A "PULP FICTION"
DE JOÃO GUIMARÃES ROSA
Braulio Tavares
Escritor e roteirista free-lancer
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Ensaio publicado no Jornal da Tarde de 22 de junho de 1998
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O Brasil é um país onde há jovens de 20 e poucos anos que conseguem ler a trilogia do Senhor dos Anéis de J. R. R. Tolkien em inglês, mas têm dificuldade com o português de Guimarães Rosa. Certamente é mais um problema de estilo do que de idioma (esses mesmos leitores encontrariam problemas com James Joyce), mas a verdade é que a "fantasia tolkieniana", hoje um dos filões mais explorados (e já quase exauridos) da indústria literária de língua inglesa, não tem similar nacional em nossas letras.
Creio que se no Brasil dos anos 30 ou 40 houvesse literatura fantástica de grande qualidade e de dimensões épicas a carreira literária de Guimarães Rosa (1908-1967) poderia ter se desviado no rumo da Fantasia – ele teria se tornado, talvez, uma espécie de "nosso Tolkien". Apesar das evidentes diferenças, os dois escritores tinham em comum uma porção de elementos: a visão épica, a erudição, o interesse pela linguagem. Além disso, pode-se dizer que o projeto literário de ambos partia do mesmo gesto: a tentativa de fundar uma região mítica (Middle-Earth, o Sertão) recriada com rigor cartográfico, e que serviria de cenário para as batalhas cósmicas entre o Bem e o Mal.
Por outro lado, as origens literárias de Guimarães Rosa foram muito mais "populares" do que as do escritor do Silmarillion: os temas que abordava em sua obscura estréia como ficcionista não eram muito distantes dos que se exploravam, na mesma época, nos pulp magazines dos EUA, as revistas baratas de contos populares que, depois de conhecerem décadas de opróbrio, começam a ser revistas e re-avaliadas pelo mundo acadêmico.
Os três primeiros contos publicados por Guimarães Rosa, entre os 21 e 22 anos de idade, talvez fossem vistos por ele com tal distanciamento que depois não mais os reconheceu como seus -- tanto que nunca os coletou em livro. Mas não são maus. Dizem-nos coisas sobre as leituras e as curiosidades de Rosa, e teriam cabido numa obra como Ave Palavra, por exemplo, que tem um caráter de miscelânea e de memorial. Estes três contos fantásticos são "O Mistério de Highmore Hall", "Makiné" e "Kronos kai Anagke" ("Tempo e Fatalidade). Um quarto conto, "Caçadores de Camurças"¹ foi publicado na mesma época, mas não sendo um conto fantástico fica de fora deste artigo. ²
"O Mistério de Highmore Hall" saiu na revista O Cruzeiro em 7 de dezembro de 1929. O título sugere Conan Doyle ou Edgar Wallace, mas na verdade o conto é um entrecruzamento de leituras: Edgar Poe, Dumas, o romance gótico. É um conto gótico, embora se passse nas highlands da Escócia, numa geografia de nomes impronunciáveis. Um médico da cidade de Inverary, o Dr. Angus Dunbraid, é chamado à casa de um nobre: Sir John Highmore, de Highmore Hall. No trajeto, pára num castelo próximo, o de Duw-Rhoddoddag, pertencente à família dos Lawen. Ali, fica sabendo que as famílias dos dois castelos viveram uma tragédia anos atrás, quando a esposa de Sir John Highmore, Lady Anna, fugiu com Sir Elphin Lawen, seu vizinho. Os dois apaixonaram-se, desapareceram e nunca mais voltaram ou deram notícias.
O médico prossegue até Highmore Hall, onde durante algum tempo trata da saúde de Sir John, que é um esquisitão. O castelo está entregue às baratas e ao matagal; as torres estão se desconjuntando porque moram lá apenas Sir John e dois criados também idosos. Há ratos no castelo. O médico começa a distrair-se matando-os a pauladas. Um dia, mata um rato que...
"...carregava às costas pequeno volume, fortemente preso por uma tira de pano.
Dunbraid desfêz o embrulho, já meio roído, e retirou um pedaço de linha [sic] ³a desmanchar-se, onde a custo se liam algumas palavras escritas a tinta vermelha:
"...só Deus poderá...
