Almië
cute as a button
Você já deve ter visto a cena pela TV: leões cercam em silêncio gazelas ou zebras que bebem água tranqüilamente num lago qualquer na África, de repente o grupo percebe a presença do predador e sai em disparada. Mas os leões avaçam em velocidade, até que uma patada certeira rasga a pele de um dos animais - em geral o filhote frágil e inexperiente. A seguir, uma mordida no pescoço tira a vida da presa, que em questão de minutos, está reduzida a uma carcaça que alimenta urubus.
Agora imagine que, em vez de zebras ou gazelas, as vítimas fossem pessoas como nós. Então você estaria diante de uma história que relata a regra da vida de hominídeos e seus ancestrais por milhares e milhares de anos, a ponto de o terror de ser devorado por animais munidos de dentes afiados, ter moldado muito do que somos hoje - do facínio por leões e tigres à mania de viver em grupo. Quem afirma isso, é uma dupla de primatologistas americanos. Esqueça a velha imagem dos valentes homens das cavernas varando monstros com suas lanças e trazendo carne para casa. O ser humano , quase sempre, foi a caça!
A tese está no livro Man, the Hunted (sem versão brasileira), lançado esse ano nos EUA. Nele, Donna Hart, da Universidade de Missouri, e Robert W. Sussman, da Universidade Washington, em Saint Louis, reuniram uma coleção de fatos saborosos (mais para os predadores do que para nós) sobre hominídeos ancestrais e nossos parentes mais próximos, os primatas. As conclusões não deixam muita margem para dúvida:na maior parte dos 7 milhões de anos que separam o homem de hoje do primeiro macaco que aprendeu a andar com duas pernas; nossa raça foi o prato principal.
O debate, diga-se de passagem, não é exatamente novo. Até os anos 70, a visão dominante era de que, desde os primórdios, a humanidade aprendeu a virar o jogo contra os predadores. De lá para cá, alguns estudos reinterpretaram radicalmente fósseis que antigamente eram considerados a prova das atividades saguinolentas dos hominídeos. Dentro desses estudos, os dois pesquisadores começaram demostrando que os primatas são - e sempre foram - uma bela refeição no mundo animal. As pesquisas reuniram um calhamaço de dados sobre macacos e assemalhados - dos lêmures de Madagascar aos orangotangos - que foram parar no papo de predadores. O resultado dessa megacompilação é de deixar qualquer chimpanzé de pêlo em pé: nada menos do que 176 espécies de predadores apreciam um primata no espeto. A lista começa nos grandes felinos, como leões e leopardos, e passa por dezenas de aves, répteis e até tubarões do Sudeste Asiático que se alimentam de macacos que nadam no mangue. Hart afirma que nenhuma espécie de primata estudada, nem os musculosos gorilas, escapam de virar comida - aliás, uma das relíqueas mais arrepiantes desenterradas pela dupla, é um dedão inteiro de gorila achado entre as fezes de um leopardo. Na verdade, a taxa média de primatas predados gira em torno de 10% da população ao ano, a mesma que afeta o que poderíamos apelidar de espécies-almoço - aquelas presas típicas dos documentários no Discovery Channel, como antílopes, zabres e gazelas.
Pior ainda, alguns grandes predadores pareciam ser especialistas em infernizar nossa família. Felinos e aves de rapina são os campeões dessa categoria. Tudo começou nos anos 20, quando o professor de anatomia Raymond Dart de pôs a estudar misteriosos fósseis pré-humanos na África do Sul, com idade entre 2 e 3 milhões de anos, batizados de Australopithecus africanus. Com base na infinidade de buracos, ranhuras, e traços de violência que encontrou nos ossos, Dart propôs que os Australopithecus se envolviam em muitos combates e banquetes canibais. Na mesma caverna, foram encontrados restos de babuínos e antílopes com as mesmas marcas - os especialistas achavam que essas ossadas provariam as habilidades de caçador dos hominídeos.
Bastou uma pancadinha, no entanto, para pôr abaixo o castelo de cartas de Dart. Análises mais cuidadosas das caveiras esburacadas dos hominídeos, mostraram que os furos foram abertos pelos dentes afiados de leopardos pré-históricos. O encaixe é tão perfeito que dá para pegar a mandíbula de um bicho desses e juntá-la sem problemas aos crânios dos Australopithecus. Na verdade, tudo indica que o felino dava um jeito de se esgueirar para dentro das cavernas que os primatas usavam para passar a noite, e os devorava, como ainda acontece até hoje com os babuínos que moram lá. Ou seja, aqueles fósseis não eram restos de refeições humanas, eram as sobras do banquete de algum felino; dos quais nossos ancestrais não passavam da refeição.
