Olá a todos. Antes que eu criasse esse tópico eu li este aqui
https://www.valinor.com.br/forum/topico/a-religiao-dos-valar.148845/post-2627338 criado pelo
@Darth Imperius. Nesse comentário o
@Fëanor recomendou o trabalho acadêmico do Markus Altena Davidsen sobre "Religiosidade Tolkieniana". Baseada nas pesquisas dele eu vou compartilhar alguns detalhes sobre os grupos que realmente desenvolveram uma religião baseada no Legendarium de Tolkien. Em 2003 e 2012 por conta dos filmes esse assunto veio à tona novamente, então vou deixar esse tópico pensando em discussões futuras porque talvez a série da Amazon possa reacender o tópico.
Davidsen trata sobre vários assuntos no seu trabalho, como a origem desses grupos, a sua lógica interna e justificação, seus rituais (baseados no Legendarium ou não), fusões com outras religiões, passagens nos livros e outros escritos de Tolkien que dariam vazão para essas crenças, outros trabalhos e autores que tratam desse tema e etc.
A seguir eu escrevi um resumo desses grupos, sua origem, proposta, rituais, visão espiritual e influência que tiveram pelas obras de Tolkien.
O primeiro grupo que Davidsen menciona foi de Mytle Receeo, uma mulher residente do sul da Califórnia, no ano de
1973. Ela cria que as histórias escritas por Tolkien eram reais, embora o autor teria por conveniência "escrito a crônica em forma de ficção". Ela dizia ter conversas com Elfos, Anões e Hobbits e que Bilbo apareceu para ela uma vez como uma criança e a revelou a volta dos Nove Caminhantes (A Sociedade do Anel). Seu grupo tinha a intenção de desenterrar Minas Tirith do deserto de Mojave (Califórnia), que ela teria localizado por poderes psíquicos. O projeto entretanto, foi sempre adiado e o grupo se desintegrou.
Em
1972, "Arwen" e "Elanor" fundaram o grupo feminista "
The Elf Queen Daughters", alegando terem sido orientadas numa sessão de tábua Ouija. Esses não eram seus nomes verdadeiros, mas sim retirados do livro O Senhor dos Anéis. As duas estabeleceram centros em Illinois e em toda a América. Elas eram praticantes de Wicca entretanto, e usavam elementos das obras de Tolkien apenas como complementos. Elas entendiam que Elbereth seria Arda ou Gaia e entoavam canções para ela em rituais. O uso de Varda era na verdade metafórico, usado para reverenciar o "feminino", assim como sua identificação como Elfos era uma referência ao respeito pela natureza.
Esse movimento foi mais tarde sucedido por "
Zardoa Love e Silverflame" que podem ser encontrados aqui
https://www.instagram.com/silverelves/. Zardoa conheceu The Elf Queen Daughthers e passou a receber suas cartas. Depois disso, em uma certa noite ele alegou que havia "despertado como elfo" e recebeu sua iniciação no grupo The Elf Queen Daughters. Depois desse evento ele fundou seu próprio centro em Carbondale (Illinois). Diferente do grupo feminista, Zardoa levou sua "identidade élfica" e despertar a sério. Zardoa em sua parceria com Silverflame alegou que sem Tolkien, provavelmente eles não se chamariam de elfos e referem a si como "Elfos Prateados". Entre suas crenças, eles ligavam Arda a Gaia e acreditavam na reencarnação élfica cíclica para ajudar a evolução do Homem. Apesar de terem se referido ao Silmarillion e O Senhor dos Anéis em várias de suas cartas, eles deixaram o Legendarium de lado anos depois. Além disso, eles não consideram as histórias de Tolkien como realidade factual, apenas fonte de inspiração.
Em
1984 é fundado o "
Tribunal of Sidhe", em Sacramento (Califórnia). Um de seus fundadores é conhecida como "Lady Danu". Tribunal of Sidhe seguia a linha neo-pagã e seus membros se denominavam "Changeling", ou seja, criaturas míticas/feéricas encarnadas em um corpo humano vindas do "Plano Astral". O grupo sintetizava elementos do Legendarium de Tolkien com Wicca, mitologia Celta e suas próprias crenças pessoais. Eles usavam a mitologia de Tolkien assim como várias outras mitologias conhecidas para rituais e, para eles, antigos folclores, mitos e histórias sobre fadas e elfos refletiam o fato histórico de que os mesmos co-habitaram a terra. Correlacionando a obra de Tolkien, o grupo considerava que o lar dos Changeling no plano astral seria o "Reino Abençoado", onde habitariam o "povo parente", sendo assim, os Valar, Maiar e Elfos. Eles alegavam ser o próprio Tolkien um Changeling e sua obra "a história dos Changeling em forma mítica", tendo o autor mudado algumas coisas para que sua história parecesse menos "controversa".