... ... ... de tão horrorosa prisão! Socorrei-me por tudo...
O Dr. Dunbraid acha aquilo estranho, mas, como certamente, nunca lera um conto gótico, não dá maior importância ao caso. Além do mais, uma cuidadosa inspeção do castelo revela que não há ali masmorras ou cárceres. Ele retorna a Inverary, mas, tempos depois, é novamente chamado a Highmore Hall para atender o velho. Pouco depois de chegar lá, durante uma noite tempestuosa (em que se desencadeia "a fúria dos elementos"), vê surgir no gabinete de Sir John um vulto aterrador, quase um espectro: "... um corpo hediondo, nú, hirsuto, negro, sujo, a escorrer água, os hombros largos sustentando a juba cerdosa de uma cabeça e a grenha barbada de um rosto bestial. Os olhos faiscavam chammas de odio – olhos de leopardo numa cara de gorilla." A aparição faz um longo discurso vingativo onde se encapsula todo o plot da história, e depois ataca Sir John, que cai fulminado.
A verdade revelada é esta: Sir John havia descoberto o caso de Lady Anna com o amigo e vizinho. Prendeu os dois numa masmorra situada por baixo de seu gabinete, onde ninguém penetrava, e todos os dias (com a cumplicidade dos criados) atirava-lhes sobras de comida. Isso durou anos. Lady Anna morreu: Lord Elphin assistiu o apodrecimento do corpo da amada, e depois usou seus ossos como escavadeira para ir deslocando pedras, abrindo passagens às cegas no subsolo do castelo, até emergir ali, naquela noite, bradar aos céus (e ao Dr. Dunbraid, que entrevê a cena à distância) toda a verdade, e depois cair sobre Lord John, morrendo os dois.
É um conto razoavelmente curto, nada mau para um estudante de Medicina que nasceu no interior, veio para Belo Horizonte aos dez, e cursava a Faculdade aos 21, idade que tinha quando estreou com esta história que não faria feio em Argosy, Weird Tales, ou em qualquer dos inúmeros pulp magazines que forneciam ao público norte-americano dezenas de histórias semelhantes todos os meses. As leituras atentas de Rosa estão visíveis: há elementos de Edgar Poe (a decadência, o emparedamento, o morto-vivo), mas também há elementos, como o pedido de socorro através do rato, que devem remontar à tradição do folhetim. O conto opta por um final melodramático que deve muito ao Romantismo, principalmente àquela corrente do Romantismo que em Portugal se chama "romance negro" . Crimes inomináveis (que quase sempre reúnem a baixeza moral à crueldade gratuita) são vingados de forma grandiloquente, em desfechos que satisfazem a expectativa do leitor ideal para este tipo de conto: o que ainda não lhe sabe as regras.4
O segundo conto publicado por Guimarães Rosa era completamente diferente. Nada de ambientação gótica; nada de fantasia tenebrosa (dark fantasy). "Makiné" (que saiu numa edição de domingo de O Jornal, no Rio, em 9 de fevereiro de 1930), era na verdade uma heroic fantasy ou até mesmo historical fantasy.
No início do conto, vemos a cena pelos olhos de Karthpeq, o astrólogo, num acampamento fenício, que fervilha de atividade, porque escravos e mercenários de mil nacionalidades (egípcios, etíopes, cananeus, sidônios, tirianos, hebreus, "habitantes de Arad", carios, pelasgos, bazanitas, filisteus...) carregam baús, sacos e cargas para os dromedários: preparam-se para partir em caravana.
O astrólogo vai tomar assento entre os anciãos: "Narr-Baal de Tyro, valido do rei Hiram... Quaimph de Sidon... Han-Dagon de Kitim... Kisdab e Bakbakkar, agentes hebreus do Rei Salomão..." Os nomes evocam mais uma história de Clark Ashton Smith do que Sagarana, mas os leitores do próprio Sagarana hão de recordar o conto "São Marcos", uma história sobre um feiticeiro que induz cegueira temporária numa pessoa que o ofendeu. Neste conto, personagens que não se conhecem gravam nomes num bambual, entre os quais os nomes dos "reis leoninos", cuja mágica sonora os dispensa de significarem alguma coisa: Sargon, Assarhaddon, Assurbanipal...