O perigo podia vir do ar também. Uma das coisa mais esquisistas encontradas num fóssil de bebê devorado, que foi localizado na África do Sul, é que sua mandíbula continuava no lugar original, coisa rara em animais que servem de alimentos para outros. Os ossos também apresentam renhuras por todo lado, como se a carne tivesse sido retirada com uma faca afiada. Uma boa olhada nos macacos regularmente devorados pelas águia-coroada, ave de rapina de grande porte na África, ajudou a elucidar o enigma. O bicho segue uma etiqueta cheia de frescuras na hora de se alimentar: com as garras, desbasta devargar a face da vítima para aproveitar ao máximo da carne.
Quando se avança mais na história, até uns 400 mil anos atrás, chegamos à caverna chinesa de Zhoukoudian, habitada pelos Homo Erectus. Para os pesquisadores que costumavam classificar os humanos primitivos como caçadores e assassinos, a gruta era o paraíso: um conjunto de crânios horrivelmente mutilados, com a face toda detonada e a base arrancada - a imagem sugeria aos especialistas que os homens primitivos construíram ferramentas de pedras para extrair e comer o cérebro de seus inimigos assassinados. Novamente, a análise mais cuidadosa mostrou que esse cenário de pesadelo era bobagem: na verdade, as fraturas provavelmente foram obra de algum tipo gigantesco de hiena, capaz de colocar a cabeça inteira de um ser humano na boca, a fim de quebrar a base do crânio e chegar ao cérebro, gorduroso e nutritivo.
E o que essa coleção de cenas humilhantes ensina sobre as nossas origens e nosso comportamento de hoje?? Os primatologistas Hart e Sussman acreditam que boa parte do comportamento e da fisiologia das pessoas de hoje nasceu da necessidade de não virar ração de leopardo. E isso vai de andar em grupos relativamente grandes e flexíveis até a facilidade em escalar árvores, que é permitida por nossa estrutura de braços e pernas.
Seja como for, uma coisa é certa, toda vez que você sentir um friu na espinha ao ouvir o latido de um cachorro, ou passar pela jaula de tigres e leões no zoológico, lembre-se de que você pode estar diante de um trauma mal resolvido. Nosso reinado (quase) absoluto na Terra é bem recente.
Essa reportagem faz parte da Revista Superinteressante, edição 218 - Outubro de 2005.
Agora imagine que, em vez de zebras ou gazelas, as vítimas fossem pessoas como nós. Então você estaria diante de uma história que relata a regra da vida de hominídeos e seus ancestrais por milhares e milhares de anos, a ponto de o terror de ser devorado por animais munidos de dentes afiados, ter moldado muito do que somos hoje - do facínio por leões e tigres à mania de viver em grupo. Quem afirma isso, é uma dupla de primatologistas americanos. Esqueça a velha imagem dos valentes homens das cavernas varando monstros com suas lanças e trazendo carne para casa. O ser humano , quase sempre, foi a caça!
A tese está no livro Man, the Hunted (sem versão brasileira), lançado esse ano nos EUA. Nele, Donna Hart, da Universidade de Missouri, e Robert W. Sussman, da Universidade Washington, em Saint Louis, reuniram uma coleção de fatos saborosos (mais para os predadores do que para nós) sobre hominídeos ancestrais e nossos parentes mais próximos, os primatas. As conclusões não deixam muita margem para dúvida:na maior parte dos 7 milhões de anos que separam o homem de hoje do primeiro macaco que aprendeu a andar com duas pernas; nossa raça foi o prato principal.
O debate, diga-se de passagem, não é exatamente novo. Até os anos 70, a visão dominante era de que, desde os primórdios, a humanidade aprendeu a virar o jogo contra os predadores. De lá para cá, alguns estudos reinterpretaram radicalmente fósseis que antigamente eram considerados a prova das atividades saguinolentas dos hominídeos. Dentro desses estudos, os dois pesquisadores começaram demostrando que os primatas são - e sempre foram - uma bela refeição no mundo animal. As pesquisas reuniram um calhamaço de dados sobre macacos e assemalhados - dos lêmures de Madagascar aos orangotangos - que foram parar no papo de predadores. O resultado dessa megacompilação é de deixar qualquer chimpanzé de pêlo em pé: nada menos do que 176 espécies de predadores apreciam um primata no espeto. A lista começa nos grandes felinos, como leões e leopardos, e passa por dezenas de aves, répteis e até tubarões do Sudeste Asiático que se alimentam de macacos que nadam no mangue. Hart afirma que nenhuma espécie de primata estudada, nem os musculosos gorilas, escapam de virar comida - aliás, uma das relíqueas mais arrepiantes desenterradas pela dupla, é um dedão inteiro de gorila achado entre as fezes de um leopardo. Na verdade, a taxa média de primatas predados gira em torno de 10% da população ao ano, a mesma que afeta o que poderíamos apelidar de espécies-almoço - aquelas presas típicas dos documentários no Discovery Channel, como antílopes, zabres e gazelas.