Na "
Alternative Tolkien Society", que você pode acessar aqui (
http://alt-tolkien.com/), ativa de
1996 a
2005, membros compartilhavam, entre outros relatos, visitas à Terra-média através de rituais e encontros com elfos. Foi o fundador do site, Martin Baker, que apresentou Calantirniel e Nathan Elwin, fundadores do grupo Tië Eldaliéva e seu braço Ilsaluntë Valion que falaremos a seguir. Baker que era interessado em esoterismo Ocidental considerou as obras de Tolkien espiritualmente fortes tanto quanto outros mitos. Ele escreveu uma série de artigos que chamou de "manuscrito de Tresco" que alegou chegar até ele por "Alice Bailey", no qual estaria provada a historicidade das obras de Tolkien. Neles, o autor estendeu a trama de Tolkien que conectava a Terra-média e a Inglaterra Anglo-saxã. Ele alegava o manuscrito e tradição relacionada como "intensamente real" senão "realmente verdadeira".
Tië Eldaliéva foi fundado em
2005 por
Nathan Elwin e
Calantirniel. Acesse o site deles aqui
https://elvenspirituality.com/. Elwin procurou por décadas por pessoas que compartilhassem de sua crença de que as histórias de Tolkien não seriam ficção mas sim "mito-história* com elementos euhemerísticos**". O que ele sempre encontrou foi "espiritualidade tolkieniana" mesclada com elementos neo-pagãos. Após a leitura de “J.R.R. Tolkien’s Gnosis for our Day” de Stephan Hoeller, Elwin fundou uma comunidade online para exploração gnóstica e mito-histórica do Legendarium de Tolkien. Após conhecer Calantirniel, ambos resolveram criar um "caminho espiritual incorporando Tolkien". Embora a intenção inicial de Elwin fosse se distanciar de outras crenças, a história de Tolkien não relata rituais, portanto o grupo decidiu criar seu próprio calendário lunisolar, incorporando práticas como magia cerimonial da Ordem Hermética da Golden Dawn e Wicca. O grupo
Ilsaluntë Valion (
https://forum.westofwest.org/) nasceu justamente por divergências entre os membros do grupo. Enquanto em sua raiz Tië Eldaliéva lidava com uma "visão espiritual élfica", alguns membros preferiram uma visão espiritual dos Homens (ou Humana), ou então uma abordagem abrangendo ambos os lados. Alguns membros também se incomodaram com as adições de rituais pagãos usados pelos lideres com o propósito de "preencher as lacunas", ou seja, a falta de atos ritualísticos nas obras de Tolkien. Esses requisitavam uma exploração do Legendarium de forma estrita, sem adições. Outro grupo divergente no que concernia a forma de rituais, preferia as práticas xamanicas, enquanto outros, magia Wicca. Por esse motivo, Elwin se separou do grupo e fundou Ilsaluntë Valion. O novo grupo se afirmava contra a visão Otherkin¹, mas aberta à possibilidade de ancestralidade élfica no gene humano (Meio-Elfos do Legendarium) e mesclava uma visão espiritual tanto élfica como humana. O grupo enfatizou uma linha gnóstica de interpretações e considerou os contos de Tolkien como mito-históricos, juntamente com a intenção de identificar paralelos das histórias de Tolkien e o mundo real embora de forma não plena.
Middle-Earth Pagans foi um grupo fundado em
2004 por Laurasia Sluyswachter para ser um espaço de compartilhamento de experiências de integração do trabalho de Tolkien com "caminhos espirituais". Acesse aqui
https://mepagans.proboards.com/. A maioria de seu grupo assim como a fundadora, encontraram-se nos filmes de O Senhor dos Anéis de Peter Jackson. Diferente de outros grupos, este focou seus rituais para os personagens dos filmes propriamente ditos através de rituais de Wicca. Ela correlacionou cada personagem com um poder e função para clamar em seus rituais. Para o grupo, os personagens de O Senhor dos Anéis seriam expressão metafórica do Deus e Deusa pagãos. Laurasia contou que alguns membros do grupo imaginavam que a Terra-média existiria em uma diferente dimensão e que eles poderiam se conectar com ela visitando o "reino astral". Muitos dos membros perderam o interesse depois de um tempo. O site foi muito usado para discussões diversas não relacionadas a ideia central e nunca foi institucionalizado ou centrado em ideias basilares. O grupo, por fim, se dispersou.