Os anciãos discutem com Karthpeq, que se recusa a acompanhá-los de volta ao hemisfério Norte. Ele quer ficar ali, no meio dos aliados tupinambás, guerreiros locais um pouco broncos, que bajulam e temem os forasteiros. Os anciãos lhe lembram que "... Summér, o archimago, quiz também aqui ficar sozinho, quando da nossa primeira viagem, e nunca mais se teve noticia delle!" É inevitável a menção a "Sumé", o deus ou astronauta que trouxe algumas invenções e descobertas essenciais aos povos do continente americano: para uns é um sumério, para outros é São Tomé.
Depois que a esquadra parte, os tupinambás estão meio indóceis, e Karthpeq decide promover um ritual para intimidá-los. Ele precisa de segurança para, na companhia de três figurantes que ficaram ao seu lado, descer à caverna de Mag-Kinnér, ali nas proximidades, e recolher o tesouro em diamantes que ele descobrira, deixado ali pelo desaparecido Summér.
Ele pede uma criança e uma mulher para serem sacrificados. Ao apontá-los, acaba escolhendo a noiva de Piraintatá, o chefe tupinambá. Os índios, ainda incertos, entregam os dois. Ele sacrifica a criança, decapitando-a e depois esquartejando-a em público. Quando chega a vez da jovem índia, ela grita pelo noivo. Os índios se sublevam. Karthpeq mal consegue fugir com os companheiros, embrenhando-se pelo corredor da gruta que leva ao esconderijo do tesouro. Durante a fuga, eles percebem que os índios, em vez de tentar persegui-los até o fundo das cavernas, preferem empilhar pedras e sepultá-los lá dentro. Eles voltam, lutam, desesperam-se, mas os outros são mais numerosos, e eles morrem soterrados, e o ouro de Summér ainda continua lá, à espera de quem vá buscá-lo. O conto termina:
Durante séculos a pedra grande porejou água, e a água levantou stalagmites, escondendo o poço entupido.
Assim, é bem pouco provavel que se descubram algum dia os diamantes de "Sumé" e os restos dos quatro phenícios entranhados vivos nos ocos subterrâneos de Makiné.
Parece uma história de Jeronymo Monteyro ou de Sprague de Camp, mas na verdade é uma peculiaríssima interpretação do regionalismo que começa a brotar no autor. A gruta de Maquiné é o principal ponto turístico da região de Cordisburgo, onde o poeta nasceu. Era como se um carioca usasse a Pedra da Gávea, ou um paraibano usasse as pedras lavradas do Ingá. Na obra de Guimarães Rosa, o cenário é sempre regional, mas a voz narrativa que desdobra esse cenário e suas histórias é uma voz consciente de toda a Geografia do mundo, de toda a História, de toda a Cultura.
Farei agora uma extensa citação. Não apenas para dar uma idéia de como Guimarães Rosa escrevia aos 21 anos, e das idéias que lhe estimulavam a imaginação, mas para tornar acessível aos leitores em geral um texto talvez condenado ao esquecimento.5
"Então Quaimph, o encarregado de annotar as peripecias da viagem, desenrolou largo papyro, encimado pelo hierogramma de Baal e pelo signo pentacular de Salomão – concessão dos phenicios aos seus aliados israelitas – e leu, sem esforço:
-- Sob a proteção de Astoreth e Melkarth, e dos Patecks que governam os espiritos alados, nós, servos e navegadores dos magnos reis Hiram, filho de Abi-Baal, gloria dos sidonitas e tyrianos, e Salomão, o Sabio, de Israel, partimos do grande molhe de Tyro, no 16º anno do reinado de Hiram, quando o rio de Adonia corria purpureado pelo sangue do amante de Astaroth, morto no Libano.
"Com bons ventos assoprados para oéste, aportámos a Kitim nossas 30 galeras, todas feitas de abetos de Senir, com velas de linho do Egypto, remos de carvalhos de Bazan, ancoras de prata e quilhas pontudas de bronze, levando a imagem de Tanith, e a effigie de Sydick, pae dos kabirs e principe do fogo. Contratámos, em Kitim, colonos carios e pelasgos, e velejamos para o Egypto, onde embarcámos os engenheiros de Sisak-Amenhotep, o Pharaó aliado. Mais adeante, próximo à bahia de Syrte, juntaram-se a nós as náos de Zelek, que voltavam do mar dos Juncos com marfim de Dedan, colonos de Asiongaber e rubis da ilha de Tylos.
