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[Paganus] Sol de inverno [L]

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Paganus

Visitante
Pensava em nada aquele dia, no melhor que podia fazê-lo sem enlouquecer e cair em um estado mal definido entre êxtase e embriaguez psíquica. O sol amolecia a mente, como amolecia os sentidos de forma geral, enquanto o ônibus deixava a estrada correr pelos seus pés, nos sapatos maltratados pela falta de gosto e desleixo naturais em si, imperdoáveis nos outros. Ia a algum lugar que não sabia onde. Ou não se importava.

O que era característico daquele dia era ser como muitos outros dias dos últimos tempos em que não era sobressaltado com sonhos aberrantes, projetos quiméricos de todo tipo e isso lhe fazia bem, ainda que raro fosse. Era um dia de calmaria do espírito, quando a alma tirava a sesta sob o sol morno e gasto do inverno inconstante do litoral paulista. O próprio corpo adormecia sob aquele mormaço filtradop elos vidros das janelas do veículo, ainda que estivesse acordado, e sentindo gostosamente as dores de um dia de caminhada, olhares furtivos a algumas pernas e esperanças fugazes, de algumas compras e muito bater de pernas sem direção, procurando ceder a vontade às pernas, e só às pernas, enquanto a consciência pairava por sobre as águas do abismo. Tinha muita arte em se esquecer das dores mas conservá-las corporalmente, nelas se deleitar, enquanto bania todo outro tipo de sentimento e excitação ao limbo era natural.

Pensava no amor, menos nela como uma pessoa e mesmo como um ideal de delírios românticos de colegial e mais como aquela força irresistível que deixava seu espírito ser embalado pelas vagas da tarde e se deixava levar pela lembrança, cada vez mais tênue, do rosto moreno e redondo de pessoa gorda que emagrecera infalível e tragicamente com as decepções do primeiro amor, sonhava com as sobrancelhas negras nem espessas nem finas, mas perfeitas. Tudo nela era perfeito. Os pelos castanhos do braço caboclo, a rigidez das formas dos braços, das mãos, aquelas mãos de deusa fenícia... as ancas. Não! Não pensaria em nada mais que o afeto concentrado no simples retrato dela. Sabia que havia muito de vulcânico em seus braços e nas mãos, ou antes imaginava assim, mas não estava para essas febres debaixo daquele sol, onde sempre havia muito de novo dentro de um eu mais apaziguado e em paz consigo.

Tudo perfeito. Ele não conceberia nenhuma beleza que não fosse a do seu rosto, lhe procurava entre outros rostos, comparava suas qualidades com as de outras e estabelecia critérios inflexíveis, absolutos, imperiais, tendo como base a pessoa férrea e ardente dela. E o que mais esses arroubos arrefeceram foi no sentido de outras qualidades acabarem sendo absorvidas por ela, fantasiosamente. Ele percebia isso. Era consciencioso de suas manias, fobias, de sua inferioridade em relação a ela, de sua fraqueza... mas... ele viveu tanto, viu tanto, tanto sentiu, e de tantas pessoas diferentes, e contemplou e desejou tantas belezas diferentes, umas que revolviam seu sangue, outras que o enchiam de uma adoração piedosa, outras que... não sabia isso também, seu coração era tão doido e tão cheio de sonhos e esperanças e de formas diferentes e mutantes de conceber o mundo, de admirar a beleza, de desejá-la. Seu amor ultrapassou uma década, mas não passou pela vida sem se transfigurar, mudar, diversas, incontáveis vezes.

Mas naquele tempo, naquele sol morno, com as dores curtidas pelo calor e pela mormência característica de pessoas amontoadas em uma mesma carroça velha, ele não pensou nela uma única vez. Teria o amor se transformado? Mudado? Teria ela desaparecido? Ele não sabia, nem se importava, só lembrava daquela felicidade de dor e calor e achava que podia morrer naquele momento. Pensou em alguém que morava em um lugar belo e de colinas verdes e alma gentil. E sorriu, de olhos fechados. Mas não sabia que aquele sentimento doce, cálido, suave, terno, aquele carinho pelo que ele não sabia, aquele balouçar pelo sol, ninguém o inspirara, ninguém, a não ser ela.


Só ela.


Ela.
 
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