parte de uma cidade, que são conceitos parecidos, acho, embora nitidamente diferentes. E foi por isso que no final de 2009, quando eu voltei para casa finalmente em um dia chuvoso que não podia ser mais propício e fui a um restaurante com meu pai e meu irmão, embora eu não me lembre se era uma pizzaria ou um restaurante japonês e minha memória cisme em fingir que era uma lanchonete, foi por isso que neste dia específico eu já tinha o plano de contrariar toda a minha saudade e todo o meu ufanismo e incorporar à minha recém retomada vida paulistana o elemento máximo de minha vida pregressa inglesa, ou seja, uma bicicleta.

O plano era ousado, para dizer o mínimo: envolvia não apenas desembolsar uma quantia relevante em um objeto que aumentaria meus riscos diários consideravelmente, mas também fazê-lo insensatamente, investindo não em um equipamento urbano, mas em uma bicicleta sem marchas ou freio nas mãos, desenhada para andar na praia ou nos asfaltos planos e bem cuidados da Europa que eu fingia negar. Dava, assim, a impressão de ser como aqueles mesmos arquitetos que, trazendo as idéias de fora, deixam nossa cidade tão pouco nossa ou como, sei lá, a Cow Parade de que tanto reclamam aqueles que clamam por um intervencionismo urbano mais paulistano, esquecendo-se, talvez, de que São Paulo é farta em sua própria linguagem de rua, nas pontas de suas pixações ou no preto de seus grafites e de que é absolutamente coerente ao espírito de Sampa trazer de fora tudo quanto pudermos, sem maiores pudores.

Seja como for, a idéia tinha algumas justificativas à época e há outras que eu poderia citar agora sem grandes receios, apesar de claramente terem sido criadas a posteriori, para explicar a decisão somente depois de tomada. Em primeiro lugar, no que diz respeito à inadequação de uma bicicleta caiçara, pesada e de guidão alto às ladeiras e ao asfalto truncado de nossas ruas, eu me defendia, então, com a desculpa prática de que eu não pretendia me aventurar para além das fronteiras do meu bairro e que, portanto, a questão era de menor relevância, devendo prevalecer o conforto maior que uma bicicleta dessas propicia nos passeios breves, em que a coluna ereta nos cai bem (embora eu posteriormente fosse descobrir que esta postura sentada seja, na verdade, danosa à coluna). Hoje, porém, todos podem ver que eu faço — e a verdade é que eu já então sabia que faria — percursos longos de dez, quinze quilômetros, às vezes tendo que descer uma via rápida como a Sena Madureira (rápida para uma bicicleta, vejam) ou tendo que subir o Everest que é uma Bela Cintra ou uma Brigadeiro Luís Antônio, tendo que brigar com os ônibus da Paulista, Vergueiro ou Joaquim Floriano, tendo que me apertar entre os carros da Lins e da Francisco Cruz, enfim, tendo que fazer tudo aquilo que uma bicicleta caiçara sem marcha e com freios nos pés não nasceu para fazer. Aos que levantam estes argumentos, eu talvez não tivesse resposta na época, mas agora eu diria que comprar uma bicicleta nunca foi uma questão de adequação e que, se eu quisesse andar em São Paulo com um veículo para o qual São Paulo foi feita, eu não teria opção ao carro, e que andar de bicicleta é tanto uma decisão pessoal quanto uma forma de ativismo, porque não se anda de bicicleta em uma cidade como São Paulo sem se estar protestando contra nosso trânsito, nossa visão motorizada de como o mundo deve ser etc. Assim, uma bicicleta inadequada me parece tão propícia quanto qualquer outra, se não for mais, me forçando, a cada buraco no asfalto, a cada trecho em que tenho que dividir a faixa com motoristas ignorantes, a lembrar que estou em São Paulo e que são esses alguns dos problemas da minha cidade. Mas também não é minha intensão fazer panfletismo aqui e é por isso que corro logo para minha última consideração a respeito da minha escolha cíclica, ou seja, a opção por uma bicicleta com freio no pé, o freio “contra pedal”, ao invés dos tradicionais v-brakes, na mão, que são o que mais se vê na bicicletas que teimam em circular por nossas vias hostis. Essa é, na verdade, a questão mais relevante dentre todas essas observações tediosas sobre bicicletas, porque ela envolve o entendimento da diferença principal entre andar de bicicleta e andar de carro, ao menos do ponto de vista desse texto, isto é, de sentir a cidade: andar de bicicleta é como andar a pé (só que mais rápido), é poder fazer qualquer caminho, poder parar e olhar uma árvore florida etc, ao contrário de um carro em que se entra e se sai do mundo; uma bicicleta é uma extensão de você, não algo externo como um carro e, da mesma forma, estar em uma bicicleta é como não estar, é seu corpo que roça os carros, quando a manobra não é rápida o bastante, é em seu peito que bate o vento e é sua cara que se dá a tapa.