"Costeado durante muitas luas o littoral da Lybia, passamos o estreito de Gades no tempo de Ziv e atravessámos o mar das Algas, onde foram lançadas sete victimas humanas às aguas tempestuosas, para aplacar a ira de Tanit. Tivemos, então, por guias a Pequena Ursa e a estrella Algarab, da constellação do Corvo.
"Tocámos nas ilhas dos Antis, e os ventos e as correntes nos ajudaram a encontrar a Grande Terra Firme, onde há ouro, prata, diamantes e madeiras raras, e onde habitam as raças imberbes de tez vermelha. Passámos a foz do rio de Salomão em cujas margens vivem as mulheres guerreiras, e seguimos as praias de Ayphir e Parcis.
"Em Maran’ión desembarcámos com os colonos e os animaes de carga. Como das outras vezes, acompanharam-nos os tupinambás que se vestem de pennas e se dizem descender dos Lemures, povo do Grande Mar, além da terra de Tarschich. Caminhámos pelo paiz a dentro milhares de parasangas, guiados pelas inscripções dos nossos predecessores. Junto à Grande Lagoa deixámos os engenheiros de Kami, para trabalhar na cataracta-escoadouro.
"Passámos pela caverna de Mag-Kinnér, a que os vermelhos chamam de Makiné, e onde habitou o mago Summér. Em todo esse percurso colhemos a prata, as pedras verdes, a madeira de almug, monos, sarigues e as aves que aprendem a falar. Das nitreiras das grutas retirámos o salitre, e apanhámos grande quantidade de ouro nos montes de Sabá-rá, consagrados à poderosa rainha. E só retrocedemos viagem, depois de termos attingido novamente o mar nos salitraes de Nitro-y."
A sonoridade desta prosa lembra um pouco Pero Vaz de Caminha, um pouco a Bíblia. Mas não está muito distante da "prosa púrpura" de Clark Ashton Smith (1893-1961), em seu ciclo de histórias (escritas entre 1932 e 1935), ambientadas no continente imaginário de Zothique. Também lembra uma parte da obra de Robert Howard (1906-1936), o criador de Conan, o Bárbaro. Não afirmo que Rosa conhecia as obras destes autores, mas sim que todos eles respiravam, na época, a mesma atmosfera. Na literatura mainstream da época corria muita água do Romantismo, do seu revival de mundos exóticos situados num Oriente lendário e num Passado mítico que são recompostos mais às custas da magia verbal do que da pesquisa historiográfica. Vale notar que S. T. Joshi, em seu excelente estudo The Weird Tale (1990) onde analisa a obra de Arthur Machen (1863-1947), Lord Dunsany (1878-1957), Algernon Blackwood (1869-1951), M. R. James (1862-1936), Ambrose Bierce (1842-1913?) e H. P. Lovecraft (1890-1937), lembra que, com exceção talvez de Lovecraft, todos os demais autores não imaginavam estar fazendo "literatura de gênero": todos viam seus textos fantásticos e fantasistas como fazendo parte do mainstream de sua época, e o fantástico em suas obras era consequência de sua visão-do-mundo.6
Por seu lado, Guimarães Rosa em 1930 tentava imaginar um "passado alternativo" pré-cabralino para o Brasil, já familiarizado com a hipótese da vinda dos fenícios, e imaginando (por conta própria?) detalhes como o rio "Solimões" ser uma corruptela remota de "Salomão", e que a cidade mineira de Sabará deve seu nome à rainha cujos seios foram celebrados por H. Rider Haggard. Ele sugere que "Niterói" tem origem no radical "nitro", e deixo aos leitores a tarefa de encontrar outros equivalentes.
Rosa, escrevendo no início das duas décadas de glória dos pulp magazines nos Estados Unidos, celebrava um tempo (por volta de 950 AC, a julgar pela presença de Salomão) em que Roma sequer começara a dominar o mundo, e eram os cartagineses que se lançavam à procura "do país onde o sol vai se pôr". Historical fantasy? Não esqueçamos que Coelho Netto, um mestre da "purple prose" que Rosa admirava, havia publicado em 1925 o seu Imortalidade, uma fábula ambientada na Europa medieval. (Os gêneros literários são como as epidemias: começam com casos isolados mas precisam de condições propícias para atingir a "massa crítica" necessária. No caso da nossa incipiente fantasia, essa "massa crítica" não chegou a ser alcançada nos anos 20-30.)