Pior ainda, alguns grandes predadores pareciam ser especialistas em infernizar nossa família. Felinos e aves de rapina são os campeões dessa categoria. Tudo começou nos anos 20, quando o professor de anatomia Raymond Dart de pôs a estudar misteriosos fósseis pré-humanos na África do Sul, com idade entre 2 e 3 milhões de anos, batizados de Australopithecus africanus. Com base na infinidade de buracos, ranhuras, e traços de violência que encontrou nos ossos, Dart propôs que os Australopithecus se envolviam em muitos combates e banquetes canibais. Na mesma caverna, foram encontrados restos de babuínos e antílopes com as mesmas marcas - os especialistas achavam que essas ossadas provariam as habilidades de caçador dos hominídeos.
Bastou uma pancadinha, no entanto, para pôr abaixo o castelo de cartas de Dart. Análises mais cuidadosas das caveiras esburacadas dos hominídeos, mostraram que os furos foram abertos pelos dentes afiados de leopardos pré-históricos. O encaixe é tão perfeito que dá para pegar a mandíbula de um bicho desses e juntá-la sem problemas aos crânios dos Australopithecus. Na verdade, tudo indica que o felino dava um jeito de se esgueirar para dentro das cavernas que os primatas usavam para passar a noite, e os devorava, como ainda acontece até hoje com os babuínos que moram lá. Ou seja, aqueles fósseis não eram restos de refeições humanas, eram as sobras do banquete de algum felino; dos quais nossos ancestrais não passavam da refeição.
O perigo podia vir do ar também. Uma das coisa mais esquisistas encontradas num fóssil de bebê devorado, que foi localizado na África do Sul, é que sua mandíbula continuava no lugar original, coisa rara em animais que servem de alimentos para outros. Os ossos também apresentam renhuras por todo lado, como se a carne tivesse sido retirada com uma faca afiada. Uma boa olhada nos macacos regularmente devorados pelas águia-coroada, ave de rapina de grande porte na África, ajudou a elucidar o enigma. O bicho segue uma etiqueta cheia de frescuras na hora de se alimentar: com as garras, desbasta devargar a face da vítima para aproveitar ao máximo da carne.
Quando se avança mais na história, até uns 400 mil anos atrás, chegamos à caverna chinesa de Zhoukoudian, habitada pelos Homo Erectus. Para os pesquisadores que costumavam classificar os humanos primitivos como caçadores e assassinos, a gruta era o paraíso: um conjunto de crânios horrivelmente mutilados, com a face toda detonada e a base arrancada - a imagem sugeria aos especialistas que os homens primitivos construíram ferramentas de pedras para extrair e comer o cérebro de seus inimigos assassinados. Novamente, a análise mais cuidadosa mostrou que esse cenário de pesadelo era bobagem: na verdade, as fraturas provavelmente foram obra de algum tipo gigantesco de hiena, capaz de colocar a cabeça inteira de um ser humano na boca, a fim de quebrar a base do crânio e chegar ao cérebro, gorduroso e nutritivo.
E o que essa coleção de cenas humilhantes ensina sobre as nossas origens e nosso comportamento de hoje?? Os primatologistas Hart e Sussman acreditam que boa parte do comportamento e da fisiologia das pessoas de hoje nasceu da necessidade de não virar ração de leopardo. E isso vai de andar em grupos relativamente grandes e flexíveis até a facilidade em escalar árvores, que é permitida por nossa estrutura de braços e pernas.
Seja como for, uma coisa é certa, toda vez que você sentir um friu na espinha ao ouvir o latido de um cachorro, ou passar pela jaula de tigres e leões no zoológico, lembre-se de que você pode estar diante de um trauma mal resolvido. Nosso reinado (quase) absoluto na Terra é bem recente.
Essa reportagem faz parte da Revista Superinteressante, edição 218 - Outubro de 2005.
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