Existe um livro que para mim sempre foi muito significativo; não é um livro muito conhecido, mas sempre gostei dele, e o leio várias vezes (sempre que estou meio para baixo).
Trata-se de
"Nada Como o Sol"; é um romance escrito por Anthony Burgess, e versa sobre William Shakespeare (é um romance-biográfico).
Quase não existem informações sobre Shakespeare: quase nada se sabe sobre sua vida, e sua personalidade, então, é um enorme mistério. Especula-se que seria um homem calmo, de natureza pouco explosiva; sabe-se também que para produzir uma obra que trate o gênero humano com tanta compreensão (sem barrar e escolher nada, mas analisando todos os aspectos da vida; analisando as fraquezas e pecados, mas com compreensão e afeto) é preciso uma enorme dose de empatia. No entanto, a personalidade do dramaturgo será sempre um mistério.
Dito isso, o que me encanta no livro de Burgess é a personalidade que criou para Shakespeare: um homem silencioso, não-arrogante, quase que servil; um homem que vive se autodesprezando, se humilhando; um homem que pode ver em si todos os pecados da história humana, e que compreende que todos somos sujeitos a isso, que todos nós sofremos e que todos merecemos pena e perdão; um homem simples, comum. Não sei por que, mas tenho aqui comigo que a personalidade de Shakespeare era muito parecida com aquela formulada por Burgess. Não há como provar isso, e nem há nada de científico em tal visão: apenas tenho uma sensação muito profunda, quase vísceral, que me diz que Shakespeare era como Burgess o retratou.
Ler essa "biografia" de um homem tão genial que se julga inferior, e que vive se auto-reprovando e sofrendo com seus defeitos e limitações é algo que sempre me energiza, é algo que me faz sofrer menos com minha própria humanidade. As bigrafias de Shakespeare são muito secas, e nunca retratam a carne e o sangue do poeta inglês; Burgess nos dá essa carne, esse sangue, e isso nos faz ficar mais próximos do dramaturgo.
Devo dizer que Burgess era um especialista em cultura elizabetana, de forma que sua criação do clima da época é perfeita; além disso, ele se vale de uma linguagem criativa e metafórica, o que torna o livro ainda mais interessante.
Só existe um problema: para que a obra possa ser apreciada em toda sua magnitude é preciso um grande conhecimento da vida de Shakespeare e das pessoas que a orbitavam (outros escritores da época; empresários teatrais; monarcas e nobres da época, etc.): sem esse arcabouço de informações o livro se torna muito complexo, pois Burgess cita pessoas, fatos, obras e acontecimentos da época sem explicá-los, como se o leitor soubesse do que ele está falando. Quem possui tais conhecimentos, porém, haverá de receber uma imagem de Shakespeare como jamais viu (e, como eu disse, há algo que me diz que Burgess acertou no alvo com sua criação).
Eis a capa do livro:
Ver anexo 11818
Para fãs de Shakespeare é uma leitura maravilhosamente prazerosa: mostra a grandeza humana sem a aura doce e melada de divindade que muitas vezes é derramada sobre os gênios, e vê-los dessa forma é um estímulo, pois mostra que nós próprios podemos, apesar de nossa humanidade, atingir feitos significativos.
OBS: O título do livro provém do Soneto 130 de Shakespeare. Vou citar uma tradução, e depois o original (a tradução é minha; tentei manter o sentido literal - por isso não me preocupei com rimas ou métrica - , e desde já peço perdão por quaisquer falhas):
Os olhos de minha amada não são nada como o sol;
O coral é muito mais rubro do que o rubro de seus lábios;
Se a neve é branca, seus seios são escuros;
Se os cabelos são arames, negros arames cobrem-lhe a cabeça.
Já vi rosas adamascadas, vermelhas e brancas,
Mas jamais vi essas rosas em suas bochechas;
E alguns perfumes existe mais deleite
Do que o hálito que minha amada exala.
Amo a ouvir falar, embora eu bem saiba
Que a música tenha um som muito mais agradável.
Confesso nunca ter visto uma deusa passar –
Minha senhora, quando caminha, pisa no chão.
E no entanto, pelos céus, penso que minha amada é tão rara
Como qualquer uma que ela desmente com falsa comparação.
O original inglês é o seguinte:
My mistress' eyes are nothing like the sun;
Coral is far more red than her lips' red ;
If snow be white, why then her breasts are dun;
If hairs be wires, black wires grow on her head.
I have seen roses damask, red and white,
But no such roses see I in her cheeks;
And in some perfumes is there more delight
Than in the breath that from my mistress reeks.
I love to hear her speak, yet well I know
That music hath a far more pleasing sound;
I grant I never saw a goddess go;
My mistress, when she walks, treads on the ground:
And yet, by heaven, I think my love as rare
As any she belied with false compare.
Tal soneto é exemplificado pela amante do poeta no livro: uma prostituta de luxo negra, vinda de algum país do Oriente (ao que parece das Índias). Existe porém um significado maior: numa época de sonetos de amor perfeitos; de criações embebida em fantasias e doces perfeições, Shakespera não recuava frente a verdade de nossos defeitos; além disso, contrariando muitos críticos (que, se fossem fazer um romance e/ou poema sobre Shakespeare, iriam retratar uma figura titânica, de dons artísticos supremos e enorme autoridade e sabedoria) Burgess nos mostra uma figura repleta de medos, dúvidas, tormentos e dores: ao invés de um gigante orgulhoso e arrogante com seu enorme poder, temos um gigante que se vê como anão, e que não acredita que seus poderes sejam algo divino ou demasiadamente significativo.