O terceiro conto publicado pelo jovem estudante de Medicina saiu na revista O Cruzeiro, em 21 de junho de 1930 (a revista, na verdade, promovia um concurso mensal onde eram escolhidos contos para publicação: listas publicadas regularmente mostram, entre os selecionados, nomes como os de Érico Veríssimo, Mário Sette, e o pioneiro da ficção científica brasileira, Jeronymo Monteiro). Guimarães Rosa voltou a aparecer na revista com a história "Kronos kai Anagke" ("Tempo e Fatalidade", escritos na revista em caracteres gregos, sem tradução ao lado). O conto era ilustrado pelo "Prof. G. Chambelland", talvez uma variante do nome de "Carlos Chambelland" que ilustrou "Makiné" em O Jornal.
O jovem ucraniano Zviazline chega à cidade de K., importante estação balneária de sul da Alemanha. Vem disputar o campeonato internacional de xadrez, onde é o mais jovem e o menos conhecido dos participantes. Quer marcar presença para juntar dinheiro e casar-se com sua noiva Ephrozine. No Club Andersen local, os campeões estão disputando partidas amistosas como "esquentamento" para o torneio que está para começar. Zviazline joga uma excelente partida contra um adversário qualquer. Encerrado jogo, ele percebe a presença de um sujeito baixinho, de barba pontuda, meio mefistofélico, que ri alto e exclama: "—Enfim, já se começa a compreender e a jogar o xadrez entre os homens!", e some.
Na véspera do torneio, um dos adversários escalados contra Zviazline suborna um empregado do hotel, o qual põe no café do rapaz uma droga que o atordoa com seu "efeito estramonizante". Zviazline sai andando sem destino, toma um táxi, roda às cegas, manda o carro embora, e vê-se diante das ruínas do castelo de Fuchsberg. Dirige-se para lá, atraído por uma força irresistível (a da literatura de gênero, certamente) e ao entrar no hall do castelo vê a caminhar diante de si um vulto "com um rosto de cera, inexpressivo". Com a criatura a guiá-lo, ele percorre "uma sala quadrada, cujos ladrilhos se alternavam, brancos e pretos quadriculando um campo de xadrez. O moço contemplou sem espanto as figuras, esfinges de pedra espacejadas pelos escaques".
Eles percorrem um número infinito de salas, onde variam apenas as posições das peças nos "trebelhos de mármore". Chegam a uma vasta sala circular, onde dois homens se defrontam num tabuleiro. De um globo pendente do teto abobadado fosforeia uma luz pálida esverdeada. Tochas, afixadas em grandes candelabros, iluminam o local. Na parede, "... pentáculos e símbolos kabalísticos e abracadabrantes. Odores intensos de styrax, incenso e mirra, misturavam-se no silêncio subterrâneo da sala".
Um dos jogadores é o homem mefistofélico que Zviazline viu no clube. O outro tem barbas e cabelos brancos, mas sua fisionomia "parecia acima das idades" Ao lado dele, uma ampulheta. Zviazline olha o tabuleiro, mas as posições das peças estão "acima de seu entendimento": como se tivessem sido colocadas ao acaso, por uma criança. O personagem de barbas brancas mantém-se alheio, mas o pequeno mefisto fala pelos cotovelos. Explica que o xadrez é a escrita cifrada de uma verdade absoluta.
"Essa verdade, eu a lancei à Terra, velada pelas posições e variantes inesgotáveis do xadrez, único tarot absoluto, chave de todo simbolismo! Mas o que a Fatalidade lhes dera, só com o Tempo poderiam os humanos decifrar! E, através dos séculos, o xadrez não foi para quase todos senão um jogo, para alguns uma arte, e uma ciência para muito poucos".
Enquanto o homem de barbas brancas parece não perceber a presença de Zviazline , o "mefisto" prossegue:
"Ouve bem: a Terra, os humanos e tudo que fazem ou desfazem teus semelhantes não passam de um reflexo desta partida milenar, que estamos jogando".