E é mais ou menos por isso que comprar uma bicicleta foi meu segundo avanço no meu processo de internalização da cidade em mim ou de mim na cidade ou internacionalização nenhuma de nada em lugar nenhum, somente uma sensação de sentir que, francamente, já me basta.
 
Parte 6 - A história do automóvel,

eu não sei. Sei que houve Henry Ford e pouco mais que isso, só. Mas eu sei, porque assisto aos desenhos animados, que o carro fez parte do sonho americano e de boa parte das propostas de felicidade e, particularmente, de liberdade anunciadas pela televisão nos últimos anos, correspondendo estes aos anos em que houve carro e em que houve televisão. O automóvel se transformou em um símbolo da felicidade consumista a ponto de estarmos fadados a cortar a parte superior de todas as cruzes do mundo e transformá-las em referências ao Ford T quando vivermos neste admirável mundo novo que tem criaturas tais, ele se tornou o mais poderoso exteriorizador do sucesso humano e, diz-se, um feromônio indispensável nos dias atuais. Junto com a motocicleta, o automóvel representou e representa a fuga, o desprendimento, a velocidade e o que quer que seja que os beatniks queriam dizer e eu acho tudo isso muito lindo, de verdade, mas todos os eus paulistanos foram lá e estragaram tudo.
 
Parte 01-Cenário
Dizem que São Paulo começa no marco zero e que não tem fim... E o mar de gente de todos os credos e etnias faz da cidade uma verdadeira babilônia contemporânea encravada na América do Sul. Espero que consiga dar cabo a “Saga Cidade” o fim que ninguém encontrou ainda. Enquanto isso, lendo.:lendo:
 
Parte 7 - Fuga

Eu não sei desenhar em muro.
Eu toco, ou tento, ou finjo (que tento), mas não me ajuda.
Eu vou às festas (às vezes) e vejo as pessoas ali, e elas se divertem mais que eu e eu penso que estou fazendo alguma coisa errada, porque devia estar rindo, porque não devia pensar tanto e devia sentir mais.
Eu gosto dos meus cliques, dos meus códigos, do hacktivismo, mas eu não sei, eu não entendo, eu não consigo.
Então quando eu estou mais triste, mas triste de não ter jeito, eu tenho minhas pessoas, minha bicicleta, eu tenho minha cidade, minha, minha.
 
Parte 01-Cenário
Dizem que São Paulo começa no marco zero e que não tem fim... E o mar de gente de todos os credos e etnias faz da cidade uma verdadeira babilônia contemporânea encravada na América do Sul. Espero que consiga dar cabo a “Saga Cidade” o fim que ninguém encontrou ainda. Enquanto isso, lendo.:lendo:

Não consigo nem quero. Gostei do remake. :)
 
Parte 1 - O cenário
gostei. apenas o "parte 1" denuncia continuidade, pois o texto por si só está completo. isso é bom, os gdes escritores (pelo menos os q eu considero gdes) sempre sabem transformar o capítulo em algo independente e autônomo. ñ só o cap. mas tb o parágrafo e a frase. ainda ñ li as outras partes, mas nesta vc já conseguiu demonstrar humor sutil, intertextualidade e passar sensações/impressões alienígenas p quem mora no interior.
 

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