Praticamente comecei e terminei o livro ontem. Apenas a introdução havia lido antes, enquanto existia espaço no vagão do metro. Aliás, esse metro de São Paulo, hem. Puta que o pariu! Na boa, político não devia ter carro. Todos deveriam ser obrigados a andar de transporte coletivo. Assim, ardendo na lomba dos Aurélios Migueus da vida, duvido que as coisas seriam sucateadas dessa forma. Sei não se o náufrago do relato trocaria seus dez dias solitários numa balsa pelas águas ora turbulentas, ora calmas, do mar caribenho, por outros dez em viagens na linha Vermelha, de Corinthians/Itaquera à Palmeiras/Barra Funda, nessa calor de 150º C.
Bom, foi só mais um desabafo. Vamos ao livro.
Fiquei pensando, quando terminei: uma semana cheia de um homem comum dos nossos tempos, com todas as horas sugadas pelos compromissos, demora a passar. De um domingo a outro, mesmo nessa pressa cotidiana, a gente sente cada hora, principalmente pelo enfado que elas trazem consigo. Agora o sujeito, sozinho, dez dias no mar, é uma experiência de eternidade. DEZ dias, imaginaram? Sem nenhuma referência, ignorante do destino que a maré encaminha a balsa, com fome, com sede, com medo - principalmente com medo. Situação que redimi todos os pecados e ainda deixa o homem credor com o Sagrado. Pode dormir na missa, desejar a mulher do próximo e blasfemar que tá tudo certo e São Pedro, na porta do Paraíso, ainda vai ter que lhe balbuciar suas desculpas.
Uma coisa, no entanto, é bom que se diga: não teria toda essa pena do náufrago Luís Alejandro Velasco se não fosse pelo García Márquez. A maneira como se conduz a estória nos coloca na situação de isolados em meio a enormidade oceânica. A gente sente o estômago roncar, sente a garganta arranhar de sede, a pele arder pelo sol inclemente, fica enjoado com as vísceras da gaivota, quer matar os tubarões ladrões de comida, delira, se emociona e quase grita
"Terra à vista " quando se aproxima da costa.
A estória é aquela: um navio de guerra colombiano estava em reparos num porto norte americano. Nos oito meses de manutenção, a marujada se embebedou, deitou com as anglo-saxãs e comprou muamba. Muita muamba, honrando o passado contrabandista dos tempos de colônia.
Depois do concerto, iniciou-se o retorno. A saudade de casa era grande. Para as esposas não reclamarem da ausência e para atenuar o sentimento de culpa pelas puladas de cerca com as boazudas americanas, dá-lhe lembrancinhas. Tudo a bordo do navio, que veio com um peso e voltava com outro. Que veio com um número de marinheiros e voltava com oito a menos, pois no caprichoso mar caribenho, naquele balança-mas-não-vira oceânico, uma onda das graúdas derrubou-os na água. Só o nosso amigo Luís Alejandro Velasco conseguiu chegar à balsa que os acompanhou na queda do navio.
A tristeza pelo "desastre" foi nacional. Contou-se a versão de que uma tormenta os havia encontrado, daí o desaparecimento dos tripulantes e da impossibilidade de se retornar para o resgate. As buscas iniciadas duraram quatro dias, executadas por equipes colombianas e norte americanas, estas últimas
"encarregadas do controle militar e outras obras de caridade no Sul do Caribe". Sem sinal de sobreviventes, foram declarados mortos. E foi aquela coisa de sempre: sensacionalização da tragédia, para despertar a comoção nacional. O governo, que de bobo só tem a cara, pegou carona para disseminar o sentimento de amor à pátria, já que estávamos em um contexto de Regime Militar.
Mas ninguém imaginava um sobrevivente. Ignoraram o sentido de auto preservação que todos temos e que, em alguns, chega a níveis estratosféricos. E fizeram vistas grossas à sorte, também. Porque, mais ou menos como dizia Nelson Rodrigues, sem sorte não se chupa um Chicabom. A sorte, essa coisa abstrata, tão cara ao imaginário caribenho, ao latino americano. Por ela, o náufrago se resgatou.
Restabelecido, diante dos microfones, ele repetiu a estória oficial, talvez por ser soldado e ter a hierarquia no sangue. Virou ídolo e taí uma coisa que a Rede Globo adora. Às vezes penso que o maior sonho da imprensa é esse, o de acontecer uma tragédia por semana, o de se construir um herói por mês, pois o Ibope é garantido - o que de certa forma nos faz cúmplices do quarto poder. Lima Barreto e o seu
Recordações do escrivão Isaías Caminha, lá, em 1900, já jogava tudo isso daí no ventilador. Mas, dizia, o homem virou ídolo. Tornou-se a menina dos olhos da publicidade e do governo militar. Ídolo efêmero, como logo se confirmou. Para ficar no clichê, o que veio fácil, foi fácil e o ex-naufrágo - aqui não cabe julgamento moral - certamente na pindaíba, procurou a redação do jornal onde trabalhava o futuro Nobel de literatura. Num primeiro momento, ninguém se interessou pela estória, já gasta. Porém, com as revelações de que não existiu tormenta e com fotos que comprovavam a muamba, tudo foi para as páginas do
El Espectador.
Não é o melhor de García Márquez. Porém, mesmo um livro mediano do colombiano é capaz de nos fisgar e compensar cada minuto de leitura.