Children of Varda nasceu em
2003, nos grupos do Yahoo e foi um grupo direcionado a pagãos e crentes na existência de elfos. O grupo acolhia também cristãos, ambos unidos em seu apreço pelas obras de Tolkien e na crença em elfos. Alguns membros também apresentavam o fator de auto-identificação élfica. Os tópicos proeminentes foram a respeito de música élfica e mémorias élficas do passado que na maioria das vezes eram ligadas a Terra-média, seja no plano astral ou na pré-história do mundo. O grupo entretanto minguou depois de um tempo. Os focos de discussão se voltaram para assuntos alternativos como tarô, horóscopo, reike, karma, anjos da guarda e etc. Assim como o Grupo Pagãos da Terra-média, a variedade de assuntos e a falta de foco fez com que os membros migrassem para grupos mais organizados. Desde 2006 não houve mais nenhuma atividade no grupo.
O grupo
Elendë foi criado em
2005 no Yahoo (com o nome original Quest for Middle‐earth and the Elves) por Dana. A premissa do seu grupo era reunir pessoas que cressem que a Terra-média foi um lugar real assim como os Elfos. Diferente dos outros grupos, Elendë não realizou rituais e apenas uma minoria dos membros se auto-identificava como elfo. As discussões se focaram centralmente em debater encontros e experiencias com elfos. Embora fundado com a idéia de realidade da Terra-média, a maioria dos membros descartou essa possibilidade, adotando ao invés disso a interpretação de existência de outro mundo habitado por elfos ou a existência deles no mundo real não atrelada ao Legendarium de Tolkien. A partir desse pensamento as discussões foram desaparecendo e nada mais havia para ser dito, pois um estudo sobre elfos de outras mitologias nunca foi incentivado, nem qualquer conexão ritualística empregada. Desde 2004 o grupo passou a maior parte do tempo inativo.
Indigo Elves é um fórum de discussão ativo desde
2005 no Proboards (acesse aqui
https://indigocrystals.proboards.com/). Seu foco está na crença da auto-identificação e natureza élfica, seu despertar e retorno. Seu líder, Ravenwolf, desencoraja rituais direcionados aos Valar, pois nas obras de Tolkien, eles seriam mais como anjos e não como deuses para serem adorados. Ele também se opõe a visão de encarnação élfica, defendendo entretanto a descendência élfica pelo gene. Além disso ele acredita que a Terra-média e os elementos centrais do Legendarium de Tolkien ocorreram em um tempo real do nosso mundo físico. Ele menciona que após o dilúvio ainda houve um período em que os elfos e a magia permaneceram fortes, mas depois disso eles "desbotaram". Entretanto a linhagem com sangue élfico ainda permanece entre os humanos provindos de Arwen e Aragorn. Em relação ao nome do grupo, Índigo é uma pessoa considerada mais sensível e desenvolvida espiritualmente. Alguns membros do grupo se auto-identificam Índigos e consideram a obra de Tolkien assim como mitos de épocas antigas sobre Elfos e Changelings uma forma metafórica para se referir ao real fenômeno Índigo.
Resumindo essas informações, a religião baseada em Tolkien tem profunda e inseparável ligação com o paganismo quando executada na prática. Na maioria dos casos os afetados espiritualmente pelo Legendarium procuram correlação em religiões pré-estabelecidas e se encontram principalmente no neo-paganismo e na adoção ritualística da Wicca.
Dois grupos distintos podem ser observados: aqueles que levam a visão mitopoética*** das obras, alegando que o Legendarium de Tolkien carrega expressões espirituais universais encontradas em várias religiões e culturas, e aqueles que encaram os contos de forma mito-histórica, embora sempre os atrelando a outros mitos e visões espirituais como forma de justificação. Com poucas ressalvas, as religiões apresentadas tentaram pelo menos algum tipo de ritual, principalmente o contato com as divindades, dando mais importância para a experiência de conexão ritual do que para a exploração e correspondência histórica do Legendarium.
*Mito-histórico (Mytho-historical): "o texto é história dramatizada".
**Euhemerístico (Euhemeristic): "o texto é uma lenda".
***Mitopoético (Mitopoeic): "o texto revela entidades sobrenaturais de uma forma metafórica".
¹Otherkin: alguém que sente que não é humano.
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Após a leitura desse trabalho eu reformulei minha pergunta no tópico porque ela foi respondida, mas outra dúvida mais estrita surgiu. Embora eu tenha descoberto divergências de crença nesses grupos, nenhum grupo se encaixou nos parâmetros que eu estou procurando para saber mais a respeito: uma crença não ecumênica, não ritualística, mito-histórica e monoteísta.
Quem quiser ler o trabalho do Davidsen pode acessar aqui:
https://www.academia.edu/25302152/2..._A_Study_of_Fiction_based_Religion_full_text_.