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Paganus
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''A cruz, dissemos, é um símbolo que, sob formas diversas, se encontra por quase todas as partes, e isso desde as épocas mais remotas; por conseguinte, está muito longe de pertencer própria e exclusivamente ao cristianismo, como alguns poderiam ser tentados a crer. É mister dizer, inclusive, que o cristianismo, ao menos em seu aspecto exterior e normalmente conhecido, parece haver perdido um pouco de vista o caráter simbólico da cruz para já não considerá-la mais que como um signo de um fato histórico; na realidade, estes dois pontos de vista não se excluem de nenhum modo; e inclusive o segundo dele não é, em certo sentido, mais do que uma consequência do primeiro; mas esta maneira de considerar as coisas é tão estranha à grande maioria de nossos contemporâneos que devemos nos deter nela por um instante para evitar todo mal-entendido. Com efeito, com muita frequência se tem a tendência de pensar que a admissão de um sentido simbólico deve levar ao rechaço do sentido literal ou histórico; uma tal opinião não resulta mais do que da ignorância da lei da correspondência que é o fundamento mesmo de todo simbolismo, e em virtude da qual cada coisa, ao proceder essencialmente de um princípio metafísico do qual retira sua realidade, traduz ou expressa este princípio à sua maneira e segundo sua ordem de existência, de tal modo que, de uma a outra ordem, todas as coisas se encadeiam e se correspondem para concorrer à harmonia universal e total, que é, na multiplicidade da manifestação, como um reflexo da unidade principial mesma. Por isso é que as leis de um domínio inferior podem ser sempre tomadas para simbolizar as realidades de uma ordem superior, onde têm sua razão profunda, e que é a uma só vez seu princípio e seu fim; e podemos lembrar nesta ocasião, tanto mais quanto traremos aqui mesmo exemplos disto, o erro das modernas interpretações ''naturalistas'' das antigas doutrinas tradicionais, interpretações que invertem pura e simplesmente a hierarquia das relações entre as diferentes ordens de realidades.
Assim, os símbolos ou os mitos jamais tiveram por função, como pretende uma teoria muito difundida em nossos dias, representar o movimento dos astros; senão que a verdade é que se encontram frequentemente neles [nos símbolos] figuras inspiradas neste e destinadas a expressar analogicamente outra coisa, porque as leis deste movimento traduzem fisicamente os princípio metafísicos de que dependem. O que dizemos dos fenômenos astronômicos pode ser dito igualmente, e ao mesmo título, de todos os demais gêneros de fenômenos naturais: estes fenômenos, pelo fato mesmo de que derivam de princípios superiores e transcendentes, são verdadeiramente símbolos destes; e é evidente que isso não afeta em nada a realidade própria que estes fenômenos como tais possuem na ordem de existência a que pertencem; pelo contrário, é isso mesmo que funda esta realidade, já que, fora de sua dependência em relação aos princípios, todas as coisas não seriam mais que um puro nada. E ocorre com os fatos históricos o mesmo que com tudo o mais: eles também se conformam necessariamente à lei de correspondência de que acabamos de falar, e, por isso mesmo, traduzem segundo seu modo as realidades superiores, e realidades das que não são de certo modo mais do que uma expressão humana; e acrescentaremos que isso é o que constitui todo seu interesse no nosso ponto de vista, inteiramente diferente, não é necessário dizê-lo, daquele em que se colocam os historiadores ''profanos''. Este caráter simbólico, ainda que comum a todos os fatos históricos, deve ser particularmente claro naqueles que dependem do que se pode chamar mais propriamente de ''história sagrada''; e é assim como se encontra concretamente, de uma maneira mais destacada, em todas as circunstâncias da vida de Cristo. Se o que acabamos de expor foi bem compreendido, se verá imediatamente que isso não só não é razão para negar a realidade destes acontecimentos e para tratá-los de ''mitos'' puros e simples, senão que, pelo contrário, esses acontecimentos deviam ser tais e que não poderiam ser de ouro modo; além disso, como se poderia atribuir um caráter sagrado ao que estaria desprovido de todo significado transcendente? Em particular, se Cristo morreu na cruz, é, podemos dizê-lo, em razão do valor simbólico que a cruz possui em si mesma e que sempre foi reconhecido por todas as tradições; é assim que, sem diminuir em nada seu significado histórico, se pode considerá-lo como não sendo mais que derivado deste valor simbólico mesmo.''
René Guénon, prefácio de ''O Simbolismo da Cruz''
Assim, os símbolos ou os mitos jamais tiveram por função, como pretende uma teoria muito difundida em nossos dias, representar o movimento dos astros; senão que a verdade é que se encontram frequentemente neles [nos símbolos] figuras inspiradas neste e destinadas a expressar analogicamente outra coisa, porque as leis deste movimento traduzem fisicamente os princípio metafísicos de que dependem. O que dizemos dos fenômenos astronômicos pode ser dito igualmente, e ao mesmo título, de todos os demais gêneros de fenômenos naturais: estes fenômenos, pelo fato mesmo de que derivam de princípios superiores e transcendentes, são verdadeiramente símbolos destes; e é evidente que isso não afeta em nada a realidade própria que estes fenômenos como tais possuem na ordem de existência a que pertencem; pelo contrário, é isso mesmo que funda esta realidade, já que, fora de sua dependência em relação aos princípios, todas as coisas não seriam mais que um puro nada. E ocorre com os fatos históricos o mesmo que com tudo o mais: eles também se conformam necessariamente à lei de correspondência de que acabamos de falar, e, por isso mesmo, traduzem segundo seu modo as realidades superiores, e realidades das que não são de certo modo mais do que uma expressão humana; e acrescentaremos que isso é o que constitui todo seu interesse no nosso ponto de vista, inteiramente diferente, não é necessário dizê-lo, daquele em que se colocam os historiadores ''profanos''. Este caráter simbólico, ainda que comum a todos os fatos históricos, deve ser particularmente claro naqueles que dependem do que se pode chamar mais propriamente de ''história sagrada''; e é assim como se encontra concretamente, de uma maneira mais destacada, em todas as circunstâncias da vida de Cristo. Se o que acabamos de expor foi bem compreendido, se verá imediatamente que isso não só não é razão para negar a realidade destes acontecimentos e para tratá-los de ''mitos'' puros e simples, senão que, pelo contrário, esses acontecimentos deviam ser tais e que não poderiam ser de ouro modo; além disso, como se poderia atribuir um caráter sagrado ao que estaria desprovido de todo significado transcendente? Em particular, se Cristo morreu na cruz, é, podemos dizê-lo, em razão do valor simbólico que a cruz possui em si mesma e que sempre foi reconhecido por todas as tradições; é assim que, sem diminuir em nada seu significado histórico, se pode considerá-lo como não sendo mais que derivado deste valor simbólico mesmo.''
René Guénon, prefácio de ''O Simbolismo da Cruz''