Zviazline pergunta se eles dois são "Ormazd e Ahriman a jogar nesse tabuleiro os destinos do mundo", o baixinho responde:
"Sim, não passáveis primitivamente de meros autômatos, com menos independência e arbítrio talvez que estes trebelhos em que tocam as nossas mãos! Entretanto, uma força imensa, formidável, desabrochou e cresceu na chama microscópica dos vossos cérebros embrionários... Essa potência que não sabeis ainda manejar, mas que vos há de transformar em deuses, é a vontade. (...) O Tempo é eterno, e a Fatalidade inexorável! E agora que já ouviste bastante, fica no Tempo, e deixa que a Fatalidade se cumpra!"
A estas palavras, faz-se a treva na sala. O "mefisto" sai, e uma luz estranha envolve o tabuleiro, onde as peças começam a se animar, a se multiplicar, até virarem "um filme sobrenatural" onde a História da humanidade começa a se reproduzir. Zviazline sente-se girar no espaço, "como se remoinhasse no centro de um ciclone", e vê-se a girar em torno de dois sóis de fogo, coruscantes.
Desperta: é o dia seguinte, está dormindo ao ar livre. Volta para o hotel onde se hospedara: no caminho, desconhecidos parecem reconhecê-lo, e ele é apontado por algumas pessoas. Chegando ao hotel, contempla atônito as manchetes dos jornais: "Dmitri Zviazline Dmitrioff, primeiro lugar no torneio! Onze vitórias em onze partidas! Zviazline cria a nova teoria do xadrez!" Haviam se passado vinte dias desde a sua entrada no castelo de Fuchsberg. Zviazline entende por fim o que acontecera.
"Enquanto o velho Khronos o distraía com as visões fantasmagóricas, Anagke, disfarçado, substituíra Zviazline no torneio, alcançando estrondosa vitória".
O conto é encerrado de modo um tanto brusco, em poucas linhas, registrando que Zviazline voltou para a Ucrânia, casou com Ephrozine e abandonou o xadrez desse dia em diante. O autor encerra comentando: "Mais forte que Adão, recusara provar do fruto da Ciência, e mais humano que Prometeu, se não atrevera a roubar o fogo do céu". O tema do xadrez como metáfora da luta cósmica do Bem e do Mal é um dos mais antigos; Guimarães Rosa lhe dá, contudo, um tratamento que não ficaria deslocado nos anos 60 como um episódio de Twilight Zone ou um conto publicado no Magazine of Fantasy & Science Fiction.
O Fantástico foi a primeira opção literária de Guimarães Rosa, fruto sem dúvida das suas leituras de juventude (que incluíam, além da literatura fantástica disponível na época, leituras místicas e científicas que ele nunca abandonou ao longo da vida). Houvesse naquele momento uma tendência geral favorável na literatura brasileira, e Rosa possivelmente teria prosseguido neste caminho. Não digo que se tornaria um escritor profissional: àquela altura, sua carreira de médico já estava definida (ele se formou em dezembro de 1930), e a ela viria a se justapor a carreira de diplomata, ao ser aprovado em 1934 num concurso para o Itamaraty 7. Literatura profissional estava provavelmente fora de seus planos, mas sua "voz" literária continuaria a ser elaborada em surdina, até a publicação triunfal de Sagarana em 1946.
O que aconteceu nesse período? Aconteceu, principalmente, que Guimarães Rosa decidiu esquecer a literatura "de gênero", e criar um gênero literário próprio. Sua enorme fascinação com a terra mineira (sua geografia, sua flora e fauna, seus tipos humanos, sua cultura) entrava em choque com certas limitações que ele certamente via no romance regional que explodiu durante a década de 30, principalmente com os autores vindos do Nordeste (Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, José Américo de Almeida, José Lins do Rego e outros). Esse regionalismo nordestino, por mais que tenha sido um terremoto saudável na literatura da época, era um estilo ainda demasiado preso ao naturalismo, à verossimilhança dramática, à descrição memorialista de paisagens e tipos. A grandeza literária de de Guimarães Rosa decorre em grande parte do fato de ele ser ao mesmo tempo um cronista fascinado pela "região", mas também um fabulador insatisfeito com o "regionalismo".
