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Que belos são os alpes suiços

[align=justify] O título tinha de ser interessante, surpreendente, algo de visual e chamativo. Coloquei Tiros e morte na Rua Tiradentes. A aliteração foi quase espontânea. Veio bem a calhar. Então faltava o lead e as respostas para as seis perguntas que não podem, nunca, passar em branco. Afinal, é aí que o interesse do leitor é conquistado. Um jovem casal, em rua nobre da cidade, foi alvo, no último domingo, de disparos de arma de fogo efetuados por dois motoqueiros; a polícia acredita em morte ligada ao crime. Se não merecia um prêmio também não era de todo ruim. Depois, naturalmente, vinha a reportagem.

Não passa credibilidade. Muito subjetiva. Fatos misturam-se com opiniões. Dramática demais. Não condiz com a política editorial deste jornal. Tive que ouvir calado essas coisas todas quando recusou minha matéria; isso tudo tinha lá certa razão, confesso, mas não foi o verdadeiro motivo da recusa. Não passava de um jogo de faz de conta que os ajuizados tem que jogar. E ajuizado que era, meu chefe jogou e me forçou a jogar também.

O problema era outro, nada tinha a ver com políticas editorais. O problema verdadeiro tinha status e sobrenome: Doutor Almeida e Campos. E aí que meu estilo serviu de motivo, um pretexto conveniente. Mas vá lá, jornal de cidade pequena tem mesmo dessas coisas, não é a primeira capitulação da notícia a um nome.
Ela era mais ou menos assim.

A rua Tiradentes, na placidez de um domingo pela manhã, assistia, imóvel, a despedida entre Tadeu Pereira, 24, e Caroline Almeida e Campos, 20. As casas de moderna arquitetura, tal como seus bem cuidados jardins, podiam adivinhar naqueles semblantes jovens e tristes a dor de uma separação inevitável. Não uma dor qualquer, porém a dor de paixão interrompida. Algum espectador oculto que lhes dirigisse o olhar furtivo, talvez por detrás de uma janela, notaria o vento pesaroso bagunçando os cabelos da jovem enquanto que o céu cinzento ia, às sombras, conferindo um ar quase funéreo ao rosto de Tadeu. Porém, o que não se via nem adivinhava, era a história daquele casal, o antes já passado, e o depois por acontecer dali poucos minutos.

Ninguém sabia como ou onde se conheceram. Ela, estudante de direito, filha de ilustre cidadão, coroada Miss no recente concurso de nossa cidade; ele, de origens desconhecidas e ao que tudo indica em escusas relações com o crime que cresce sem freios por nossas ruas. A improbabilidade de tão incomum casal preocupou os amigos de Carol – apelido da moça -, que logo trataram de avisá-la sobre os perigos da relação; os pais, pragmáticos, sugeriram o imediato término do romance. Contudo, ela pouco caso fez dos avisos. Quem a quisesse encontrar bastava procurar, em belas tardes ensolaradas ou pela noite, na saída da faculdade, um Opala vermelho bordô, de rodas cromadas, único e inconfundível, pertencente a Tadeu; se encontrassem o carro, encontrariam Carol. Sentada no banco do passageiro, feliz e sorridente, lembrava em beleza e satisfação uma primeira-dama no carro presidencial.

Ninguém sabe, tampouco, quando foi que Joel Aparecido, 30, conhecido, fichado e perigoso agiota, entrou em desentendimento com Tadeu, e nem por que o jurou de morte. Este atrito, que prossegue em elucidação pela polícia, foi o que causou a cena de despedida aqui descrita - e o desfecho a seguir.

Fontes próximas relataram que o plano era Tadeu sumir da cidade por uns tempos, despistar Joel e aguardar até que este desse por vencida aquela jura de morte. Assim, naquela manhã nublada de domingo, nas vésperas do plano, enquanto se despediam frente a iminente separação temporária, imagina-se as juras trocadas pelo casal. Tadeu dizia que sentiria muitas saudades enquanto que ela, em promessas quase sem fim, jurava uma espera dolorida e obstinada. Tadeu ainda a teria posto em tranquilidade ponderando que estaria segura; era de família conhecida, figura quase pública, nem mesmo um bandido ruim feito Joel tentaria algo contra ela como forma de vingança.

O ritmo choroso da despedida só foi interrompido por um barulho alto, estridente, de motor. Uma motocicleta virava a esquina e vinha, a toda velocidade, na direção do casal. Ao se aproximar, o condutor reduziu a velocidade enquanto que o garupa sacava um revolver calibre 38. Foram ao todo cinco tiros. Três atingiram Tadeu, um sobrou em seu Opala e outro, feito bala perdida, foi perfurar a porta da casa de Caroline. Esta saiu ilesa. Tadeu morreu ainda na rua, hemorragia interna.

A polícia já deteve I. D. S (17), o autor confesso dos disparos, e permanece no encalço de Joel, denunciado pelo menor como o condutor da moto e responsável pela ação toda.

A despedida do casal, no melhor estilo hollywoodiano, acabou, no ápice de sua tragédia, ainda mais cinematográfica.

(...)

Está certo, admito, não é exatamente um texto jornalístico em seu estilo clássico. Mas para um jornaleco desses, para uma cidadezinha dessas, estava ótimo. Venderia, aposto. Ficasse como crônica se melhor se ajustasse.

O problema é que o pai de Caroline, o imponente Doutor Almeida e Campos, que não falta nunca à coluna social, não gostou muito da possibilidade de ver o nome de sua filha – e de seu próprio nome, por consequência – assim, tão exposto. O que foi pior, não sei: se a publicidade em torno do seu nome ou a anunciação das preferências incomodas de sua filha ao escolher um namorado. E existem tantos filhos de outros doutores em nossa cidade! O velho deve ter se mordido todo.

O delegado, num gesto de enorme boa vontade, assegurou que nenhum nome ligado a tão notável família seria registrado na papelada da investigação policial. Nem mesmo a rua do ocorrido. Eu, que já sabia de tudo e tinha minhas fontes seguras – alguns policiais e conhecidos do casal -, já escrevera a história e mandara, animado, para meu chefe... ingênuo feito um estagiário. Veio então todo aquele papo sobre subjetividade e mistura capciosa de fatos e opiniões. No fundo, o chefe só estava sendo tão benevolente quanto tinha sido o delegado; é isso que significa dizer que nas cidades pequenas as pessoas são mais bondosas e simpáticas.

Mas eu fui bondoso também. Quase tanto quanto o delegado e o chefe. Não registrei a opinião das amigas de Caroline, sobre como esta adorava estar ao lado de Tadeu, talvez o mais popular pária de nossa cidade; uma adoração mais pelos suspeitos ares de marginal do que pela pessoa que ele era. Talvez a pessoa não estimulasse tanto a vaidade de Carol quanto o fazia a fama de bandido. Ignorei provas concretas de que Tadeu era, na verdade, trabalhador, possivelmente sério como qualquer outro, e que se uma dia fez besteira foi a de ter pego um empréstimo com Joel, um agiota metido a gangster. Empréstimo para quê, ignoro igualmente, pois seria ofensa para alguns meter Tadeu, Caroline e casamento na mesma frase. Sequer mencionei infinidade de presente e mimos que o rapaz a oferecia, sabe-se lá se não fruto de outros empréstimos com outros agiotas. Isso poderia, de repente, desvirtuar em algo a imagem de nossa Miss, fineza abastada de nossa sociedade.

E fui tão benevolente que contive o comichão de trazer o relato de outras testemunhas que asseguraram ter visto, no mesmo domingo do assassinato de Tadeu, Carol em uma festinha, animada como era naqueles dias em que o namorado ainda vivia; e observaram que ela sorriu, meio cheia de si e meio cheia da sombra do morto namorado, quando alguém comentou, de canto de boca, ao vê-la passar, lá vai a viúva do bandido!. Bom cristão que sou, deixei passar essas coisas todas.

Já sobre os comentários de um furtivo encontro entre Joel e um sujeito de meia-idade que lembrava, de longe, o Doutor Almeida e Campos, isso a gente deixa passar não por bondade. É o jogo do faz de contas que quem é ajuizado joga, em silêncio.

Como consolação o chefe me deu espaço para outra reportagem sobre o mesmo fato. Afinal, a história é fato, então o fato precisa ser contado. Mesmo que com alguns dias de atraso e certas restrições. Saiu assim, é só pegar o jornal para conferir.

Semana passada uma rixa entre bandidos levou terror às ruas pacatas de nossa cidade. Tadeu Pereira, suspeito de envolvimento com o tráfico de drogas, 24, foi executado a tiros por I.D.S, menor, 17, a mando de Joel Aparecido, 30, conhecido desafeto da vítima, ainda foragido. A polícia prossegue com as investigações.

Caso não encontre a notinha no jornal procure com atenção lá na última página, é um quadrinho quase que espremido no rodapé; está no verso da coluna social. Se tiver tempo dê uma olhada nessa coluna também; em sorrisos e em rosadas bochechas verás Doutor Almeida e Campos, com esposa e a filha Carol, todos juntos numa recente e súbita viagem para a Europa. Você certamente pensará o que eu pensei: que belos são os alpes suíços![/align]
 

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