Talvez fosse o mesmo impasse de Ariano Suassuna, autor do Romance da Pedra do Reino, o livro que em 1972 "re-inventou" o romance nordestino. Suassuna declara que não se considera um autor regionalista, porque para ele o Regionalismo não passa de um neo-naturalismo, e o que lhe interessa na literatura não é a realidade reconstituída, e sim a "realidade transfigurada". Esta resposta se aplica ao tipo de narrativa que Guimarães Rosa destilou em seu laboratório alquímico durante os anos em que retrabalhou Sagarana (que obtivera 2º lugar num concurso literário em 1937, mas sofreu profundas modificações antes de ser publicado nove anos depois).
Conta-se um episódio ilustrativo desse processo. Em 1926, o escritor Guilhermino César estava conversando na porta de um bar em Belo Horizonte com o futuro historiador João Dornas Filho. Guilhermino pretendia lançar uma revista literária (que viria a ser a modernista "Leite Crioulo"), e ao ver João Guimarães Rosa passar, convidou-o a participar do projeto. A resposta de Rosa foi: "Agradeço, mas acho que antes de escrever para publicar eu preciso viver e conhecer o Brasil".8
Ao criar o seu sertão mítico, Rosa ampliou de forma espantosa seus próprios horizontes literários (criando para si um cosmos tão coerente e manipulável quanto a "Middle Earth" de Tolkien), mas manteve-se fiel às suas origens. Os temas fantásticos clássicos permeiam sua obra, desde o pacto com o Demônio (Grande Sertão) até o encontro com extraterrestres ("Um Moço Muito Branco"), desde a feitiçaria ("São Marcos") até as histórias de assombração ("Umas Formas"). Mas o forte de sua literatura não é o episódio fantástico isolado, e sim a textura fantástica do cosmos onde todas as suas narrativas têm lugar. Um cosmos saturado de misticismo no sentido tradicional do termo (a luta entre o Bem e o Mal, etc.), mas onde emergem (mais do que o "sobrenatural") o inusitado, o ilógico, o grotesco, o extraordinário, o inesperado, o bizarro. Podemos complementar a anedota referida por Guilhermino César sugerindo que Rosa precisava também de tempo para transfigurar o Brasil, transformando-o "...num sertão no qual a única realidade seja o inacreditável"9
NOTAS:
1. "Caçadores de Camurças" foi publicado na revista O Cruzeiro em 12 de julho de 1930. Conta a história de dois caçadores nos Alpes suíços que disputam o amor de uma mulher; um deles morre, e o outro desiste da amada.
2. Uma análise dos quatro contos citados neste artigo foi publicada por Ivan Teixeira, Estado de São Paulo, em 26.9.1992.
3. Suponho que o original se refere a "um pedaço de linho", ou seja, um pedaço de tecido.
4. A utilização mais brilhante deste recurso é provavelmente a do conto clássico de Jacques Futrelle, "O Problema de Cela no. 13", de 1917.
5. "Maquiné" e os demais contos examinados aqui estão conservados em bibliotecas e coleções especializadas, como a Biblioteca Nacional do Rio, e o Instituto de Estudos Brasileiros da USP, em São Paulo. Nada indica que virão a ser re-publicados um dia.
6. O mainstream literário (ou, como dizemos às vezes, "a literatura propriamente dita") admite e abriga em si as mais variadas tendências temáticas, mas quando uma delas (as histórias policiais, as histórias de terror, etc.) começa a ganhar autonomia de mercado (revistas e editoras especializadas, autores e público com dedicação exclusiva), é "extirpada" do mainstream. Transformar-se em gênero literário é um pouco como atingir a maioridade, conseguir independência financeira e ser expulso da casa dos pais.
7. Se bem que Renard Perez afirma que, em todos estes contos, Rosa, como um bom autor de pulp fiction, "...escrevia friamente, sem paixão, preso a moldes alheios. Na verdade, o importante eram os cem mil réis do prêmio..." (em Guimarães Rosa, Coleção Fortuna Crítica, Civilização Brasileira/INL, 1983)
8. Citado por Affonso Romano de Sant’Anna, O Globo, 25.9.1994.
9. Entrevista a Günter Lorenz, (em Guimarães Rosa, Coleção Fortuna Crítica, Civilização Brasileira/INL, 1983)